Minha pequena agenda política literária
Por Rafael Kafka
Por esses
dias, li um texto de Antonio Candido muito interessante do ponto de vista de se
defender uma visão política engajada em promover a difusão da literatura e da
arte em geral. Tal texto que pode facilmente ser encontrado na internet ou no
livro Vários Ensaios chama-se “Direito à Literatura” e nele Candido propõe uma
bela reflexão acerca da defesa dos direitos humanos e da literatura enquanto um
direito de tal tipo.
O pequeno
ensaio se mostra extremamente atual, mesmo tendo sido escrito há algumas décadas, pois vivemos numa época na qual os “cidadãos de bem” vivem a proferir
discursos espumosos de raiva e ódio nos quais os direitos humanos são vistos
como algo que deve ser dado somente aos humanos direitos. Candido mostra que
defender os direitos humanos é, acima de tudo, entender o outro como um ser.
Isso pode parecer óbvio demais, mas se vermos as notícias de jornais policiais
e os discursos de certos “jornalistas” veremos que o homem o qual comete um crime
(principalmente se for negro e/ou pobre morador de periferia) não é mais visto
como ser humano, e sim como uma coisa.
Ao dizer
que cidadãos de bem, cidadãos direitos, devem ter seus direitos humanos
respeitados enquanto o resto é deixado de lado, o locutor de tal sentença deixa
bastante claro que sua visão de mundo é determinista e de que ele se considera
o membro escolhido de uma classe privilegiada sabe-se porque força oculta (pois
em sua visão tal sujeito não aceita jamais discutir em dialética do
campo) para se manter no poder e isso deve ser salvaguardado por todas
instâncias estatais.
Tais
cidadãos de bem são pessoas pertencentes a uma elite econômica que se sente
ameaçada ao ver pessoas de classes inferiores visitando espaços que eles julgavam
exclusivamente seus e usando serviços até pouco tempo inteiramente fornecidos à
classe alta. Claro que muitos cidadãos de bem são pessoas de classe baixa as
quais replicam o discurso dos dominadores para entender esse mundo líquido que
nos rodeia, mas o ponto aqui é que quem gera tal discurso, quem o legitima, é o
tipo de pessoa capaz de rir de uma pessoa de chinelos e camisa regata em um
hospital só por achar aquilo pouco glamouroso para um ambiente que muitos
pensam ser ainda de uma classe social que se julga mais especial do que
realmente é.
Mas o que
isso tem a ver com literatura? Mais do que se possa imaginar à primeira vista.
Para tanto, além do texto, é preciso citar dois pontos especiais de minha vida
acadêmica e intelectual para exemplificar como o texto de Candido é
extremamente importante do ponto de vista de uma agenda política que defenda a
literatura enquanto ferramenta da melhoria da qualidade de vida de um meio
social.
Há um ano,
quase na mesma época, ingressei como membro colunista do Letras in.verso e
re.verso e como pesquisador de iniciação científica do Grupo de Estudos Literários na Amazônia e Formação de Leitor (GELAFOL) vinculado ao Instituto de
Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará. Ainda nesse período, eu
organizava com alguns amigos o Jornal Institucional, um jornalzinho cultural
distribuído digitalmente que infelizmente não durou muito devido à falta de
apoio de pessoas pertencentes ao grupo editorial. Em mim havia uma preocupação
bastante empírica de difundir a leitura a partir da leitura: textos que
falassem de textos literários ou de outras mídias e que desse modo levassem os
seus possíveis leitores a se aprofundarem nos assuntos abordados e ampliarem
suas práticas de leitura. Faltava-me naquela época, porém, o arcabouço teórico
que eu passei a adquirir com mais afinco neste ano.
Desde o meu trabalho de conclusão de curso sobre a aquisição de práticas de leitura a partir das histórias em
quadrinhos, ainda nos tempos de Instituto Federal, havia em mim a preocupação de discutir a
formação de leitores a partir de gêneros textuais, em especial os capazes de
tocar o universo de um indivíduo por meio da estética. Achava, contudo, que
nunca acharia uma linha de pesquisa dentro dos Estudos Literários que abarcasse
o que eu queria. Dentro da Linguística havia a possibilidade do letramento
literário, mas se dentro dos estudos da literatura tudo me parecia abstrato
demais, aqui havia uma visão rasa demais, ao menos assim eu entendia, no
tocante aos efeitos causados no ser do leitor por meio da literatura. Perdido,
decidi fazer uma segunda graduação e as coisas foram acontecendo de tal forma
que entrei em três projetos já citados acima os quais lidavam com a questão da
leitura em suas agendas.
Mesmo com o
jornal morrendo (e agora estou com uma vontade doida de ressuscitá-lo),
manter-me no blog e no grupo de estudos foi de suma importância para eu começar
a fortalecer meu lado crítico literário e finalmente entender realmente que a
leitura salva por si só devido à inquietação que ela causa no leitor: um livro
leva a outro livro e se nada (falta de apoio de pessoas próximas ou falta de
tempo) atrapalhar, o leitor se torna uma criatura sedenta sempre atrás de mais
e mais leituras e de informações sobre as leituras feitas por ele.
O leitor
crítico sai da obra literária para outra obra mas também para conteúdos
conceituais que o ajudem a entender aquilo que está lendo. Tal leitor acaba
tendo a consciência de não haver isolamento e fechamento da obra em si mesma,
seja ela literária ou não. Ao entender a essência do discurso linguístico, o
leitor percebe que o seu mundo é um emaranhado de discursos e de repente até o
discurso do “bandido bom é bandido morto” daquele apresentador charlatão passa
a fazer sentido em uma visão macro.
Em suma, a
leitura salva, pois mostra o mundo como algo mais complexo e mais profundo do
que aquilo que vemos. A leitura literária salva por ser humanizadora, por fazer
o ser entrar em contato mais profundo consigo por meio da catarse e com o outro
a partir das situações e discursos existentes dentro da obra. A leitura salva
por mostrar ao ser humano que ele, por mais que queira, não está sozinho no
mundo e não possui o olhar onisciente capaz de ver e entender todos os
fenômenos da realidade com fórmulas fechadas e sem dialética.
*
Creio que
agora fique clara a relação existente entre direitos humanos e literatura
enquanto arte a ser difundida. Se não, posso citar mais dois exemplos de minha
vida os quais podem aclarar sem dúvida alguma o meu pensamento.
O primeiro
exemplo vem de meus tempos de adolescente estudante de escola pública. Por
conta de uma série de problemas, em especial greves, vivíamos com buracos em
nossos horários de aula e passávamos dias com duas ou três aulas vagas entre as
primeiras e as últimas aulas. Era com um terrível sentimento de preguiça que
voltávamos à sala de aula e isso se tornava desesperador para o professor, eu
imagino.
Penso hoje em dia no que ocorria durante tais intervalos ociosos, que
tipo de pensamentos surgiam na mente dos estudantes, que tipo de leitura de mundo
eles estavam adquirindo uns dos outros, que tipo de vazio existencial estava a
ser compartilhado na forma de beijos, discursos vazios e falta de perspectiva
de vida.
Na escola havia uma biblioteca bem singela a qual passava a maior
parte do tempo fechada e não havia a existência de projetos de leitura que
levasse, mesmo que a princípio umas poucas almas, a entrar em um contato mais
aprofundado com as obras de arte e do pensamento. Hoje converso com muitos dos
colegas daquela época disfarçando com dificuldade o desagrado causado por um
discurso cheio de chavões e falta de visão dialética dos fatos sociais e
humanos.
O outro
exemplo é algo mais banal e se resume a uma frase ouvida por mim em um bloco de
salas de aula da UFPA no qual uma estudante de Engenharia Elétrica dizia que a
matemática era capaz de explicar tudo. Por mais que eu entenda ser a ciência
dos números algo presente em praticamente todos os fatos de nossa existência,
não consigo imaginá-lo como explicação essencial para um fato como os conflitos
religiosos existentes no Oriente Médio, por exemplo. A menos que a pessoa queira justificar no número de metros quadrados de
terras possuída por muçulmanos ou judeus um conflito que passa sim pela questão
da terra; mas vai muito fundo e chega a um viés que me lembra demais a
verborragia sociopata de um Silas Malafaia da vida: a falta de noção de que o
outro, assim como eu, é um ser humano dotado de uma existência e de uma
vivência próprias, e por isso com um universo subjetivo todo seu.
Quando ouvi
tal frase, pensei em como os estudantes das boas escolas particulares são
geralmente construídos enquanto pensadores: o seu alvo é o vestibular e dentro
da universidade o seu alvo se torna a pós-graduação. Eles passam por mestrados
e doutorados sempre olhando para si mesmos, para o seu sucesso e para um campo
limitado de saber intelectual, geralmente sendo tolhidos pelos próprios
professores pesquisadores os quais os orientam a cercearem suas visões em prol
da prática metodológica mais acurada. Tais pessoas, em sua grande maioria, não
possuem noção dialética do conhecimento e do que se passa a seu redor e recaem
em uma ignorância que as faz repetir muito dos chavões conservadores cheios de
ódio; tudo porque em suas formas de ver o mundo falta aquilo que em Pedagogia chamamos
transversalidade dos saberes: a atitude de ter um determinado tipo de
conhecimento aplicado em contextos fora de seu ambiente usual, o que por si só
já representa uma imensa amplitude de olhar pelo simples querer ver aquilo que
está além de nosso limitado horizonte.
Tais fatos
atestam a necessidade de promover ao ensino da leitura de um ponto de vista
humanizador e humanitário. E é justamente o que defende Candido em seu ensaio,
citando diversos exemplos de como pessoas de vida mais rústica apreciaram as
obras literárias com um gosto vigoroso que muitas das vezes era simplesmente
fingimento dos membros das classes altas. Por seu caráter libertário e que
amplia a visão do ser humano, a literatura, seja ela a erudita ou a popular,
deve ser difundida em projetos de leitura, não importando seu locus de
ocorrência: se a escola ou qualquer outro espaço.
Neste
sentido, pessoas que se comprometem a fazer uma crítica literária comprometida
em promover a leitura como direito humano acessível a qualquer ser humano e não
afirmando o velho discurso humanista burguês (o qual pregava que escritores e
leitores adequados já nasciam prontos) colaboram com uma visão integralista do
processo de ensino aprendizagem da leitura como base para uma aquisição crítica
de saberes, seja eles escolares ou não, bem como a produção de discursos
questionadores no tocante às bases sociais em que vivemos.
Talvez haja
muito de otimismo em meu texto, mas é um tipo de otimismo que me faz querer
agir em prol disso, tanto no blog, quanto no grupo de estudos e nas poucas
turmas de ensino fundamental nas quais estou a ministrar aulas. Imagino o mundo
ideal como uma réplica em tamanho gigante de um clube de leitura: pessoas
discutindo sobre um assunto como quem discute sobre este ou aquele livro,
trazendo suas experiências de leitura e de vida, procurando não defender a
verdade, mas a sua verdade, e ajudando outras pessoas a complementarem as
brechas de suas verdades com outros fragmentos dessa coisa imensa a que
chamamos realidade.
A vida é como
a teia leitora a qual descrevi bem no começo desse texto: um fato leva a outro
que por sua vez leva a outro. Um personagem de Cortázar dizia que o mal da raça
humana é querer avaliar as novidades da realidade a partir de fórmulas
obsoletas. Todos os sujeitos os quais se encaixaram de forma perfeita nesta
descrição cortazariana eram sujeitos não leitores. Não quero dizer que eles não
liam nada, pois não creio na existência de um ser o qual nada leia já que um
simples olhar a frente de nós já é considerado por mim como leitura.
Sujeitos
não-leitores são aqueles que leem somente para cimentar a sua realidade,
ignorando tudo aquilo capaz de trazer dúvida e a visão das brechas existentes
entre os discursos proferidos por um indivíduo. Tais sujeitos não-leitores
falam do mundo como se ele ainda fosse o que era há uns cem anos, com
homossexualidade sendo vista como doença, com feminismo sendo visto como
revolta de mulheres doidas incapazes de reconhecer seu lugar na sociedade, com
negros sendo escravizados para terem um lugar na sociedade sagrada de um Deus
branco. Tais sujeitos são reacionários pois não querem ver que o mundo é bem
maior do que eles pensam que é.
Defendo o
direito à literatura, como Candido, pelo fato de que a leitura, ao menos em
minha crença persistente, pode um dia reduzir drasticamente a quantidade de
reacionários no mundo, fazendo as pessoas entenderem o humano em suas mais
diversas formas de manifestação. Tal entendimento, eu creio, fará com que elas
entendam a necessidade de se respeitar algo tão belo, profundo e infinito, além
de qualquer fórmula, que é a raça humana.
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