Adolfo Bioy Casares: viagem ao coração de sua obra
Por Etgardo Scott
O casamento de Bioy e Silvina Ocampo (sentados à frente). Atrás as testemunhas: Oscar Pardo, Enrique Luis Drago Mitre e Jorge Luis Borges |
Em 1967 Bioy estava em Paris e escreve a Silvina: “Estou indo a Le
Touquet que não deve ser não mais que 230Km: a distância a Pardo, mais ou menos”.
Exato. À 220Km de Buenos Aires, em duas elevações de terra, um de cada lado do
caminho que leva ao povoado e com grandes letras brancas de alvenaria se ergue
o nome de Pardo. Hoje Pardo é uma velha estação em que os trens de carga já não
param, cercada por um conjunto de casas baixas, habitado por gente que trabalha
no corpo, em chácaras ou no comércio de Las Flores (a cidade mais próxima, a
35Km). Uma das tantas estações rurais abandonadas da província de Buenos Aires.
Mas, enquanto a estação também não abriga mais passageiros foi convertida desde
2003 no museu e biblioteca Bioy Casares e simultaneamente num museu
ferroviário. De modo que há um pequeno museu em cada sala da estação. Onde
alguma vez esperaram passageiros está o museu Bioy e onde alguma vez estiveram
os empregados está o museu ferroviário. À plataforma ainda chegou a Inadi e se
pode ler nuns cartazes do século passado: “Sala de senhoras”, “Sala de espera
geral”. Provavelmente, a Bioy não terá
lhe incomodado essa distinção.
Nossa consciência contemporânea à época – sempre algo esnobe – só fascina-se
em olhar com receio os museus e as efemeridades. Mas isso talvez se deva à rejeição
da história. Sem dúvidas, o certo é que imperturbável, indiferente a valores, a
história continua insistindo, influindo, gravitando. E é a história – a história
da literatura nesse caso – a que diz que Bioy escreveu em sua estância “Rincón
viejo”, aqui em Pardo, A invenção de
Morel; seu primeiro romance, em mais de um sentido, imortal. Também diz que
por esses anos e na mesma estância, Bioy escreveu uma propaganda sobre iogurte
para La Martona, a empresa de derivados de leite dos Casares, sua família materna,
iniciando a série de colaborações com Jorge Luis Borges. E por fim, a história
diz que uns meses antes da publicação de A
invenção de Morel, mas também em 1940, Bioy se casou com Silvina Ocampo em
Las Flores (os documentos são certos; a ata de casamento revela: Silvina
Inocencia Ocampo); foram padrinhos e pousaram para as fotos Enrique Luis Drago
Mitre, Oscar Pardo e, outra vez, Jorge Luis Borges. Na fotografia de testemunha
Silvina e Borges trajam roupas claras, talvez branco. Borges tinha 39 anos,
Silvina 35, Bioy era novo – apenas 25 anos.
Exemplares das primeiras edições da obra de Adolfo Bioy Casares. Foto: Gentileza E. Scott/ La Nación. |
O museu Bioy da estação de Pardo não é completo; é breve, heterogêneo.
Mas há memórias. Como o dado de que uma biblioteca de El Cairo leva o nome de
Bioy, uma fotocópia da ata de casamento com Silvina, uma fotografia da avó de
Bioy (Domecq, de onde parte do célebre escritor de duas cabeças), várias
fotografias, alguns exemplares de seus livros. Os livros estão velhos,
amarelecidos, umedecidos, não são edições prestigiosas, mas por algum motivo,
talvez por seu deslocamento ou sua “idade avançada”, não perdem o poder de
atração nem o encanto.
A estação de Pardo. Foto: Gentileza E. Scott. La Nación. |
Fora isso estão as vigas largadas, prateadas, todavia
uteis, que sustentam os galpões vazios e oxidados. Enquanto os censos falam de
uma modesta redução de seus habitantes (em 2010 eram 159), em Pardo, agora há
um hotel que leva, não casualmente, o nome “Casa-Bioy”. E um pouco mais além
está a escola com outro nome familiar: Juan Bautista Bioy. O avô. O que chegou
da França em 1850 naquelas terras e construiu e deixou para a família milhares
de hectares e uma fortuna considerável; um homem que Bioy pouco chegou a
conhecer mas que, como recordava, era muito severo e mal humorado: seu pai lhe
dizia que havia aprendido debaixo de pau.
A escola de Pardo. Foto: Gentilza E. Scott. La Nación. |
Será algum dia este museu, este povoado, algo com a casa de Monet em
Giverny? Ou a Maison de Balzac em
Paris? Custa acreditar (outra vez a Argentina e sua relação com a história);
mas menos improvável é que já esteja adicionado para as atividades em dias de piquenique
em estâncias turísticas da região, onde se comam salgados fritos, se beba vinho
tinto e se aprendam os rudimentos para montar a cavalo.
Antes de A invenção de Morel,
Bioy publicou seis livros. “Primeiro publicar, depois escrever”, era a premissa
irônica de Osvaldo Lamborghini. Bioy, embora materialize, não acreditou que
cegamente na premissa; soube abjurar de
todos os livros; nenhum foi reeditado: Prólogo
(1929), Disparos contra lo porvenir
(1933) – com o feliz pseudônimo de Martín Sacastrú – Caos (1934), La nueva
tormenta o la vida múltiple de Juan Ruteno (1935), La estatua casera (1936), Luis
Greve muerto (1937). Foram livros na verdade alentados e custeados por seu
pai e são escritos produtos de um desejo de sua vaidosa juventude. Mas na
década de 30 se aproximou de Sur, conheceu Victoria Ocampo e através dela
Borges e Silvina. Decidiu mudar de pele.
Resignou com aceitação as carreiras de
direito e letras, assim com o manejo do campo. Para A invenção de Morel Bioy mudou a influência literária de seu pai
pela de Borges. A partir de então, Borges foi sua referência. Mas não era
suficiente, asilou-se durante três anos na estância de Pardo para ler, escrever
e corrigir. O projeto de escrita era guiado pela sua própria experiência: “escrevi
A invenção... menos pensando em
acertar que em não me equivocar”. E se bem o fraseado desse livro é duramente borgeano, A invenção de Morel já não contem o núcleo poético de toda sua
obra: aí estão o amor, a irrealidade, a irrealidade do amor, as representações das
frases tristes.
A invenção de Morel é
um efeito de releitura; com se até esse momento Bioy apenas houvesse se
expressado, e recentemente com esse livro decidisse ler-se. Bioy disse que
naquela voluntária, iniciática reclusão de Pardo leu tudo; dizia que aprendeu a
ler e que aprendendo a ler, aprendeu a escrever. Adquiriu sua escritura. Deduziu,
como Valéry, que uma escritura não prescinde de seu autor; e que, para inventar
ficções o autor tem de lidar com seus fantasmas. Em Pardo, recorrendo a
estância desabitada em meio do nada – que como disse seu grande amigo, é nosso
deserto – Bioy se parece bastante com seu herói, ao fugitivo atribulado da ilha
perdida que descobre uma máquina prodigiosa, um projetor de hologramas.
“Rincón viejo”, a mítica estância dos Bioy, está na rota 3 – sempre abarrotada
de caminhões – apenas um par de quilômetros antes de chegar a Pardo. Sem sinal,
sem nenhuma indicação, nem placa, mas se pode ver desde a estrada a nutrida plantação
de casuarinas que resguarda e oculta a casa. Quando era criança, Bioy ouvia
soprar o vento e sibilar as árvores e imaginava com medo a chegada de uma invasão.
Outra vez a história: não tão longe ia na sua infância o tempo de Roca; seu
próprio avô havia sido comandante do sétimo quartel de Las Flores. Pardo é o
lugar da infância; a primeira lembrança de Bioy pertence a Pardo:
“está olhando a lua, tratando de ver nela um homem num burrito, eu
teria três ou quatro anos e alguém – minha mãe, a babá – me havia dito que se
olhasse com atenção a luta eu veria aquele homem.”
A primeira recordação, o primeiro romance. A única mulher? Assim como
sabemos que não há origem sem discurso de origem, todo início tem algo de
retorno. Para começar a escrever de verdade, Bioy teve que voltar a Pardo. Teve
que reler e apropriar-se de sua história. Em A invenção de Morel, Bioy inventa uma variação de Robinson; há
outro homem só numa ilha que deambula entre ruínas e construções vazias, e que começa
a ver intermitentemente estranhas imagens; sobretudo a imagem de Fasutine,
aquela “coquete e risonha mulher” que contempla o mar ao entardecer e que se
torna o centro de sua narrativa. Uma ilha, um homem só, uma estância, um homem
só. Não podemos imaginar essa estância em Pardo, com suas habitações e
corredores enormes e desabitados, como a contagiosa ilha de Morel? Não se
parece Bioy, recluso em Pardo, com sua personagem? Não era seu próprio
prisioneiro só que buscando o Graal da perfeição ao menos a autenticidade de
sua escrita, o céu de sua própria consciência?
Dizia Lucho Bordenave, o apaixonado relojoeiro de Dormir ao sol: “Depois de um cativeiro como o que passei, você não sabe
o que é anda solto, de noite, pelas ruas do bairro”. É possível imaginar a satisfação
se não a alegria de Bioy depois de terminar A
invenção..., voltando a Buenos Aires, com o manuscrito debaixo de um braço
e Silvina do outro.
Como Canetti ou Stendhal, Bioy odiava a morte e também a velhice. Muito
a seu modo, tampouco pretendia ser imortal, infinito; desejava viver um pouco
mais. Cento e vinte, cento e trinta anos. Uma cifra literária, de longevidade
num texto fantástico de Bioy. Noutra dimensão deve acontecer. Nesse caso ele
ainda permanece vivo. Talvez fizessem uma comemoração na estância. É um belo espelhismo:
Bioy sai de Buenos Aires, toma a rota 3, ultrapassa os caminhões e os casamentos
lentos com seu Volvo e no quilometro 220 faz um giro e dobra à direita.
A modo de epílogo. Esteve duas vezes em Las Flores e em Pardo. A última,
faz alguns dias, se preparavam jornadas em sua homenagem e no hotel onde parei,
o Gran Hotel Avenida, havia murais dispostos para exibição de fotografias e
objetos de Bioy e a próximos a Bioy. Também me inteirei de que algumas vezes
ele esteve nesse lugar. Usava o quarto 11. O hotel é um típico e grande hotel,
feito para famílias e viajantes, conservado desde 1943. Também nele esteve
Borges, vi em algumas fotos de 1967; esteve em visita à estância do seu amigo.
Numa das vitrines encontrei com uma raridade: Luis Greve muerto. Um dos seis livros malditos, dos livros nunca
reeditados; o livro é o último dessa primeira fase da sua escrita – de 1937 – o
anterior ao A invenção de Morel. É um
livro de contos. Folheei, li alguns textos furtivamente. Sempre pensei que Bioy exagerava e agora comprovo que
não, que os contos são imaturos, soltos, imerecidos de está em sua obra. Numa das
primeiras páginas se anuncia depois de todos esses livros fracassados um a mais,
Teseo fatal; se avisa que está “em
impressão”. Evidentemente que Bioy rompeu com a ideia ou propôs deixar para a
eternidade essa edição. Há um dado bastante significativo: a editora se chamava
Destiempo. Talvez Bioy aceitara a hipótese seguinte: não pertencem esses livros
a outro mundo, a outro plano de tempo e de espaço? A uma dimensão diferente a
que começa em A invenção... e que segue
com todo o resto da obra? Ou quem esperava o Borges que veio dizer tanto depois de sua morte? Destiempo se chama
a editora desse livro que, como poderia dizer Macedonio, foi o último livro
mal. Destiempo. Um presságio. Bioy, todavia, não sabia lê-lo; embora pronto
seria um experto em escrever sobre essas coisas.
Ligações a esta post
* Versão livre para "Adolfo Bioy Casares: viaje al corazón de su obra", La Nación.
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