Moacyr - Escritor de Porto Alegre
Por
Regina Zilberman
O primeiro romance de Moacyr Scliar, A guerra no Bom Fim, foi editado em 1982. Não é seu primeiro livro,
pois, antes, tinha lançado as narrativas de Carnaval dos animais,
publicado contos em parceira com Carlos Stein e participado de antologias,
acompanhado de outros escritores do Rio Grande do Sul.
A
guerra no Bom Fim, contudo, ocupa lugar especial, porque lida com Porto
Alegre. Não apenas a ação se passa na cidade, falando de seus bairros, morros,
parques: a vida porto-alegrense anima a ação da narrativa, motiva o
comportamento das personagens, estabelece os parâmetros de comportamento e
afeto. Nossa capital está ali, de corpo inteiro, seduzindo os homens que a
habitam e explicando a razão de ser de suas existências.
Por
sua vez, A guerra no Bom Fim não é o único texto em que Porto
Alegre reside nas páginas dos livros de Scliar: O exército de um homem
só, Os deuses de Raquel, O ciclo das águas, Os voluntários, O centauro no jardim — eis criações dos
anos 1970 que escolhem a cidade como cenário dos acontecimentos. Cenário que
extravasa as funções costumeiramente atribuídas a ele: bairros podem traduzir a
personalidade das pessoas, como o paradoxal bairro Partenon em Os deuses de
Raquel, ruas são sintomas de sonhos, como bastante conhecida Voluntários
da Pátria, em "Os voluntários".
Moacyr
Scliar é o intérprete de nossa cidade, e nos seus livros nos reconhecemos não
apenas como habitantes de nossa curiosa pólis, feita de concreto, asfalto e
paisagens idílicas. Reconhecemo-nos também como indivíduos, sujeitos que
encontram no espaço circundante seu eu refletido, imagem e reprodução mais
nítida e compreensível que o original.
Continuo
a destacar A guerra no Bom Fim. Porque esse livro, estreia de Scliar no
romance, ultrapassa a representação da cidade e da interpretação de seus
moradores. Homenageando Erico Verissimo, de quem extrai a visão literária do
Bom Fim apresentada no texto, o escritor refaz a trajetória de nossa literatura
e escolhe seus pares. Com efeito, se o Bom Fim de Moacyr Scliar é o de sua
(nossa) infância, povoado por uma mitologia própria, muito peculiar ao bairro,
ele é também o Bom Fim que se encontra nos livros de Erico Verissimo, como
Um lugar ao sol, por exemplo. Ao se reproporiar do Bom Fim de Erico e
reintroduzi-lo em seus livros, Moacyr adianta ao leitor como quer ser lido.
Como gaúcho e alinhado à melhor tradição do romance sulino.
Por
último, o Bom Fim é o nosso bairro judeu. É como tal que nós reconhecemos nesse
livro, não apenas por fazer parte desse grupo étnico, mas principalmente por
nos apontar o modo como nós, judeus, pertencemos a esse segmento minoritário, à
cidade de Porto Alegre e à cultura do Rio Grande do Sul, representada no
romance pela adesão de Moacyr à tradição literária de Erico Verissimo. Mais que
outro escritor, Scliar evidenciou nossa identidade, no melting pot de nossa
metrópole, sem renegar as origens, de um lado, de outro, sem abrir mão da
integração ao universo gaúcho.
A
trajetória do romancista, inaugurada com esse A guerra no Bom Fim,
nunca perdeu de vista esse começo. O escritor foi longe: produziu quase vinte
romances, vários livros de contos, ensaios sobre medicina e literatura,
narrativas infanto-juvenis; foi objeto de coletâneas que selecionam os melhores
entre os muitos bons; está publicado em Portugal e traduzido nos Estados
Unidos, França, Holanda, Alemanha, para citar alguns dos países do Hemisfério
Norte em que sua obra foi acolhida favoravelmente.
Além
disso, foi chamado para fazer conferências na América do Norte e na Europa,
participou de programas de incentivo à leitura no interior do Estado e por
todos os cantos do país. Ministrou curso de literatura para estudantes
universitários nos Estados Unidos e foi regularmente convidado para debater e
compor painéis com intelectuais e artistas de renome do meio acadêmico e
artístico.
O
escritor foi longe; mas continuou sempre próximo, não apenas por permanecer
entre nós, lealmente porto-alegrense. Mas também por nos entregar nossa cidade
à leitura e entendimento, leitura que é compreensão de nosso mundo e de nós
mesmos. Nada melhor para iluminar nossas vidas, mesmo após ter partido daqui
para sempre.
* Regina
Zilberman é escritora e professora. Licenciou-se em Letras pela UFRGS,
doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha, e fez
pós-doutorado em Rhode de Island, nos Estados Unidos. Foi professora da PUC-RS e
é uma das maiores especialistas em literatura infanto-juvenil. Possui mais de
20 livros publicados e premiados na área pedagógica e educacional. É professora
da UFRGS (Instituto de Letras).
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