A pintura de D. H. Lawrence


D. H. Lawrence e a dedicação à pintura. 

Não é fácil imaginar que D. H. Lawrence jamais voltará a ser lido com a paixão e o reconhecimento depositado pelos leitores de há 40 anos, quando sua guerra cultural contra o puritanismo britânico ainda não havia sido ganha. Guerra que era contra a Inglaterra morta do pescoço para baixo, contra uma cultura que negou insistentemente a força da vida, uma cultura que esteve sempre revoltada com a própria natureza do corpo.

O legado puritano envenenou todo o século XX; instituiu o medo em torno do sexo a partir de toda forma de perversidade. Educou corpos a parecem paredes frias; higienizados ao excesso, alheio ao fluxo sujo da existência como Midlands, bairro de favelas formado por trabalhadores que vinham alimentar a fome da indústria inglesa naquela época.

Foi a frigidez dos ingleses que levou, em 1960, ainda, a Penguin Books ser processada pela publicação de O amante de Lady Chatterley, o romance mais conhecido de D. H. Lawrence. Por essa ocasião vem à tona todo o restante da polêmica em torno do livro e o escritor tornou-se um ícone daquela década apesar de ter morrido em 1930. Talvez por isso, ele sempre será famoso. Mas e lido?

Para ler D. H. Lawrence hoje não mais é necessário pular partes do texto. Chegamos mesmo a nos perguntar: onde estão os momentos sujos de O  amante? Tudo o que você encontra é apenas uma pregação lúbrica e um Lawrence que não pôde evocar o sexo com sua força; tudo o que ele pôde fazer foi declamá-lo, elevá-lo, tê-lo com grande coisa. O romance tornou-se, por essa maneira, junto com o escritor, figuração de um tempo; um tempo que ansiava a liberdade do corpo. 

No âmbito da literatura de expressão inglesa, outras passagens mais despudoradas, depois de D. H. Lawrence, têm sido alvo do mesmo puritanismo - que parece não ter arrefecido, mas apenas fechado os olhos para algumas situações, como as que o passar do tempo tem sido suficiente para provar que não pode evitar. Ulysses, de James Joyce terá sido (e ainda é) a mula da vez. Mas, diante de Lawrence, do seu louvor ao corpo nu, não pode deixar de escapar a pergunta: que diabos se passava na cabeça das pessoas daquele tempo que chegaram àquela imagem da proibição que chegaram.

Não há respostas que contradigam  o espanto que hoje, distante, nos causa a perseguição à obra. Pode-se apenas dizer que, mesmo com todo puritanismo, o sexo ganhou. Lawrence esteve na vanguarda. O problema se dá quando olhamos para ele e o vemos como muitos dos velhos soldados: foi aposentado e hoje figura com o peito cheio de medalhas. Tornou-se uma curiosidade acadêmica, uma leitura suportável. A vitória do sexo não se deu, sabe-se, pela mão dos seus defensores; como coisa natural a todos os seres, em algum momento ele não suportaria esconder-se. Explodiria como o jato de tesão acumulado!

Mas, tudo isso para dizer, de outra polêmica envolvendo os dois termos colocados em discussão neste texto: além da arte literária, Lawrence foi artista plástico e também um fissurado em estampar o nu, aquilo que era encoberto pela moral inglesa, para os olhos do público. Alguns de seus trabalhos do gênero não têm a qualidade de um artista plástico nato; chegam a ser figuras hilárias, mas não há qualquer registro de que ele se achasse um artista tecnicamente hábil; talvez a pintura tenha sido, como foi para muitos escritores, um exercício para alimentar o tempo.

Grande parte desse material chegou a servir a uma exposição e foi muitos anos depois, já no nosso século, reunido numa edição impressa. As artes plásticas foi-lhe uma forma de ampliar seu pensamento, sobretudo, sobre o corpo e as amarras do poder de docilizá-lo. Guiou-se pelo exercício artístico de William Blake; dele, Lawrence chegou a fazer cópias de sua obra e chamou-o de “o único pintor de quadros imaginativos, além da paisagem, que a Inglaterra já produziu”.

Sua produção do gênero acompanhou desde sempre, mas foi nos anos 1920 e depois de ter publicado O amante de Lady Chatterley que se dedicou mais extensivamente a produção plástica. Pintou visões eróticas com reverência para o corpo; bebeu na fonte dos temas renascentistas e sobrevalorizou a deformação e a urdidura de formas estranhas. Fez homens mais felizes com a exposição do corpo que as mulheres. Do corpo masculino acentuou formas - como nádegas - e para as mulheres deixou-as indefinidas. Retoca, em gestos dessa natureza a necessidade de o homem, principal figura no processo de puritanização da sociedade padece de um erotismo enrustido.

Uma das pinturas de D. H. Lawrence. O nu que transborda da literatura para as artes plásticas.

As pinturas, boa parte, foram expostas na galeria de Warren, em 15 de junho de 1929. Foi uma exposição que não durou muito. Foi mais um escândalo que uma exposição. Choveram notas de repulsa na imprensa inglesa - “Francamente nojento”, disse The Observer, “Grosseiro e obsceno”, classificou o The Daily Telegraph. Doze mil visitantes ainda chegaram a ir à exposição, fechada depois da intervenção da polícia que apreendeu 13 pinturas, incluindo uma que Lawrence fez em referência Bocaccio.

Na ocasião, o artista recebeu apoio de gente com Virginia Woolf, Jacob Epstein, Roger Fry e da galeria onde realizava a exposição. Depois de um longo processo, que se fosse perdido, suas pinturas iriam parar na fogueira, foi firmado um acordo: as pinturas foram devolvidas sob a condição de nunca mais serem exibidas na Grã-Bretanha. E hoje elas estão em coleções no Novo México e no Texas.

No seu ensaio “Introdução a essas pinturas”, escrito para aquela ocasião Lawrence reflete sobre pontos contundentes da cultura inglesa; a partir da observação de que “os ingleses produziram tão poucos pintores”. A Inglaterra simplesmente não tem uma tradição das artes visuais em comparação à França ou à Itália - a partir disso ele culpabiliza a atitude do inglês (e acrescenta os estadunidenses) sobre a vida: ambos, afirma, “estão paralisados pelo medo”. Concorda que nada poderia ser mais encantador que o destemido Chaucer; mas Shakespeare é mórbido pelo medo, medo das consequências. Sobretudo, das consequências do sexo; Hamlet, diz Lawrence, é aleijado pelo temor sexual que sente de Ofélia.

A face de pintor foi uma ampliação do prolífico contista, poeta, dramaturgo, ensaísta, tradutor que foi; e pelo exercício também destemido deve ser relembrada. Dedicamos a seguir um catálogo reproduzindo algumas dessas pinturas tão polêmicas naquela ocasião de 1929.




Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #599

Boletim Letras 360º #609

É a Ales, de Jon Fosse

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #600