Mil rosas roubadas, de Silviano Santiago
Por Pedro Fernandes
“Será que escrevo esta biografia porque me quero perseguido e ferido por quem eu persegui e feri toda a vida? Escrevo-a para guardá-lo ainda ao lado, como se fosse criado-mudo à minha disposição? Ou a escrevo para sorver a inspiração dos pulmões que o rejuvenescia a caminhar pelas ruas de Belo Horizonte e o fortalecia no palco do Teatro Francisco Nunes? Escrevo-a para respirar o ar que ele não respira mais?”
Silviano Santiago, Mil rosas roubadas
Silviano Santiago. Foto: Louis Monier |
Não sei se o leitor despido do contexto a que se refere o mais recente trabalho do crítico literário e romancista Silviano Santiago poderá fazer uma leitura totalmente descompromissada
de avaliar se o narrado tem referência histórica fora dele próprio. Dizemos referência histórica como quem diz uma
relação com o fato acontecido, porque em se tratando de criação literária, não há
obra que não se alimente daquilo que se passa fora do universo escrito. A
quantidade significativa de referências externas e de figuras conhecidas do mundo de carne e osso do leitor devem deixar qualquer um, por
mais desavisado que seja, com certo interesse de, sair da obra e chafurdar na web, o universo que tudo contém, à
procura de simplesmente vê-las ou confirmar as relações aí estabelecidas.
Mil rosas roubadas se veste
do mesmo exagero romântico da música de Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni e é uma
tentativa biográfica ou uma subversão dupla ao gênero romance e biografia. No interior
da produção literária brasileira é um livro-interstício, não quer apenas dizer
sobre a vida de uma personagem, quer testar a própria natureza de quem narra e
sua relação afetiva sobre quem narra. E o resultado é um texto híbrido, como se apenas dessa maneira, pela pluralidade da forma narrativa pudesse servir de alimento à fome de presentificação do ausente. Se especula o dado biográfico, não se descuida de trazer a lume aquilo que, de fato, nos constitui, as histórias vividas e as relações constituídas
com nós mesmos e com os outros.
Trata-se de uma escrita de reencontro: entre tempos, entre pessoas,
entre situações. A resposta a uma cobrança nascida na cabeça de quem ainda
resta algum tempo e não quer deixá-lo escoar e tornar a memória em matéria de
ninguém. Narrado em primeira pessoa, o que
imprime um tom intimista e faz do narrador – por mais distante que esteja –
próximo de quem o lê, esta obra de Silviano Santiago é um extenso trabalho de
cesura do tempo a fim de, questionando-se a própria memória e os
acontecimentos, dizer de uma amizade tornada além disso durante toda uma vida de
duas pessoas: o próprio narrador e Zeca. Personagens que se conhecem quase como obra do acaso numa parada de bonde, convivem toda uma vida e a eferverscência cultural de um largo período da história brasileira e mais tarde reencontrados no leito
de um hospital entre a vida e a morte e entregue aos maus tratos de uma
medicina insistente em preservar, a todo custo, até o último suspiro do
paciente. O paciente é Zeca.
É a invasão da morte sobre a existência e a perda em definitivo da
possibilidade do próprio narrador em eternizar-se uma vez que ele estabelecera
quase por um pacto com o amigo a necessidade de que fosse escrita sua biografia,
os elementos propulsores a narração. Enquanto o morto tinha para si todos os
apetrechos necessários à escrita de um texto do gênero – recortes de jornal,
entrevistas, fotografias, depoimentos pessoais – e não cumpre com o prometido, o narrador, apesar de ser um professor renomado em História, não: dispõe apenas da lembrança sobre aquilo que foi vivenciado em comum ou que lhe chegou de forma atravessada a
partir de outras pessoas do círculo de amizades comum aos dois. Mas, ao invés,
de ir à procura de fazer um levantamento sobre a vida que não mais existe, ele
prefere, como quem também sente a morte se apresentar, ou ainda como quem está
na iminência de se tornar mais um no extenso rol de vidas desperdiçadas, recontar
ao seu modo, a vida do outro.
A convivência desde quando os dois tinham 16 anos e de quando se encontraram pela
primeira vez numa estação de bonde em Belo Horizonte é material suficiente para
escrita? E se o narrador, mesmo tendo convivido intimamente com o amigo, é pouco arredio pouco conhece diretamente da vida do biografado? O resultado é a impossibilidade de narrar como pede o gênero; é a impossibilidade de fazer reviver todos os acontecimentos, ou
mesmo sem a natureza do outro que lhe narraria e o que se mostra é um narrador que também apela para
falar sobre si. Amplia-se, assim, os jogos de construção do texto, situado entre os limites do romance, da
biografia (conforme dissemos acima) e da autobiografia. Trata-se de um processo
de rememoração em que é impossível deixar trilhar apenas por uma das três ordens
e o que Silviano alcança, no fim de contas, é questioná-las. Além de que escapa, nessa
tarefa, outra dimensão do escritor: a do ensaísta.
Por dizer isso, não são raras as ocasiões em que romance, biografia e
autobiografia são atravessados pelo tom do ensaio como quando se dedica
explorar em quase um capítulo a relação de Nabokov com à caça às borboletas, quando se dedica a explorar o lado de
ator da personagem biografada, ou do encantamento pela Era do Jazz, ou ainda a boa quantidade de escanção de sentidos sobre determinados verbetes. De modo que, pelo hibridismo da forma torna
aquilo que poderia se perder no recorte maciço
de informações ou no agrupamento cronológico de dados, num texto breve, leve e
que consegue não dizer uma imagem fixa da personagem biografada, mas dizer uma impressão
a seu respeito que afinal é isto a que se reduz a essência de um texto do gênero. Isto é, a
biografia, não é ao que parece um recorte de verdades, mas uma ficcionalização de
uma figura histórica, ou um exercício de impressão do eu sobre o outro.
A maneira com que o narrador de Silviano Santiago constrói a tessitura de Mil rosas roubadas é uma aula sobre o desenho dos afetos pela palavra: seus altos e baixos. Todo esse diálogo se constrói por
uma extensa recordação de objetos artísticos: seja a literatura, o cinema, o
teatro, as artes plásticas, a música. E pela demarcação de outra geografia – a que ultrapassa os lugares detalhados no mapa da cidade, seja a provinciana Belo Horizonte, seja as já efervescentes Rio de Janeiro e São Paulo. Como diálogo, as obras artísticas como os espaços, não estão situadas
apenas para determinação de certo grau de intelectualidade que alinhava duas
figuras de comportamento tão diverso. Nem é apenas um dado ou registro temporal.
Mas integram a cena narrada e por vezes estão situadas como modos dizer o que a
simples narração é limitada a dizer ou traduzir os sentidos e sentimentos sobre
os quais o simples ato escritural não consegue determinar. Destaquemos aqui,
apenas um exemplo para corroborar nessa observação: quando o narrador
encontra-se na UTI em visita ao amigo, chega à narração as vozes de uma peça encenada
por Paulo Autran – nada menos que Entre
quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. Nem é preciso se debruçar sobre os sentidos dessa presença uma vez já termos dito sobre a circunstância onde a recordação é manifestada.
Não é esse romance um romance de nostalgias – lugar até comum nas literaturas de
cunho memorialístico. Mil rosas roubadas
é também um adendo sobre o desencanto ou a reflexão sobre uma impossibilidade
de ser. Aqui se justifica o que dissemos no início do texto de que é este um
livro que contém a força exagerada da música cujo verso o intitula. A impossibilidade
do amante em se tornar o amado, ou do amado em suprir, por todo efeito o desejo
inacessível do amante, seja porque este não quer se arriscar, seja porque este não
tem a mesma força expansiva que tem o amado. Pode-se dizer que o narrador de Silviano
é o que se entrega ao amado mas não alcança ser plenitude, por medo do
desconhecido ou por excessivo apego à existência. Entretanto, enrosca-se pelo
desejo individualista de ter o outro todo para si, de ter a eternidade com os
dois toda para si.
Mil rosas roubadas se revela então
como a construção de um viveiro onde os dois possam tornar-se juntos, em
definitivo por toda eternidade. Se a princípio esse sentido é camuflado pela decepção
de descobrir que o extenso tempo seu dedicado ao amigo para que ele narrasse
sua vida foi tornado insignificância, a obra vai se mostrando como uma atitude de romper com a impossibilidade de dizer sobre si e de se entregar totalmente a
esse amor tornado cinza jogada do alto da Pedra do Arpoador. “Eu protegi teu
nome por amor” – Reza um verso de Cazuza, Ezequiel Neves e Reinaldo Arias. Aí
está outro verso capaz de dizer esse romance.
Mas não nos daremos de revelar o contexto a que
se refere o livro dito por Silviano como seu texto mais confessional. Outra crítica mais rasteira terá preocupação de deslindar o que não é necessário para a compreensão da obra. É preciso
que o leitor mergulhe sem medos nessa correnteza de acontecimentos e possa na
travessia recuperar quem são as personagens dessa extensa convivência ou dessa
extensa declaração dita não tardiamente porque em matéria de amor nunca é tarde
dizer que ama ou ainda desse encontro de tempos e vida diversa.
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