A carta em que Guimarães Rosa revela os bastidores de Sagarana
É tateando que sabe algum pormenor ou se tem acesso a algum arquivo melhor legível sobre o homem João Guimarães Rosa. Seus herdeiros têm imposto um rígido controle sobre os arquivos do escritor, o que, se em parte ajuda a preservação de uma ideia mais ou menos coerente sua, em parte mais atrapalha a visão mais ampla e que não se dê pela suposição biográfica a partir da obra, erro crasso, aliás.
No interior dos instrumentos de controle, aparece em 1983 pela mão da própria filha, Vilma, o livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, que vai para sua terceira edição; como descreveu a jornalista Marilene Felinto, da Folha de São Paulo, "é um relato entremeado
de cartas do autor para seus parentes, de discursos seus e de apresentações,
aulas, entrevistas e palestras conferidas pela própria Vilma sobre a obra de
seu pai". Mas, ainda citamos a própria Marilene, "acrescenta poucos fatos ao que já se conhece sobre a vida do médico,
diplomata e escritor que fez do sertão mineiro sua matéria de ficção e de
linguística, que transformou a mineiridade numa linguagem universal".
Da coletânea copiamos a seguinte carta*; é um texto bocado esclarecedor ou que revela algo dos bastidores de escrita de João Guimarães Rosa. Foi escrita por ele a João Condé, ao que parece a pedido do próprio destinatário igualmente curioso pelo trabalho artístico de Rosa. Apesar não ter tido um milésimo da sorte do amigo, João Condé, que circulou entre as figuras mais ilustres da literatura da época do mineiro foi um apaixonado pela literatura e colecionador nato. O paraibano foi durante muitos anos cronista e fundou com os irmãos Elysio e José Condé o Jornal de Letras. Bom, segue a carta: nela está alguns traços da gênese de concepção e escrita de Sagarana que foi o primeiro livro de Guimarães Rosa e aquele que o transformou numa figura das mais interessantes do cenário literário de então.
Prezado João Condé,
Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos deste seu
exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma conversa, a mais
extensa, possível — o imposto João Condé para escritores, enfim. Ora, nem o
assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé de couve, seja, o
livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo
e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto
das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.
Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que
é de João Condé.
Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... — quando chegou a hora
de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que
viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar
o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a
minha concepção-do-mundo.
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim representava,
como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do
temporal ao eterno, principalmente.
Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas.
E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto.
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia
já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de
normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades
e tradições — no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é
tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem
margens é o ideal do peixe.
Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu
amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e
companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!)
seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Éluard:
...“o peixe avança nágua, como um dedo numa luva”... Um ideal: precisão,
micromilimétrica.
E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as
chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo,
são taperas no território do idioma.
Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é
que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar
trabalhar a língua também em estado gasoso?!
Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas
histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago
de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era
mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque
conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores.
Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens
de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê
bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores
estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se
estorricar com a seca.
Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas
Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de
premeditação. Restava agir.
Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas,
dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha
terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti.
Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.
O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas —
em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento.
(Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945, foi “retrabalhado”, em cinco
meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).
Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de
dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José
Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato,
pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos” (título
provisório, a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas
viagens, logo após.
Como já disse, as histórias eram doze:
I) — O burrinho pedrês — Peça não profana, mas sugerida por um acontecimento
real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de
vaqueiros, num córrego cheio.
II) — A volta do marido pródigo — A menos “pensada” das novelas do Sagarana,
a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi
manipulada, em 1945.
III) — Duelo — Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a
anterior: a história foi meditada e “vivida”, durante um mês, para ser escrita
em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em
1945.
IV) — Sarapalha — Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro,
será ela, talvez, a de que menos gosto.
V) — Questões de família — História fraca, sincera demais, meio autobiográfica,
mal-realizada. Foi expelida do livro e definitivamente destruída.
VI) — (Uma história de amor — Um belo tema, que não consegui desenvolver
razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).
VII) — Minha gente — Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com
uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao
escrever as demais.
VIII) — Conversa de bois — Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso,
neste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto de
carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o
enredo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a pôr em caderno, no
domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha,
espécie de Minerva, outra história (n. 2) — também com carro, bois, carreiro e
guia — totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me
esqueci da outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada
recebeu da versão pré-histórica, que fora definitivamente sacrificada.
IX) — Bicho mau — Deixou de figurar no Sagarana, porque não tem parentesco
profundo com as nove histórias deste, com as quais se amadrinhara, apenas, por
pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu sentido é outro. Ficou guardada para
outro livro de novelas, já concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja
escrito.
X) — Corpo fechado — Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o
personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e cheguei a desconfiar de
que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência. Assim, viveu ele para
mim mais umas 3 ou 4 histórias, que não aproveitei no papel, porque não tinham
valor de parábolas, não “transcendiam”.
XI) — São Marcos — Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória,
para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais
trabalhada do livro.
XII) — A hora e vez de Augusto Matraga — História mais séria, de certo modo
síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à
forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu
estilo era o que eu procurava descobrir.
Por ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Sagarana. Se
você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da 2ª edição —
algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de dezembro de 1937 e a
data em que o livro foi entregue à Editora Universal. Serve?
Com o cordial abraço do
Guimarães Rosa
* ROSA, Vilma Guimarães. Relembramentos: João Guimarães
Rosa, meu pai. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2014
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