Murilo Mendes



O nome não está às escondidas ou esquecido dos leitores; uma rápida pesquisa pela web apresenta-o com certa facilidade e traz alguns dos seus poemas mais conhecidos. Possivelmente, quase todo estudante da educação básica terá se deparado com os versos de “Canção do exílio”, uma releitura de muitas do poema homônimo de Gonçalves Dias. Murilo Mendes é contemporâneo de nomes como Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto – esses tornados quase affairs dos leitores de idade diversa, conhecedores ou não de sua obra. O primeiro mais que o segundo: basta ver a quantidade de citações verdadeiras e falsas que alimentam as redes sociais.

“Nasci oficialmente em Juiz de Fora. Quanto à data do mês e ano, isto é da competência do registro civil. Não me vi nascer, não me recordo de nada que se passou naquele tempo. Na verdade, nascemos a posteriori. No mínimo uns dois anos depois. Mesmo porque, antes era o dilúvio.” – assim inicia Murilo Mendes suas memórias em A idade do serrote.

Mineiro como o autor de A rosa do povo e com apenas um ano de diferença entre os dois – Drummond é de 1902 e Murilo é de 1901 – o poeta deixou Juiz de Fora, sua cidade natal, ainda na juventude e dividiu a morada entre o Rio de Janeiro, Bruxelas, Roma e Lisboa, onde morreu, em agosto de 1975, muito antes, portanto, do conterrâneo; Drummond viveu até agosto de 1987.

Dez anos depois de chegar ao Rio, publicou seu primeiro livro, Poemas, saudado na ocasião por gente como Mário de Andrade como “historicamente o mais importante dos livros do ano”. Para compreender o nível do elogio, basta dizer que naquela ocasião, 1930, Carlos Drummond de Andrade também publicou seu primeiro título, Alguma poesia e Manuel Bandeira, Libertinagem.

Mais desse reconhecimento será notado posteriormente pela quantidade de vezes e pela qualidade dos nomes que em alguma ocasião se dedicaram a preparar antologias com a poesia de Murilo Mendes. Na antologia preparada em 2014 por Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura, há um breve histórico registrando sobre essas publicações, muitas delas saídas (ainda que numa amostra) fora do Brasil. É o caso de poemas traduzidos em Office Humain ou dos publicados em duas seleções argentinas, La virgen imprudente e Poemas escogidos y un inédito de Borges. Mas, na Itália, onde desenvolveu extensa produção escrita, foram publicadas Murilo Mendes e Poesia libertà – todos esses títulos vieram a lume quando o poeta ainda era vivo. No país natal outras três, além de uma antologia organizada pelo próprio Murilo: Affonso Romano de Sant’Anna organiza O menino experimental, Luciana Stegagno Picchio organiza Melhores poemas de Murilo Mendes e João Cabral organiza Antologia poética.

Quatro edições da obra de Murilo Mendes recebem repaginação pela Cosac Naify.


A obra de Murilo Mendes, diz Marcondes Moura “pode ser lida em consonância com a poesia brasileira de seu tempo. Os seus livros iniciais, Poemas e O visionário, escritos entre 1925 e 1933, apresentam evidentes pontos de contato com a primeira poesia modernista, sobretudo pelo humor sarcástico e pela linguagem desabusada. Traços comuns a Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade, e especialmente a Drummond, seu contemporâneo exato, são perceptíveis. A conversão religiosa que se seguiu alterou muita coisa, mas não retirou o poeta desse âmbito estético de extração modernista: o diálogo com Jorge de Lima, por exemplo, conduziria ambos não ao afastamento, mas antes ao aprofundamento de procedimentos vanguardistas, como o da fotomontagem.”

A dedicação ao sagrado como tema ou mote para a poesia tem em Murilo Mendes uma conotação para além da de afastar-se do humorismo de 22, é uma tentativa estética ou saída estética para recriar novas formas de reflexão sobre o homem e sua relação com o aparato cultural que lhe enforma. Para Silviano Santiago, Murilo Mendes converte-se ao cristianismo - não no sentido cristão do termo - e faz da religião não apenas uma inquietação com muitos nomes do Modernismo. Com Jorge Lima, Murilo Mendes publicou Tempo e eternidade, obra que se mostra como uma atitude prática acerca das preocupações metafísicas do período. Mas, na verdade, “Murilo deslocava o centro de atenção da ruptura estética insuflada pelos manifestos futuristas de Filippo Marinetti e pela vanguarda e as artes brasileiras modernas a uma postura construtivista e minimalista”– sublinha Santiago.

Mas, também o social e o político estiveram ao lado da verve religiosa de sua poesia. Para Marcondes Moura, “Murilo Mendes escreveu alguns dos mais marcantes poemas políticos de nossa literatura, em As metamorfoses, Mundo enigma e Poesia liberdade, livros próximos, tanto pelo ímpeto participativo como pela densidade artística, à fase drummondiana que vai de Sentimento do mundo a A rosa do povo”; também versou sobre dentro da forma tradicional da poesia em obras como Sonetos brancos ou Contemplação de Ouro Preto, essas seguem de perto outras vozes da poesia brasileira, além dos nomes já citados, como um Manuel Bandeira ou uma Cecília Meireles.
  



A ida de Murilo Mendes para Europa e sua rápida integração ao espírito do velho continente fomentaram, possivelmente pela profissão que foi exercer na Itália – professor de cultura brasileira na Universidade de Roma – uma intensa produção literária. Marcondes Moura observa que o estudo, responsável por um intenso surto criativo, faz com que sua poesia aproxime-se da obra de mestres como João Cabral de Melo Neto e das vanguardas da época, como é possível notar na leitura de Tempo espanhol e Convergência.

Essas aproximações mesmo um tanto isoladas e esquemáticas – certamente porque o trabalho literário de Murilo alcança um nível muito próprio e particular – apontam para a integração do poeta num âmbito de projeto literário construído naquela ocasião, todos em diálogo com uma verve poética da tradição. Para Júlio Castañon Guimarães além disso, “em sua obra estão também presentes desde a vida urbana brasileira dos anos 1920-30, ou seja, de um Brasil ainda agrário e arcaico, passando pelo imenso impacto da Segunda Guerra Mundial, até as turbulências sociopolíticas dos anos 1960-70, vividas pelo autor na conturbada Itália dessa época.”

Além da poesia, Castañon Guimarães destaca a produção de Murilo para o jornal e a revista. “Em pontos extremos, pode ser lembrada sua colaboração na Revista de Antropofagia, na década de 1960, num percurso que vai de sua ligação com o modernismo até as experimentações que o aproximam do projeto de vanguardas como o concretismo.” Além desse importante meio do projeto modernista, destaque-se também a publicação em Bazar, Letras e Artes e alguns periódicos europeus – Botteghe Oscure, Qui-Arte Contemporanea, XXe Siècle, L’Europa Letteraria. Produções que “fornecem elementos que auxiliam a compreensão do andamento da sua obra”, conforme sublinha Castañon.

Nem todas as publicações nessas edições ficaram na poesia; Murilo Mendes fez dos meios externos aos livros espaço para sua produção em prosa –  intensificada quando o poeta vai para a Europa (no catálogo que preparamos a seguir, há uma mostra do gênero). “Vários desses textos de crítica de artes plásticas, em geral de breve extensão, estão no limiar do que se consideraria poema. Ao mesmo tempo desenvolve-se a escrita em italiano, tanto em textos de prosa quanto, com maior complexidade, em poemas, reunidos em Ipotesi

Embora muito esparsamente Murilo Mendes tenha escrito em francês, ainda jovem, a produção em italiano, se dá por uma explicação biográfica pela circunstância de sua residência na Itália, não pode deixar de ser considerada como uma produção integrada nesse conjunto de experiências em seu período final. Ipotesi, o livro estrangeiro póstumo, não tem a ver com o experimentalismo de Convergência e adota um tom e um horizonte bem diferentes, marcados por profundo desalento. Ambos os livros, porém, estão tomados pela presença de escritores, artistas plásticos, músicos, monumentos, cidades. Assim, a presença da cultura, marcante em todo o seu trabalho, acentua-se intensamente no período final, na poesia e na prosa, numa clara e decidida exposição daquilo que teve papel central em sua vida e em sua obra” – lê Castañon.

Em torno dessas incursões fica o interesse de sempre voltar a obra de Murilo Mendes. Ela se mantém enquanto leitura de seu tempo, mas faz-se presente, que as ânsias do homem de seu tempo ainda são e serão sempre as mesmas. Talvez diferenciada, talvez não. Para saber, só lendo. O poeta está no rol das criaturas visionárias e rebeldes; se incapaz de compreender a si e o que lhe cerca, capaz de provocar uma renovação de olhares. 

Para acompanhar este texto apresentamos um catálogo com textos de Murilo Mendes: três deles em prosa. São perfis redigidos para uma imagem sobre Jean Cocteau, Pierre Jean Jouve e Ezra Pound. Além disso, editamos alguns poemas: dois incluídos na edição ora apresentada pela Cosac Naify e outros publicados inicialmente em Portugal e ainda por conhecer aos leitores brasileiros. O catálogo é ilustrado por uma série de imagens em cores também inéditas na web




No Tumblr do Letras deixamos duas galerias com capas das primeiras edições de parte da obra de Murilo Mendes.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596