Do porquê sou feminista (ou pró-feminismo)
Por Rafael Kafka
Eu era uma criança sensível demais. Chorosa demais. E estava rodeado de
homens gabando-se de sua masculinidade, dizendo que em nossa família existiam
ladrões, bandidos, mas não “viados”, muito menos putas. Cresci rodeado de
amigos homens falando besteiras chulas em sequência, o tempo todo procurando
provar o quanto eram homens ou como eram mais homens do que os seus colegas
homens. Formei-me enquanto ser humano falando muito mais com mulheres, achando
muito mais divertida a sua presença cheia de uma profusão de assuntos maior e
mais diversificada, do que aquelas rodas de conversas masculinas cujo único
assunto eram as mulheres. Mas não mulheres de carne e osso: mulheres de carne
apenas, mulheres carne, mulheres que deveriam ser comidas sem dó nem piedade.
Sensível, comecei
a questionar a forma estúpida com a qual aqueles garotos agiam. O modo como
eles passavam o tempo todo falando besteiras e fazendo idiotices para
conquistar mulheres tolas em sua formação, as quais acreditavam ser aquele seu
destino: conquistar garotos idiotas para se sentirem desejadas e assim terem
uma melhor autoestima. Cresci não sabendo nada desse jogo de conquista baseado
no fato do homem dominador correr atrás de sua presa indefesa e coquete. Cresci
achando que eu não era homem o suficiente e mais confuso ainda pois dentro de
mim havia o desejo por mulheres em ebulição. Nem como homossexual eu poderia me
rotular e ficar tranquilo em meu canto oprimido. Eu me sentia na fronteira
entre dois lugares desconhecidos.
Eu era pouco
homem, pois ia para um campo de futebol existente ao lado da escola onde eu
estudava e ali sentava com a garota a qual considero meu primeiro amor (e que
hoje se tornou uma moça incrivelmente bela) e ficava a conversar com ela por
longas horas, mesmo sabendo que não haveria nada entre nós. Com ela, foi a
primeira vez em minha vida que eu realizei uma atitude muito presente em
meus atos: o de ser franco com uma garota e falar-lhe acerca de meu interesse
por ela e, em caso de negativa, manter-me ao seu lado para curtir uma boa
conversa, uma boa companhia.
Mas isso me tornou
menos homem. Para os outros, eu deveria me manter perto somente de mulheres que
me desse bola. Aquelas que me colocassem na chamada friendzone (zona amiga)
deveriam ser eliminadas de minha existência enquanto peso morto. Além disso, eu
deveria parar de ser tão falastrão, de ser tão formal em meu modo de falar, de
ser tão respeitador. Mulher deveria ser domada e se eu não soubesse fazer isso,
eu era um grande perdedor.
Tudo isso me soava
estúpido demais. Até o momento em que eu decidi, por medo de encarar o absurdo
da vida, realizar os meus atos estúpidos de anteriormente. Porém, há em mim uma
inquietude tão forte que se soma à falta de jeito para realizar a etiqueta de
muitos atos padronizados. E eu, por mais que tentasse, não estava apto a viver
uma vida machista baseada em arranjar uma namorada e posar para todos verem o
quanto eu era feliz, mesmo com todos os demônios pessoais por trás causando cenas
tragicômicas.
Para minha sorte e
para sorte de quem comigo estava, eu estraguei todos os meus relacionamentos. O
motivo? Todas as cenas de cunho machista narradas nos primeiros parágrafos
deste texto marcaram-me negativamente. Por não me ver encaixado dentro de um
conceito de homem, comecei a me sentir como uma criatura inferior, um ser sem
brilho, incapaz de fazer alguém feliz ao meu lado. Por ser criticado por
famílias e amigos, por nunca ser visto como um “homem exemplar”, tentei de
todas as formas me tornar esse homem em relações amorosas cheias de discursos
românticos e um amor eloquente. Em suma, tornei-me alguém com péssima estima
pessoal e uma consequente carência afetiva cuja essência era a procura por um
olhar apaixonado que confirmasse a beleza de um ser que eu desejava ser com
todas as minhas forças.
Como eu disse,
para a sorte minha e das pessoas com quem fiquei, estraguei com meu jeito
desajeitado tudo por diversas vezes. Para a minha sorte, mais especificamente
falando, acabar com meus relacionamentos foi uma bela forma de me libertar.
Nesse meio tempo, eu fizera leituras acerca do existencialismo e do feminismo e
comecei a entender o grande mal causado pela ideologia patriarcal. Nessa
lógica, todo homem deve ter uma mulher, mas um homem é considerado um ser
ativo, dominador, capaz de conquistar o mundo, enquanto a mulher é aquele ser
dócil que deve se manter em casa cuidando dos filhos e da base doméstica do seu
homem. Uma mulher é condenada a ser um suporte e nada mais: a sua existência está
presa a de outro ser.
Simone de Beauvoir
explica toda a base cultural que subjuga a fêmea do gênero humano ao seu macho
desde os mais remotos tempos da história da humanidade. Por em certas épocas a
força física masculina ter sido a base social em períodos históricos marcados
por guerras e caçadas pela sobrevivência, até hoje a mulher deve aguentar o
estigma de sexo frágil. Além disso, Simone mostra como a condição feminina é
ingrata e como muitas mulheres sofrem diante da inevitável certeza de que sua liberdade
será toda vendida quando ela encontrar aquele o qual a desposará.
Todavia, se o
patriarcado oprime sobremaneira mulheres, ele também oprime homens, esses seres
que conseguem ser presas daquilo mesmo por eles criado. Como eu disse acima,
quando criança eu era choroso demais, sensível a ponto de soluçar por causa de
uma bronca levada em público na sala de aula. Minha família que sempre se deu ser composta por homens viris, capazes de resolver qualquer conflito da forma
menos diplomática possível, durante muitos anos utilizou-se termos pejorativos
os quais tinham como meta me diminuir enquanto homem. Hoje, entendo que certos
termos usados naquele período e que remetem ao universo homossexual não
deveriam ser levado como ofensas em si. Ainda assim, as intenções carregadas
dentro daqueles termos me marcaram profundamente e eu cresci com uma imagem de
mim mesma muito prejudicada.
Basicamente,
cresci achando-me feio demais por ser franzino e ter acne, incapaz de
conquistar uma mulher qualquer, exceto se ela estivesse em estado de carência.
Cresci achando que nada do que eu fazia era bom, pois minha família em diversas
outras situações fez-me entender que não importava quantos livros eu lesse e
sim o fato de todos verem em mim um macho de marca maior. Quando comecei a
estudar feminismo e entendi mais acerca desse discurso patriarcal, entendi que
na verdade homem e mulher tem muito mais de construção social do que de
fisiológico. Nascemos com papéis de
gênero pré-formatados, discursos que dizem o que devemos e o que não devemos
fazer. Homens não devem ser sensíveis, não devem demonstrar emoções, não devem
ser fracos, devem ser ambiciosos, devem ser tudo o que puderem. Mulheres devem
ser o que os homens querem que elas sejam. Devem ser coisas possuídas por outras
coisas. Coisas passivas, sem voz, dominadas por coisas que pensam que são
livres quando na verdade são apenas simulacros de ser, títeres.
Quando conheci o
existencialismo, todos os questionamentos feitos em minha mente juvenil
ganharam uma força teórica muito grande. A minha sensibilidade causada pelo
contato com a literatura e pelo contato com as mulheres sempre fez-me procurar
entender suas situações, exceto no período nebuloso no qual procurei agir como
um machista dominador, ali meus 22/23 anos. A cereja do bolo foi quando comecei
a ler os textos de Simone de Beauvoir e de Clarice Lispector, quando comecei a
entender que mulheres, assim como eu e qualquer homem, eram seres além de
qualquer definição. Elas eram simplesmente o que eram: um andar, um desejo, um
livro lido, um curso concluído ou abandonado, uma transa casual, um romance
duradouro, um ser para-si, um ser pleno de sentido a partir da concretização de
si mesma em projetos de vida.
Ser feminista para
mim tornou-se uma questão lógica. Não havia como não ser diante daquilo que eu
possuía diante de mim. Não conseguia conceber homens e mulheres como coisas
fechadas, como sendo algo acabado, sem questionamento, sem chance de mudança.
Mas as situações em que cada um dos gêneros vive é bem diferente e revela
situações bem atrozes. Tudo se torna ainda mais cruel quando pensamos nas
pessoas cuja orientação sexual não é a heterossexual e sim a homo ou trans.
Tudo se torna mais perturbador quando a opressão se volta para formas de
sexualidade que não são catalogadas por visões antigas do ser humano, ainda
presas a um olhar binário de homem dominador e mulher dominada.
O discurso contra
o patriarcado deve se fortalecer em todas as instâncias possíveis. Não no
sentido de destruir a forma tradicional de família. Por sinal, quem acredita
que seja esse o objetivo de LGBTs e feministas realmente precisa estudar, como
diria Luciana Genro. O que se objetiva é ampliar o espectro de aceitabilidade
das pessoas, mostrar a cada vez mais pessoas que seres humanos são seres
humanos e não modos de ser previamente impostos, os quais não devem nunca ser
questionados.
O meu feminismo se
baseia nisso. Inspirado em existencialistas como Heidegger (apesar de seu
envolvimento com o nazismo e de seus estudiosos serem bastante conservadores no
tocante ao engajamento do pensamento filosófico em questões políticas
relevantes) e Sartre, passando por pensadores cujo foco é o discurso enquanto
produção sociocultural dotado de intenções e sem nada de neutralidade, como
Foucault, chegando a mulheres que procuraram refletir sobre a condição a
feminina enquanto ser condenado a ser livre dentro de limites impostos por
seres que se julgam superiores somente por terem um pênis; inspirado em tudo
isso, viso à desconstrução do pensamento machista, ao entendimento de seus
fundamentos para mostrar a possíveis ouvintes o quanto é absurdo esse
pensamento que há séculos norteia nossa sociedade.
Apenas há pouco
tempo comecei a me libertar das cicatrizes psicológicas causadas pelo
pensamento machista o qual não consegui herdar. Claro que há em mim diversos
vieses de comportamento patriarcal, sendo o principal deles a tentativa de auto
afirmar-me enquanto homem em certos momentos de meu cotidiano. Contudo, não há
mais em mim um discurso legitimador da opressão feminina e de outras pessoas as
quais não se encaixem no padrão heteronormativo, o que me deixa muito feliz.
Muito de minha “cura” se deveu às leituras literárias e filosóficas sobre a
condição da mulher em nosso mundo, o que me levou a criar empatia por sua
condição e a entender como é limitador demais viver em mundo que prende o homem
em seu eterno dever de prender uma
mulher. Ou melhor, a mulher.
Não devemos
esquecer de que existem diversos tipos de feminismos no contexto social atual.
Não sei dizer qual é o meu, apenas que dentro de um pensamento humanista pleno
eu procuro entender a condição de determinadas pessoas e o que causa os males
de tal condição. O feminismo para mim é um complemento do existencialismo, pois
me faz pensar que enquanto ser condenado a ser livre quero quer todos vivam de
forma plena as suas liberdades individuais, sem nenhum tipo de estorvo.
Neste sentido,
assumir-me feminismo é crer, como já tantas vezes se falou, que mulheres são
gente e merecem o respeito básico de andarem por onde e com quem quiserem, de
serem o que quiserem. Uma forma de garantir isso é mostrar aos homens o quanto
é tolo o seu papel de opressor promovendo essa desconstrução do discurso
patriarcal. Por isso, uso todos os espaços possíveis que posso para falar
daquilo que entendo como feminismo, sempre querendo aprender mais e mais em
prol de que mais liberdades sejam respeitadas, protegidas de discursos que
tentem fechá-las em conceitos sem vida própria.
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