Caio Fernando Abreu: traços biográficos, obra e aspectos da ficção
Por Francisco Aedson
de Souza Oliveira
Caio Fernando
Loureiro Abreu, o filho de Dona Nair e seu Zaél, nasceu em
Santiago do Boqueirão em 1948 e faleceu em 1996, na cidade de Porto Alegre.
Além de escritor foi dramaturgo e jornalista. Viveu por muito tempo em
São Paulo e Rio de Janeiro, além de em vários países da Europa. Apesar de
seu curto período de vida, publicou mais de dez livros de ficção, entre eles dois
romances: Limite Branco (1971) e Onde andará Dulce Veiga? (1990), bem como
escreveu várias peças de teatro e uma grande quantidade de cartas.
Porém, a maior
parte de sua produção, como ficcionista, consiste em contos reunidos em
antologias. Estreia no gênero com a publicação de Inventário do Irremediável em
1970, através do qual recebera o prêmio Fernando Chinaglia do mesmo ano e, em
seguida, publica O ovo apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Morangos
mofados (1982), Os dragões não conhecem o paraíso (1988), Ovelhas negras (1995),
Estranhos estrangeiros (1996). Durante sua vida de escritor, seus textos
receberam inúmeras premiações e adaptações para peças de teatro e cinema, além
de terem sido traduzidos para outras línguas.
Caio Fernando
Abreu, desde muito cedo, já demonstrava certa inclinação pela arte que viria a
desenvolver no decorrer de sua vida como escritor. Apenas com seis anos, a
criança alta e magra, de sobrancelhas grossas e bem desenhadas, escreve seu
primeiro texto, na verdade, uma história em quadrinhos, a qual intitulou de
“Lili Terremoto”, que contava a história de uma menina que queria fugir de
casa. A partir daí, não parou de escrever, pois continuou produzindo e criando
durante toda a sua vida.
Caio Fernando Abreu em fotografia da Primeira Comunhão. |
Aos quinze anos,
muda-se para Porto Alegre para estudar no Instituto de Porto Alegre (IPA), e
apesar dos estudos serem muito caros, sua mãe insistia para que ele tivesse uma
boa educação, afinal, ele ansiava por conhecer novas coisas, novos lugares.
Porém, o escritor não se adapta à escola, um internato onde ele estudava e
residia, por isso, escreve uma carta para seus pais pedindo para eles irem
buscá-lo, carta essa que revela desde cedo o seu lado dramático, a
teatralidade e o exagero, como podemos perceber no seguinte trecho do escrito:
“Pelo amor de Deus mãe, eu não aguento mais”! Veja se a senhora dá um jeito!
Isso aqui é um verdadeiro inferno” (CALLEGARI, 2008, p. 32).
De acordo com
Callegari (2008), Abreu era capaz de falar sobre literatura sem deixar a desejar
como qualquer pessoa que detivesse um vasto conhecimento sobre o assunto,
aspecto esse que influencia diretamente sua escrita, pois aos 18 anos, quando
escreveu Limite branco, já se percebiam traços característicos de seu estilo
como contista. A obra só foi publicada em 1971.
Em 1967, Caio
Fernando entra na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para cursar
Letras, porém o escritor tranca a matrícula para frequentar o curso de Arte
dramática. Nessa época, o contista ainda está preocupado em descobrir ou criar
um estilo que lhe fosse próprio. Do cenário das letras, João Gilberto
Noll foi um dos primeiros leitores do livro, com ele o gaúcho dividia o amor
pelos livros e pela leitura.
Abreu sempre foi
um sujeito à frente de seu tempo. Em plena ditadura militar, reunia-se com
vários intelectuais para falar sobre literatura e política, entre outros
assuntos. Nesse sentido, Callegari evidencia alguns comportamentos que
caracterizariam o escritor ao longo de sua existência: “o enfrentamento, a
busca de uma identidade, a vivência de experiência como busca de um significado
maior na vida” (2008, p. 36).
O poeta gaúcho
tinha uma verdadeira obsessão pela escritora Clarice Lispector, pois, conforme
ele declara, quando lia seus textos tinha a sensação de que nada mais havia
para escrever. Os dois, em suas obras, abusaram do conceito de epifania,
entendida como uma revelação mágica ligada ao drama vívido pelos personagens,
um despertar que propicia uma reflexão sobre a vida.
Além disso,
falar sobre relações amorosas sempre foi uma das principais preocupações do
contista, pois ele sonhava em viver um grande amor, uma paixão arrebatadora.
Contudo, ao seu modo, o escritor experimentou tudo, preservando com cuidado sua
privacidade, fato que o tornava uma pessoa sozinha e, talvez por isso, esse
tema seja tão explorado em seus contos, já que é recorrente em sua ficção a
representação de sujeitos solitários e melancólicos, como é o caso dos
personagens dos contos de O ovo apunhalado (1975), obra que versa sobre a
incomunicabilidade entre as pessoas.
Nos meados da
década de 70, Caio Fernando Abreu já era um escritor reconhecido,
principalmente em Porto Alegre. Nesse período publica Pedras de Calcutá (1977),
o qual marca o amadurecimento do contista. Em 1982, publica Morangos Mofados,
com o qual atingiu seu auge como contista.
Em 1994, já de
regresso a Porto Alegre, continuou a se dedicar aos seus escritos e a revisar
seus textos, como foi o caso de O inventário do irremediável. No dia 25 de
fevereiro de 1996, morreu aos 47 anos de idade, vítima de complicações com a AIDS.
Hoje, é reconhecido pela crítica literária como um dos mais importantes
contistas da literatura contemporânea, pois em sua ficção evidenciou uma temática
ímpar e uma linguagem nada convencional para os preceitos literários, até então
cultivados na literatura brasileira (cf. NÓBREGA JUNIOR, 2007).
Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles, Robby Cardoso e Hilda Hilst. |
Caio
revolucionou alguns padrões de comportamento, fixando amplas paisagens da
marginalização a que foram submetidos os jovens brasileiros em virtude da
ditadura militar, trazendo à tona o interesse pela ecologia, pela
espiritualidade, pela vida em comunidade e, sobretudo, pelos valores de uma
cultura alternativa, violentamente reprimida no Brasil dos anos 70.
Abreu integra o
grupo de escritores que produz uma ficção urbana, de caráter intimista. Em sua
narrativa, a cidade muitas vezes assume a condição de personagem, já que ganha
o estatuto de ser ficcional, apresentando-se ora como melancólica, ora como assustadora,
ora angustiante. Seus textos apresentam temáticas e personagens que convivem
cotidianamente com a revolução tecnológica e industrial, que, diante das
fragmentações, acabam sendo conduzidas ao desequilíbrio, ao isolamento e aos
pensamentos introspectivos, o que reflete diretamente na constituição da
identidade dos sujeitos que se encontram nas metrópoles.
Na concepção de
Porto (2003), os contos do poeta gaúcho exploram a condição de indivíduos que
não têm o direito à liberdade e à esperança, por isso vivem isolados, presos em
seus apartamentos. Esses aspectos expressam na obra do autor as angústias e as
frustrações de uma sociedade capitalista que vive dividida entre o sonho e a
ilusão do amor e da realidade, que aparece na vida desses sujeitos.
Um dos aspectos
marcantes nas narrativas de Abreu é a ausência de nomes próprios para indicar
seus personagens ficcionais, o que marca o anonimato vivido por esses
indivíduos nos grandes centros urbanos, lugar em que as relações são totalmente
fragmentadas. Essa característica aparece em quase todas as suas narrativas,
com raras exceções como pode ser observado em “Sargento Garcia”, em que o
protagonista é nomeado como Hermes; em “Aqueles dois” que as personagens
centrais chamam-se Raul e Saul; ou em casos como visualizamos na narrativa
“Pela noite” de Estranhos estrangeiros (1996), em que os seres ficcionais criam
nomes, assumindo uma identidade. Porém, é válido mencionar que quando isso
acontece esses nomes não aparecem de forma gratuita, pois possuem um valor
semântico/simbólico considerável para a compreensão das histórias narradas.
No que se refere
ao trato com a linguagem, a prosa de Abreu se coloca como escrita enigmática e
fragmentada, pois não oferece respostas para os questionamentos que surgem
durante a leitura. Sua linguagem requer uma maior discussão sobre o seu
processo de evolução, pois parte de “um sujeito que não concebe a ideia de
plenitude e que pede um debruçamento mais demorado sobre o texto, o contexto e
os próprios conflitos humanos” (FERREIRA, 2007, p. 01).
Caio Fernando
Abreu, liga-se a uma estética que tem sido compartilhada por inúmeros
escritores contemporâneos, como: Hilda Hilst, Rubem Fonseca, Silviano Santiago,
entre outros. Suas narrativas misturam a linguagem coloquial com a formal, não
sendo raro, em seus textos, palavras consideradas vulgares, registros e
expressões de outras culturas. Salientamos, ainda, que ao lermos seus contos é
impossível não percebemos a poeticidade que neles reside, além do lirismo e das
construções metafóricas, uma confluência de prosa e de poesia, obrigando ao
leitor refletir sobre os gêneros literários e suas hibridizações (PORTO, 2005).
A linguagem dos
escritos de Abreu é de difícil compreensão, tendo em vista ser uma linguagem
que conta com a seleção de imagens sensórias, o que torna suas narrativas
velozes e fragmentadas, a exemplo do conto “O mar mais longe que eu vejo” de o Inventário
do irremediável (1970), que em sua construção não há presença de elementos
linguísticos para marcar as relações casuais e conclusivas, o que possibilita
uma leitura sem pausas.
O conto evidencia a história de um protagonista não
nomeado, perseguido pelo regime militar e que em virtude dessa experiência
dolorosa perde sua identidade. Desse modo, é possível afirmar que sua forma
peculiar de narrar desconcerta o leitor, característica essa bastante presente
nas narrativas contemporâneas. Sua escrita é, assim, de natureza introspectiva,
além de ser construída a partir de sentimentos que envolvem dor e ironia,
causando nos leitores expectativas e desassossegos, que são responsáveis por
provocar as inúmeras sensações experimentadas por eles no ato da leitura.
Como
exemplo disso, temos o conto “Retratos” que faz parte da coletânea O ovo
apunhalado (1975), que narra, em primeira pessoa e em forma de diário, a
história de um sujeito solitário que mora num pequeno apartamento na cidade
grande, de modo cronológico, obedecendo ao período de uma semana. De acordo com
Oliveira (2011, p. 62) na medida em que é lido o diário, “são revelados para o
leitor os sentimentos do narrador, seus medos e suas angústias mais íntimas,
tanto que o leitor já se sente solidário com a situação por ele vivida”.
Através da leitura ele acompanha, gota a gota, o fim próximo do narrador
protagonista do conto.
Diante do
exposto, podemos perceber que refletir sobre o universo poético do escritor
Caio Fernando Abreu é mergulhar num poço de revelações e ilusões, além de ser
extremamente prazeroso, o atributo aristotélico da catarse ou mesmo o prazer
causado pelo jogo do texto. Tendo isso em mente, nossa busca volta-se, de forma
específica, a partir daqui, a investigar a representação do duplo em suas
obras, observando as singularidades no trato com o problema do desdobramento do
eu para que em seguida possamos observar as marcas do duplo, através da
metáfora do estranho, nos capítulos dois e três.
Ligações a este post
>>> Leia aqui cartão postal inédito de Caio Fernando Abreu
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***
Aedson é Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde escreveu dissertação sobre Caio Fernando Abreu.
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