A maior travessura da menina má: Elvira Vigna do cáustico ao agônico
Por Alfredo Monte
No café, em João
Pessoa, depois da apresentação do seu novo livro, Por escrito, e de um
sanduíche, Elvira Vigna espera os chuviscos passarem e espia pra ver o que vai
acontecer ainda... Chega uma senhora e pergunta:
— Então, está
satisfeita?
— Satisfeita, eu,
não! Nunca!
— Mas por quê?
— Acho que é porque
eu quero demais da vida.
— E o que é que você
quer agora?
— Tempo, acho que a
gente sempre precisa de mais tempo.
A senhora foi
embora... depois informaram à Elvira: era a dona do Café! Queria saber
se ela gostara do sanduíche.
No dia seguinte,
nem abriu o jornal para não ver a manchete inevitável: “Proprietária de café se
suicida em João Pessoa”1.
Rigorosamente
verídico, o diálogo acima é um típico-Elvira ao vivo! Poderia estar em qualquer um de seus
romances.
A heroína do
episódio vem construindo uma marcante obra como romancista desde o final dos
anos 1980, um universo áspero e cáustico, no interior do qual as protagonistas
reinventam-se socialmente, acumulando autoenganos e armadilhas, e nem assim se
furtando à lucidez (daí o uso feroz de uma primeira pessoa muito peculiar,
inconfundível, na narrativa).
Ela argamassou os
fundamentos desse mundo ficcional com os notáveis O assassinato de Bebê Martê (1997)2 e Às
seis em ponto (1998), chegando à maestria dos mais recentes Nada a dizer (2010) e O que deu para fazer em matéria de história
de amor (2012). Apreciei deveras este último, porém confesso que fiquei um
tanto preocupado, perguntando-me se as travessuras da menina má da nossa
literatura não tinham chegado a um impasse perigoso.
Tal ressabio entrou
no modo alarme quando descobri que o seu novo livro tinha 300 páginas, mais que
o dobro da maior parte dos títulos precedentes (O que deu para fazer em matéria de história de amor já era mais
longo que o habitual). Prolixidade e Elvira Vigna não pareciam uma combinação
concebível nem desejável.
Vão temor. Por
escrito representa um salto quântico, apresentando um fôlego maior, uma
amplitude e verticalização mais pronunciadas, mesmo levando em conta a agudez e
acuidade dos anteriores, enfim, uma envergadura romanesca que se ombreia com o
que de melhor o gênero pode proporcionar (penso nos livros de Don DeLillo, por
exemplo).
Temos mais uma
protagonista (Izildinha/ Valderez) que se “faz”, ou melhor, refaz na vida,
social e profissionalmente, para minar essa reinvenção (para a qual ela não tem
a menor convicção, movimentando-se desalentadoramente pelo mundo corporativo)
ao longo da narrativa, escrita (daí o título do romance, tão enganosamente
anódino) para — e contra — o complacente companheiro de muitos anos, só que dessa
vez os diques todos parecem ter se rompido, arrostando a reinvenção do próprio
Brasil das últimas décadas, o relato adquirindo uma feição radicalmente agônica,
para além do cáustico. Por escrito é dolorosamente “humano”, com páginas
progressivamente emocionantes, que nos deixam embargados.
Valderez viaja
muito, por conta do trabalho (ligado ao ramo do café) e das “pedras” da sua
vida interior. Chegando sempre antes (horas, às vezes) aos compromissos, ela se
sente à vontade numa espécie de limbo em não-lugares (quartos de hotéis,
aeroportos, metrô). Essa rota nebulosa começou muitos anos antes, quando uma
menina quilombola deixou-se seduzir por um fazendeiro, no Nordeste, e afastada
para bem longe — vai para o Rio — teve uma filha. Mais tarde, haverá um meio-irmão,
uma escada (o primeiro limbo?) num edifício, a qual servirá como improvável, nunca
substituído espaço de proximidade, e cujo encanto vai se quebrar com a queda de
um corpo, uma das “pedras” que a autoinventada Valderez (deixando para trás — para
os outros, é claro — a origem, o nome, os corpos-vítimas), bem a filha de uma
autoinventada Molly, a menina seduzida que vai se desfazendo das migalhas de
pão no rastro do passado, sempre em novos avatares.
Empurrando com a
barriga, como se costuma dizer, a relação com o destinatário de sua escrita,
Valderez decreta, no início do romance, o fim de suas viagens profissionais. No
entanto, leva o leitor para círculos cada vez mais enrodilhados e densos de uma
viagem por sua biografia, sempre a um passo de se desfazer/ocultar em versões e
camadas (para utilizar esse termo tão em voga). Então, vislumbramos o rosto
implacável de um país que se modernizou e avançou, tentando ocultar/rebocar a
desfaçatez e a renitência de suas forças sociais mais vorazes. O
aeroporto-igual-a-todos-do-planeta3 e o quilombo, pontos de fuga de
um dos textos mais reveladores da nossa “contemporaneidade”, tão insólita:
“À nossa frente,
avisam as placas, vai acontecer o seguinte, haverá uma retenção. E, depois,
tornam a nos avisar, vai acontecer outra coisa. Até o fim desse caminho, se o
mantivermos, saberemos o que vai acontecer. E só vai acontecer o que está nas
placas. Pressurosos, atenciosos, nos repetem: sabe aquilo que já avisamos? Pois
então, atenção, faltam apenas tantos metros para que aquilo que avisamos que ia
acontecer aconteça de fato.
O caminho de um
aeroporto para um centro urbano. Uma das linhas retas mais absurdas que conheço
e as tenho, muitas (...)
Tirando o mundo
real, o resto continuava direitinho. E nos avisavam o que ia acontecer à
frente, e tudo o que não tinha sido avisado estava proibido de acontecer.
Tirando o mundo real, o acaso, a gravidez de adolescentes, a chegada inesperada
de quem viaja, a queda em janelas ou a mudança climática anunciando que todos
os cafezais do mundo inteiro estão indo para o brejo, não são permitidos
imprevistos de nenhum outro tipo nesse caminho que, resolutos, seguimos”.
Nesse sentido,
tanto pela abertura quase alegórica quanto por um quê de cru, de não lapidado (felizmente)
no relato, com suas reiterações, sua obsessividade, sua insistência em não
“fechar” harmonicamente, parece-me que a grandíssima escritora carioca meio que
mandou às favas a “maestria” e foi às suas fontes, ao seu primeiro (e já acima
da média) romance, Sete anos e um dia
(1987), cuja reedição é muito necessária, um painel simbólico dos anos de
“abertura” entre a ditadura e o governo Sarney4.
Portanto, nossa
Elvira continua a indestronável rainha das trevas, com seu desassombro em
inventariar mazelas. Só que os matizes e contornos dessas trevas nunca foram
tão variados e surpreendentes. A meu ver, sua obra-prima. O que podemos esperar
a seguir?
Notas
1 Está certo que a dona sentou-se incautamente numa cadeira
vazia, ao lado da autora, sem se apresentar e tascou seu “Você está
satisfeita?”, mal sabendo que estava à beira do abismo.
2 Onde encontramos um momento típico-Elvira (quase
prototípico), pelo menos na caracterização das suas protagonistas, que mesmo
bem-sucedidas profissionalmente, estão sempre num corpo-a-corpo crispado com o
mundo:
"Mas nesse trem, lá pelas tantas, entrou um grupo de negros e o
trem estava quase vazio naquela hora e eles se sentaram no meu vagão bem perto
de mim e começaram a fumar. E eu sou meio sozinha, às vezes eu tenho vontade de
falar com alguém, mesmo que seja para brigar.
Então eu disse que era proibido fumar.
O cara ficou olhando para minha cara, sem acreditar, e disse what, e eu
repeti que era proibido fumar. Um casal que também estava no vagão tentou me
fazer uns sinais desesperados para eu não fazer aquilo e nesse momento veio o
cobrador e ele viu a cena e também me falou bem baixo, quando passou por mim,
para não me meter com aqueles caras. Mas o cara repetiu what mais uma vez e eu
repeti mais uma vez que ele não podia fumar no trem. Ele disse que não sabia
disso e eu disse, bem, agora sabe...".
3 Embora nos nossos, como ela mesma diz, haja o onipresente
cheiro do pão-de-queijo. Já aludi ao corpo-a-corpo crispado das heroínas
vignescas com o mundo. Vejamos uma das cenas de aeroporto em Por escrito:
“Me espichei demais na cadeira. Foi isso. Foi isso que pensei, na hora,
que era consequência da minha adaptação ao pré-moldado geral. Algum problema
com a circulação sanguínea no meu cérebro. Porque, bem na altura de meu nariz,
aparece um grupo que faz pouco sentido mesmo quando não em aeroportos e que, eu
pelo menos, nunca tinha tido a experiência de ver em aeroportos. No meio da
rua, sim, já vi. E nessas horas me encolho, busco cantos, portas abertas de
lojas, quando as há, um medo, como se tem medo de bichos em manadas. Sã esses
grupos em que todos têm cores iguais. Esse que aparece no aeroporto grita
vaaaaasco. Bandeiras e camisas nos ombros, como se fossem a capa de super-homem
que eles tantos desejam ser. E que acham mesmo que são, quando, como agora,
estão em grupo. Olham desafiadores para todos, um por um, querendo que alguém
diga meeeengo. Vasco é berrado com o < vas > em tom maior e o < co
> em tom menor. Era para ser, suponho, brado de orgulho. Mas é um lamento.
Lembro do < Lago dos cisnes > e do que Pedro falava. Que, se termina em
tom maior, é porque o cisne não morre. E que a partitura, portanto, está
errada. Chego à conclusão que o vaaaaasco é nosso < Lago dos cisnes >, o
mesmo erro, só que ao contrário. Pois se é em tom menor, não pode ser brado de
vitória. É lamento. Lamentam a perda de alguma coisa muito importante.
Concordo. Falta algo de muito importante neles. Eu quase choro...
Estão roucos, a cara cansada. Vieram direto, emendando de um ontem que
ainda não acabou. Welcome aboard. Os meus ontens também têm esse péssimo
hábito...”
4 E cujas primeiras páginas, sensacionais, já são mostra do
típico-Elvira. Depois, apesar da qualidade do texto e da força das personagens
(especialmente, as femininas—os homens em Elvira Vigna tendem ao fraco e ao
amorfo), a irregularidade se instala. É o único livro da autora aqui referido
não publicado pela Companhia das Letras (a edição é da José Olympio).
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