Adonis
Adonis não crê em Deus, mas vive próximo do céu, numa torre de 37
andares da La Défense, o bairro financeiro de Paris. Não parece o ambiente
típico para um poeta. Antes de se instalar no apartamento passou por quase
todos os bairros. Vive na cidade francesa há quase três décadas. Para o poeta o
lugar é mais iluminado; lembra-lhe Manhattan – logo quem escreveu Epitáfio para Nova York, publicado em
1971 e um dos livros mais famosos de um nome já traduzido em dezenas de línguas e
que muitos consideram o grande poeta árabe vivo. Numa entrevista ao El País recentemente, Adonis segue firme
em sua crítica ao capitalismo desumanizado e desumanizador, homenageia García
Lorca e Walt Whitman, fala sobre a queda das torres gêmeas e relembra a
acusação que sofreu de que o poema teria inspirado a Bin Laden. Acusação que
para o poeta é ridícula.
Seu último livro, Zócalo, foi
publicado em francês antes que em árabe. E mesmo antes de chegar à sua língua
será apresentado em espanhol. São textos em prosa nascidos numa viagem que fez ao México
durante a primavera há dois anos, mas se faz difícil ler páginas tão cheias de
deuses, sacrifícios e sangue sem pensar em outra primavera, a árabe, aquela
quantidade de revoltas que começaram a levantar atenção do mundo na Tunísia no
final de 2010. Nesse tempo, Adonis fez duas coisas que ganharam notoriedade da
crítica: sustentar que a primavera árabe não era uma revolução e escrever, em
2011, uma carta aberta ao presidente sírio, Bachar El Asad, pedindo-lhe que
dialogasse com a oposição. “Atrevido” foi a denominação mais suave que lhe
deram. Mais tarde escreveu reclamando que renunciava pela repressão
desencadeada sob seu comando. “O que eu pretendia com aquela carta era evitar a
destruição do país que mudara um regime fundado num golpe de Estado e por um partido único. Desagradecidamente os políticos não escutam os poetas” –
reclamou Adonis.
Ainda na mesma entrevista ao El
País perguntam-lhe por que não era uma revolução a primavera árabe, ao que
Adonis responde: “Porque uma revolução deve ter um discurso, e não havia: os
opositores jamais falaram de laicidade, de liberação dos direitos da mulher, de
mudar a lei corânica. Que revolução é essa? Só queriam mudar de regime e mudar
de regime não serve de nada quando permanece a mesma mentalidade. Os árabes têm
que buscar sua revolução interior, isto é, repensar a religião à luz da
modernidade e separar o religioso do cultural, político e social para que se
converta numa crença individual. Na Europa se fez essa revolução e se separou o
Estado da Igreja, que na Idade Média era pior que os mulçumanos de hoje. Eu não
tenho nada contra a religião como fé individual, mas estou contra uma religião
institucionalizada e imposta a toda uma sociedade. Há que anular as diferenças
entre confissões. O certo é, por exemplo, que no Egito os cristãos coptas
tenham os mesmos direitos que os mulçumanos.”
Questionado se estamos melhor ou pior que antes, Adonis é categórico:
“A Tunísia não está mal, é um país mais homogêneo, sem minorias, com um pé no
meio do caminho. Aí há certo diálogo. Mas vão sendo destruídos países inteiros:
Líbia, Síria, Iraque. Para que? Para nada, para ressuscitar apenas velhas
noções religiosas. Voltarem a suar palavras de há quinze séculos! Tem se
produzido uma regressão vergonhosa, humilhante. O Islã atual é uma religião sem
cultura. Não há mais que rituais e leis. Não há um só pensador. E quando surge
algum, ele é rechaçado”.
Adonis diz desconfiar de “toda revolução que sai de uma mesquita com
proclames políticos”, mas estende sua desconfiança às soluções saídas de
despachos dos Estados Unidos ou da Europa. O Ocidente não está interessado pela
oposição laica? “Os políticos ocidentais, não o Ocidente, não quero
generalizar”, responde. “Desgraçadamente, os políticos não se interessam de
verdade pelos árabes, os veem como fonte de riqueza – o petróleo – e como
espaço estratégico. Não se interessam pelas forças progressistas mesmo que
sejam, é certo, pouco numerosas. O que fazem as intervenções estrangeiras é
revitalizar as forças obscurantistas no mundo árabe. Colocam veneno em tudo. Quando um compra arma
e arma uns supostos combatentes, a uma suposta oposição, inventa um exército de
mercenários. O Estado Islâmico é uma criação da Arábia Saudita e dos Estados
Unidos. Agora têm de combater aqueles que eles mesmos armaram”.
Como no caso do Egito, diz resignado, na Síria volta a eleger o mal
menor e combater o Estado Islâmico. Partidário acérrimo da laicidade, mas de
uma vez expressou suas dúvidas acerca do que tem sido chamado de islã moderado.
“Não existe. É uma expressão política. O que há são mulçumanos moderados. E são
poucos. Há um islã e uma interpretação que é ideológica. Nisso é como os outros
monoteísmos: há um profeta que é o último e que transmite verdades últimas.
Deus disse tudo e o homem deve obedecer. No monoteísmo o outro não existe. Não
se reconhece como parte da busca da verdade porque a verdade já tenho eu. A
base de nossos problemas não é o islã como religião, é a visão monoteísta do
mundo. Por isso é necessário separar a religião do Estado. Não haverá
democracia se isso não mudar. Não falo de democracia como sistema perfeito, mas
como reconhecimento do outro. E de reconhecimento não como tolerância, porque a
tolerância esconde um aspecto racista: já te tolero porque tenho a verdade e te
deixo falar. O ser humano exige a igualdade. O monoteísmo é antidemocrático.
Autor de duas dezenas de livros de poemas e de vários ensaios de
literatura e política, Adonis tem tanta fé na poesia como pouco na religião.
Uma e outra, diz, estão nos antípodas porque “a grande poesia sempre é laica. A
poesia é a pluralidade, a unidade dos contrários. É o oposto da religião
inclusive em termos históricos: em nossa história de mulçumanos não houve
sequer um só grande poeta que fosse crente. Nunca”. Os místicos “são um caso à
parte”. Adonis tem dedicado às relações entre sufismo e surrealismo uma obra
de referência. “Mudaram a noção de realidade e Deus. Por isso foram rejeitados.
Para o monoteísmo, Deus é uma força que dirige o mundo desde o exterior, para o
misticismo é imanente, forma parte do mundo. Deus é o mundo.”
“Creio que no mundo há algo misterioso e que temos de estar atentos a
esse mistério. Daí a atitude de questionar sobre as coisas. Chame isso como
quiser, mas não sou crente. Sou arreligioso. A religião é uma ideologia e toda
ideologia é falsa” – diz Adonis ao relembrar que seu pai era crente. “Era
agricultor, mas conhecia bem a cultura clássica. Nunca me disse faça isto, isto
não se faz. Sempre dizia: ‘Decidir, meu filho, é fácil. Tudo que quero de você
é que pense bem, que volte a pensar bem e que logo decida’.” Já a mãe era
analfabeta. “Era pura natureza, como uma árvore, uma fonte, uma estrela”. A lei
islâmica estava na família, mas não nasceu numa comunidade chiita, nem sunita.
Eram mais abertos. “A compreensão individual”, recorda, “tinha seu espaço. As
mulheres, por exemplo, não usavam véu”, objeto contra o qual o poeta é
totalmente contra. Para ele, a beleza do ser humano está acima de todas as
coisas, “a beleza do ser humano não deve ser velada”.
Conta Adonis que até sua mãe terminou chamando-lhe assim, Adonis. É que
seu nome civil é Alí Áhmed Said Ésber. Não falta quem diga que elegeu um
pseudônimo blasfemo, por ser pagão, para provocar – “os ignorantes estão por
toda parte” – mas, a verdade é que acabava de ler a história desse mito grego
quando buscava um apelido para enviar seus poemas a uma revista que sempre o
recusava. Acertou. A audácia parece haver marcado sua vida. Nascido em 1930 em
Al Qassabin, uma aldeia ao norte da Síria, com 13 anos recitou um poema de sua
safra diante do presidente do país quando de uma visita pela região. Quando
este lhe ofereceu uma recompensa, o menino respondeu: “Ir para a escola”. Sete
décadas depois, o escritor recorda como se o acontecimento houvesse se passado
com outro, embora recorde com admiração a boa memória daquele menino. “Sabia a
poesia árabe completa, o Corão todo. Agora? Já vai esquecendo. Há que esquecer
para criar. Um dos problemas dos árabes é que vivem em sua memória, não na
vida”.
Fiel a seu caráter inquisitivo, o escritor aproveita qualquer momento
para criticar os males de seu povo. Embora, mesmo a noção de povo lhe espante. “É
uma ideia política desinteressada. Dentro de um povo há milhares. Um povo nunca
permanece unido mais por ideias superficiais.” E a identidade, “segundo a noção
em uso, a identidade como um pertencimento, nisso é central o passado: de uma
família, de uma raça, de um povo... Para mim o essencial é o indivíduo, embora
o indivíduo não se entenda sem o outro. Não podemos imaginar um ser que nasce
só e vive só. A identidade é uma criação perpétua, uma abertura, não uma
aquisição. Não se herda porque o ser humano é uma projeção em direção ao
futuro: cria sua identidade ao criar sua obra”.
Adonis não tem medo de dizer o que diz, mas reconhece que já teve. Por isso se mudou da Síria em 1956, depois de passar um ano na prisão por criticar ao
regime. Ao sair da prisão foi para o Líbano. Como um clandestino, convertido num sem
pátria. No país vizinho moravam parentes seus e por isso não foi difícil obter
nacionalidade libanesa, que conserva desde sempre. Passou vinte anos sem poder
voltar ao seu lugar natal. Por isso diz que nasceu três vezes: em Al Qassabin,
em Beirute e em Paris. No Líbano nasceram suas duas filhas e ele se converteu
num dos modernizadores da poesia árabe abrindo-a à vanguarda universal e à
formas como o poema em prosa e o verso livre.
Depois de publicar títulos como Cantos
de Mihyâr, o Damasceno, A palavra das
origens e Homenagem às escuras coisas
claras, a invasão israelita ao Líbano deu lugar ao relato Livro do assédio (versão em português lida
a partir do título em espanhol). Em 1985 se mudou para Paris. Não tinha o que
fazer em Beirute. Tudo estava destruído, inclusive a universidade onde era
professor de Literatura. Na França, continuou escrevendo poemas já clássicos na
literatura contemporânea e o monumental O
livro, a Ilíada das letras árabes
para alguns, ou História que se desprende
num corpo de mulher, uma versão feminista, erótica e crítica da lenda de
Agar, concubina de Abraão e mãe de Ismael, pai mítico dos muçulmanos. É uma versão
antirreligiosa, como reconhece o próprio poeta. Um profeta que deserda sua
mulher e seu filho e os abandona no deserto.
Os fundamentalistas pedem recorridas vezes que se queimem seus livros. A
última vez, há alguns meses na Argélia. E Adonis não se cala diante desse
horror. “Não creio fazer mal a ninguém. Expresso minhas ideias. Se não, sinto
que não existo”. Para ele, não há dúvidas de que se começa queimando livros e
se termina queimando escritores. Ou tentando queimá-los. Basta pensar no
aconteceu a Salman Rushdie.
O poeta está entre os nomes possíveis ao Prêmio Nobel há alguns anos. Mas
diz não pensar nisso. Pensa em como
escrever poesia, em como poetizar o mundo. Tem-se dedicado, além da poesia, a
colagem. “Sem poesia, o mundo morre de frio, de cerração. Os três pilares do
universo são o amor, a amizade e a poesia. O resto é comércio”. Sabe ele o que
diz: vive rodeado de multinacionais de toda espécie. Mas gosta do bairro onde
vive. O mundo, um pouco menos.
A seguir, preparamos para os leitores um catálogo com três poemas inéditos traduzidos direto do espanhol mais um conjunto de colagens e um desenho do poeta. É só saborear.
* Texto escrito a partir de uma versão livre de "Los arábes deben repensar el islam" de Javier Rodríguez Marcos para o jornal El país.
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