O amante uruguaio de Federico García Lorca?
Enrique Amorim junto a Federico García Lorca. O escritor uruguaio foi amigo de várias artistas e um especialista em converter suas invenções em realidades. El País. |
O escritor uruguaio Enrique Amorim foi amigo de importantes artistas do
século XX, de Picasso a Walt Disney, e construiu o primeiro monumento do mundo
em memória de Federico García Lorca. Sua vida podia alimentar uma simpática
crônica de época. Mas seu nome era desconhecido fora de seu país.
Em 2010, Santiago Roncagliolo recebeu de uma pequena editora andaluza
um projeto sobre Amorim. Naquela ocasião os editores, depois de várias
conversas em torno do desenvolvimento de uma pesquisa sobre o escritor,
revelaram que debaixo do monumento erguido por ele a Lorca estavam os restos
mortais do poeta. A princípio, Santiago considerou que os editores estivessem
com uma peça do juízo a menos, mas aceitou a proposta.
O monumento a García Lorca situado na cidade
uruguaia de Salto tem forma de uma lápide e leva como epitáfio os versos de
Machado que pedem uma tumba para o poeta. Está desenhado seguindo as instruções
dessa tumba, “de pedra e sombra”, sobre uma fonte “onde chore a água”.
Para sua inauguração, em 1953, Amorim mobilizou toda a população local
que foi levada de ônibus até lá. E inclusive o corpo de segurança local rendeu
honras de Estado ao poeta. A atriz republicana Margarita Xirgu representou
cenas de Bodas de sangue.
A cerimônia era tão fúnebre que os pescadores da região se aproximaram e
deram os pêsames à atriz pensando que era ela a mãe do defunto. E o anfitrião Amorim
sublinhou o efeito ao declarar em seu discurso: “Aqui, numa modesta dobra de
terra que me terá sempre prisioneiro, está Federico...” Também agradeceu a seu
povoado de Salto “o que intui, o que adivinha”.
Monumento a Federico García Lorca. Enrique Amorim forjou um cerimonial em memória ao poeta com honras militares e tudo corroborando com sua invenção de que estaria sepultado aí os restos mortais de Lorca. |
E por trás do monumento a García Lorca enterrou uma caixa branca. De proporções
de um ossário, aquelas caixas onde se colocam os ossos quando o corpo perde sua consistência
entre cinco e dez anos depois da morte.
Durante os anos seguintes, Amorim se esmerou em dar a conhecer o
monumento pelo mundo. Logrou que um periódico francês lhe dedicasse um artigo,
e pouco mais.
Em sua correspondência privada se guardam cartas de amigos que
celebram o “incomum” monumento. Um deles confessa assombrado porque Amorim faz
com ele, e sublinha: “Que grandiosamente bárbaro és!” Outro lhe jura, antes de
uma viagem à Espanha de Franco, que não revelará o segredo do monumento de
Salto, que leva “em seu coração”.
Depois da morte de Amorim, sua companheira levou flores ao monumento
todos os anos e se negou a responder a seus assistentes sobre o que havia na
caixa enterrada no monumento. O rumor dizia que era o cadáver de García Lorca.
Mas ninguém se atreve a confirmá-lo.
“Da ficção à realidade. Amorim deixou as pistas divididas para que alguém
descobrisse seu segredo. E sem dúvida acertou. Cinquenta anos depois de sua
morte, houve quem seguiu os indícios e me chamou para investigá-los.” – cita Santiago
Roncagliolo.
As investigações adiante revelaram um dado importante: Amorim deixava indícios
falsos por toda a parte. Além disso, era um gênio da impostura, um estrategista
da ambiguidade e um homem capaz de converter suas ficções em persuasivas
realidades. Seu ‘poder’ era visível desde
o início como escritor. Em seu primeiro livro, de 1923, publicou um conto
realista chamado “Las quintaderas”, protagonizado por umas prostitutas
ambulantes inventadas por ele mesmo. A crítica adorou o conto – embora tenha
destroçado o restante do livro – e a figura das quitandeiras se popularizou
entre os leitores, que começaram a falar delas como se fossem reais.
Algum filólogo se deu ao trabalho de desmentir com um artigo na
imprensa da existência das quitandeiras. Amorim escreveu uma resposta e
polêmico colocou o nome de suas prostitutas na boca de todos.
Em seguida, o pintor uruguaio Pedro Figari, cronista da sociedade de
seu país, dedicou às quitandeiras uma coleção de quadros. Quando os quadros
foram expostos em Paris, o romancista Adolfo de Falgairolle ficou maravilhado
com as prostitutas ambulantes, as considerou figuras reais, uma espécie
equivalente ao feminino gaúcho e dedicou um romance – La quitandera.
Amorim não tardou em responder. Se na América do Sul havia tratado de
demonstrar que suas personagens eram reais, agora viajou a Paris para defender
que eram imaginárias e pertenciam a ele. Como resultado, se serviu da polêmica
em ambos os países para popularizar suas histórias e publicar La carreta, uma versão estendida da
história que se converteria em seu maior êxito editorial. No alvorecer da
indústria editorial espanhola, Amorim acabava de descobrir a força publicitária
da polêmica.
Em 1948, um periódico saltenho publicou a seguinte manchete: “Reunião
de líderes comunistas em Salto”. Sem citar a fonte, o jornal sublinhava que
Enrique Amorim havia acolhido em seu luxuoso chalé dois dirigentes clandestinos
mais conhecidos do Partido Comunista: o chileno Pablo Neruda e o brasileiro
Luis Carlos Prestes. O motivo da reunião: fixar a estratégia do partido contra
a repressão dos Governos Sul-americanos.
A Guerra Mundial havia terminado e com ela os governos fascistas. O novo
inimigo global era o comunismo e Estados Unidos exigia aos países latino-americanos
à ilegalidade dos partidos apoiados pela União Soviética. Dois mandados de
captura foram dados contra Neruda e Prestes. A notícia da reunião em Salto
causou comoção local e chegou a Montevidéu e Argentina. A polícia se colocou em
estado de alerta e inclusive os bombeiros estabeleceram patrulhas. Para poder
identificar Neruda, os agentes necessitavam de fotos. Os livros do poeta se esgotaram
nas livrarias. Mas nada deixou rastros da suposta coluna comunista.
Quando a notícia começava a acabar, Amorim em pessoa publicou um artigo
intitulado “Pablo Neruda está em minha casa”. O título devia ser entendido como
uma metáfora. Pablo Neruda, ideológica e espiritualmente estava sempre com Amorim.
Mas a histeria midiática era voraz, e, ao que parece, ninguém tinha tempo para
ler os artigos inteiros. A notícia se reproduziu no Chile, Peru e Equador com
detalhes sobre capturas e perseguições policiais dignas de um filme de
Hollywood. Em apenas um mês, Amorim se converteu num símbolo do comunismo, à
altura de suas maiores figuras. E ninguém perguntou nunca por fonte original da
notícia.
Em suas memórias Amorim não menciona o encontro de comunistas de Salto,
mas sim outra reunião secreta: a que manteve Charles Chaplin e Pablo Picasso em
Paris. Chaplin, acusado pelo governo dos Estados Unidos, não queria
encontrar-se publicamente com comunistas destacados, de modo que a reunião foi
realizada na intimidade de seu hotel. E desta vez Amorim descreve os acontecimentos
com detalhes.
Segundo o uruguaio, a reunião começou com frieza, dado que os dois
grandes artistas não falavam uma língua em comum. Mas Picasso e Chaplin se
puseram a fazer piadas e a rir e terminam no estúdio do pintor, como grandes
amigos, entre uma desordem de renoirs,
rousseaus e taças de vinho.
As memórias do próprio Chaplin publicadas depois da morte de Amorim
confirmam cada detalhe de sua descrição. Mas em vez do escritor uruguaio,
relembra outra figura na mesa: nada menos que Jean Paul-Sartre. O mais suspeitoso
é a descrição de Sartre por Chaplin: “Sartre teria a cara redonda, e embora
suas feições não merecessem maior comentário, possuíam uma sutil beleza e
sensibilidade.”
Essa não é a descrição de Sartre – que, entre outras coisas, era vesgo
e não tinha a cara redonda. A descrição é de Amorim.
Chaplin lembra que o encontro foi organizado pelo poeta Louis Aragon,
factótum cultural do Partido Comunista em Paris. Aragon queria satisfazer
Chaplin apresentando-lhe Sartre, mas cabe destacar que tinha um problema: sua relação
com o filósofo era péssima.
Enrique Amorim e amigos na praia. Entre eles,o de braços cruzados é Jorge Luís Borges |
Agora bem, isso não era um problema para Enrique Amorim, o homem que
havia inventado a Internacional Comunista Sul-americana. E por certo, tampouco
para o próprio Aragon, que em seus dias de poeta dadaísta havia emitido falsos
discursos pelo rádio de... Charles Chaplin. Num mundo sem internet e com a televisão
uma raridade, um bom artista podia jogar facilmente com a realidade.
Com o tempo, Enrique Amorim foi esquecido fora do Uruguai. Nem Neruda
nem seus biógrafos nem os de García Lorca – exceto Ian Gibson de modo
incidental – o mencionam. Nem sequer enquanto vivia o levavam muito a sério. Frequentemente,
os intelectuais o abandonaram em momentos cruciais. Mas ele estava seguro de
que o mundo o lembraria.
Além das memórias, deixou um extenso arquivo de imprensa e sua correspondência
com centenas de artistas. Sua viúva se ocupou de conservar todo esse acervo e
enviá-lo à Biblioteca Nacional do Uruguai para que fosse acessível ao público. Ambos
sabiam que muitos dos temas documentados nesse arquivo – com a homossexualidade
de Jacinto Benavente e Federico García Lorca, ou os manejos do Partido Comunista
– não podiam sair nos anos cinquenta. Mas chegaria o momento em que tudo viria a
lume.
Um desses temas é o do monumento a García Lorca e a possibilidade de
que fosse na verdade um sepulcro. Amorim deixou escrito que havia sido amante
do poeta granadino, algo que a família García Lorca não confirma. E sublinhou
que Federico tinha sido morto por sua culpa, algo que de todos os lados é
falso. Ante um mestre da simulação como ele, fica difícil distinguir que quis nos
fazer crer que ele próprio acreditava de verdade, e que é verdade.
Se de fato sob o monumento de Salto jazem os restos mortais do poeta,
Amorim terá conseguido passar para a história. Mas o curioso é que se não,
também. Santiago Roncagliolo, ainda assim se manteve diante da possibilidade de que
um livro possa, de repente, servir ao esquecimento dessa figura e aceitou
escrever essa história em El amante
uruguayo – um retrato, segundo ele próprio “de como se forjou a arte do
século XX e em particular de foi alterada pela guerra civil espanhola.”
* Este texto utiliza-se de "¿El amante de Lorca?" escrito por Santiago Roncagliolo para o jornal El País, março de 2012.
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