Aldeia Nova, de Manuel da Fonseca

Por Pedro Belo Clara




Levado aos prelos no já distante ano de 1942, o trabalho que hoje trazemos a discussão foi o primeiro livro de contos publicado por este destacado vulto do neo-realismo português e membro influente do afamado grupo do Novo Cancioneiro: Manuel da Fonseca. Com o intuito de melhor elucidar o nosso caro amigo leitor, importa referir que este movimento literário, encabeçado por nomes como Fernando Namora, Carlos de Oliveira ou Mário Dionísio, que visava através da poesia propor uma válida resistência ao regime fascista em vigor no país, não obteve grande continuidade ou logrou sequer concretizar mudanças efectivas no panorama social e literário da época, muito por culpa da subsequente dispersão produtiva dos seus membros. Contudo, o posterior sucesso dos mesmos, bem como o elevado estatuto adquirido por suas obras, é deveras inegável.

Se bem se recorda, levámos já ao seu conhecimento o principal romance do autor em causa (a saber: Seara de Vento - leia texto aqui), pelo que, no seguimento de uma intenção meramente divulgativa, a abordagem a um livro de contos, como o é Aldeia Nova, adquire toda a razão e sentido. E, desde já, deixar-se-á escrito o intuito de numa publicação futura dedicar um artigo ao trabalho poético de Fonseca, completando assim, com a devida proporção e propriedade, a análise e a amostragem dos três campos literários mais explorados pelo autor: poesia, conto e romance. As crónicas merecem de igual modo uma palavra de honra, mas é um facto que tendencialmente esse trabalho, embora de inquestionável qualidade, é por motivos de popularidade remetido para planos secundários. Não obstante, valerá a aposta que o leitor fizer em sua leitura.

Partindo, então, de algumas ideias expostas no anterior artigo sobre este autor, poderemos desde logo comprovar a presença da característica regionalista que quase universalmente marca a obra de Manuel da Fonseca. Sendo um escritor do Alentejo e dos alentejanos, entre os quais nasceu em 1911, foi de igual modo uma das suas vozes mais límpidas e originais (somente ultrapassada, muito provavelmente, pela de Florbela Espanca), que nunca se coibiu de efectuar as denúncias necessárias em pleno vigor do regime ditatorial. Como tal, o seu trabalho, como sucedera a tantos outros artistas, era vigiado bem de perto pela censura vigente. A sua obra é marcadamente crítica, como assim se depreende, composta através de uma abordagem de aparência simples às questões de então. Através de um retrato da realidade, sempre sublinhando o contraste entre os mais e os menos favorecidos economicamente, Fonseca imortalizou por palavras as árduas vivências da sociedade essencialmente rural do Alentejo na primeira metade século XX. Somente mais tarde, em sua obra este regionalismo diluir-se-á, focando-se a mesma no ambiente cosmopolita da capital, Lisboa. No entanto, o realismo do seu traçado somente se apurou com o render dos anos e o engendramento de futuras publicações.

Concluir-se-á que grande parte do legado literário de Manuel da Fonseca compõe-se de retratos de realidades algo esbatidas nos dias correntes, sendo contudo a inegável prova de que tais vidas se desenrolaram e que tais acontecimentos se sucederam. Em derradeira hipótese, os retratos servirão de aviso para todos os que habitam os tempos vigentes, um aviso para que os erros que levaram ao surgimento de tamanhas questões (lento desenvolvimento do país, desemprego, distribuição não uniforme da riqueza) não se tornem a repetir. E basta entender que há somente quarenta anos atrás tudo o que se descreve, com maior incidência ou menor desvio, ainda existia.

Composto por doze contos que fielmente obedecem às premissas antes expostas, Aldeia Nova foi escrito entre os finais dos anos vinte e trinta do século passado, pelo que se trata, indiscutivelmente, de um trabalho produzido durante os primeiros anos de actividade literária do autor, que antes se aventurara, com pouco sucesso, num curso de Belas-Artes. A grande maioria dos contos aqui presentes foi publicada em diversos jornais e revistas da época. Esta tendência em colaborar com tais meios de comunicação fora, aliás, bastante frequente ao longo da  carreira literária do autor, conhecendo o seu auge através das famigeradas participações na sempre contestatária “Seara Nova”.

Como um utilíssimo anexo a esta obra, surge o prefácio escrito pela mão de Fonseca em 1984, naquela que se julga ter sido a derradeira revisão deste trabalho. Assim sendo, as narrativas apresentam-se já num molde devidamente formatado e amadurecido, ainda que em relação ao conteúdo da edição dos anos quarenta nada de relevante tenha sido expurgado. Mas, como dizíamos, no prefácio da edição que em 2009 o Grupo Leya, através do seu ramal BIS, lançou (sendo essa a mais recente das que actualmente estão disponíveis), poderá o leitor encontrar a explicação dos motivos de criação artística e certas curiosidades sobre os trabalhos reunidos em Aldeia Nova contados pelo próprio autor.



Mas retomemos a discussão do livro propriamente dito, por ser essa a nossa escolha para a quinzena que se avizinha.

Ler Manuel da Fonseca é regressar a um tempo ido, como já sabemos. Nalguns casos, conhecê-lo através do mergulho num universo de charnecas e searas paradas,  de planícies de melancolia sem fim, de casas de branco caiadas, de largos onde o povoado se reúne ao final do dia (o tão bem descrito «centro do mundo») e de personagens de nomes tão castiços quanto os de Zé Cardo, Estróina ou Maria Campaniça o são. De um modo bem peculiar, aqui residirá talvez a maior beleza da literatura produzida por Fonseca, seja ela poética ou prosaica – beleza essa que o seu marcado realismo soube aprimorar. Esse estilo de produção, aliás, torna vívida a experiência literária, quase palpável aos olhos do leitor que nela se perder.

Vejamos agora como o conto de abertura, cujo excerto publicamos, ensaia magistralmente o tom para os demais:

«Valgato é terra ruim.
Fica no fundo de um córrego, cercada de carrascais e sobreiros descarnados. O mais é terra amarela, nua até perder de vista. Não há searas em volta. Há a charneca sem fim, que se alarga para todo o resto do mundo. E, no meio do descampado, no fundo do vale tolhido de solidão, fica a aldeia de Valgato debaixo de um céu parado.»
(Campaniça)

Apesar de em sua aparência os contos não denunciarem uma interdependência convicta, além da óbvia, na verdade todos os doze se interligam e relacionam. O grau dessa evidência é somente o único elemento que varia. De modo mais vincado, e seguindo uma lógica evolutiva ou crescente, surgem os cinco contos que relatam a história de Rui Parral: desde a sua meninice, marcada pelo falecimento do irmão e pela partida dos pais para África, até ao seu retorno à vila natal, falido e abandonado pela noiva, contando apenas com a única esperança que assiste os que se acham desamparados na vida: o nascer do sol após o término da noite escura (ideia essa que em “Nortada”, o último conto da obra, é em jeito de parábola transmitida). Os restantes seguem a tendência de sempre, também verificável na poesia que produziu: repetição do nome de lugares (Cerromaior) e pessoas (Maria Campaniça) como sendo pertença de um universo só e em constante interligação. A título de exemplo, e sem excluir a curiosidade que sempre se instiga, aqui se transcrevem dois ilustrativos poemas:

Em Cerromaior nasci.


Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.

E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.

(“Maltês”, I – Planície, 1941)


Debaixo do lenço azul com sua barra amarela
os lindos olhos que tem!
Mas o rosto macerado
de andar na ceifa e na monda
desde manhã ao sol-posto,
mas o jeito
das mãos torcendo o xaile nos dedos
é de mágoa e abandono...
Ai Maria Campaniça,
levanta os olhos do chão
que eu quero ver nascer o sol!
(“Maria Campaniça” - Rosa dos Ventos, 1940)

A linguagem utilizada é clara e concisa, com os habituais modelares a que o realismo exige. Contudo, e se pensarmos em outros autores de forte cariz regionalista, como Urbano Tavares Rodrigues, também ele já neste espaço em tempos falado, concluiremos que Fonseca não adquire contornos tão rígidos e fechados quanto estes. O regionalismo existe, sim, mas essencialmente, e com notório acréscimo, em termos paisagísticos e na definição de cada personagem, ao invés de impresso no vocabulário comummente utilizado – que de um modo geral é corrente. A única excepção a esta tendência é, aqui, o conto que nomeia a obra, “Aldeia Nova”, onde o regionalismo das palavras adquire um sentido mais vincado e, para muitos, algo indecifrável. Não obstante, é um facto que tal experiência confere ao texto uma genuinidade ímpar, por mais que possa dificultar a sua leitura ou tradução.

São assim estes doze contos o resultado de muitas histórias que Fonseca escutara durante a sua infância, aquelas que então tanto o fascinavam durante os longos e gélidos serões de Inverno. Como autor, é indiscutível que adquire nesta obra o justo epíteto de “contador de histórias”, tal como seu pai o era. Tanto que o próprio Fonseca confessou sentir-se um mero escriba na composição destes trabalhos, na vez de um autêntico criador. Impregnados de uma forte veia social e humana, exposta através da denúncia que o simples relato de determinadas evidências permite realizar, ao melhor estilo de John Steinbeck, são imortalizadas as agruras da vida rural, as quase lendárias figuras dos malteses e dos ganhões e os cantos alentejanos que de dor coloriam a escuridão de uma noite sem estrelas (capazes de conceder às narrativas do volume uma dimensão profunda e vívida):

«No terreiro, os homens cantam a desolação que vem de noite e lhes aperta o peito. Vozes arrastadas como o vento gemendo num pinhal. Choro, mágoa, raiva.» (Campaniça)



«Não tem perdão, minha mãe
pôr-me no mundo a viver...
Sou trabalhador de enxada:
fui condenado ao nascer»
(Aldeia Nova)

Não se espantará o leitor, assim, com os mudos suspiros dos homens e das mulheres que a espaços polvilham estas histórias, eles que incessantemente sonhavam em sair das vilas onde nasceram, ansiando melhores condições de existência – uma vida, em suma, e não uma tortuosa sobrevivência renovada no lento escoar dos dias.

«Maria Campaniça, quando era solteira, pensava todos os dias em fugir da aldeia. (…) Depois apareceu o Baleizão com conversas, à noite, na soleira da porta. E o mesmo desejo continuou: fugir de Valgato. (…) Agora Maria Campaniça há muito que vive com o seu homem. Quando quer saber os anos ao certo, conta o número de filhos. (…) Uma noite,  Maria Campaniça sonhou que era velha e morria sem sair de Valgato».
(Campaniça)

Só os grandes conseguem de forma tão sublime, e ao mesmo tempo singela, capturar com uma pungente fidelidade a alma de uma região e dos seus habitantes.  Manuel da Fonseca, sem que dúvidas sobrem, foi um desses autores. Ainda hoje, através dos seus acurados retratos subsiste o eco de um tempo que não se deseja reavivado; ainda hoje, de suas palavras se retiram valiosas ilações que o Homem do novo milénio jamais deverá olvidar. Mais do que uma realidade extinta, é uma potencial vivência que corre sérios riscos de se tornar no futuro de alguns.

«Ao findar o dia, comida a última côdea, ganhões e malteses para ali ficam longo tempo, adormecendo à custa de histórias e descantes. Por trilhos de carros, subindo o cabeço onde se ergue o monte, ainda a essa hora, de sábado para domingo, vem gente para o paleio, que dura até tarde. Mas, com as sombras alastrando, por todo o descampado, alastra a solidão que não tem eco para histórias e depressa puxa cantigas, tristes e largas como a noite alentejana»
(Aldeia Nova)


 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).


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