Vozes anoitecidas, de Mia Couto


Por Pedro Fernandes


Primeira edição de Vozes anoitecidas publicada em Moçambique e primeira edição publicada no Brasil.

Esta uma coletânea em que, pela primeira vez, o escritor moçambicano se experimenta na prosa. Até então havia publicado apenas um livro de poesia, Raiz de orvalho, que vem a lume em 1983; do gênero só veio publicar outra antologia em 2011, Tradutor de chuvas. Os dois títulos provam uma coisa: antes de ser romancista – com os belos romances Terra sonâmbula e Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, duas obras que digo ser a melhor já escrita pelo moçambicano – Mia Couto é poeta.

Poeta e autor de narrativa curta. Mais ainda se averiguarmos as defasagens sofridas como romancista nos últimos livros que nos tem  chegado. Como a obra nesses dois gêneros ultrapassa em qualidade o romance, reafirmo, nesses dois gêneros, tem o leitor um grande mestre. E notará isso já no livro motivo dessas notas que, apesar de ser um livro de estreia é já uma obra-prima. E é este um julgamento de quem já leu títulos mais sofisticados do autor embora tenha tratado de ler Vozes anoitecidas com o olhar merecido à época de publicação, datada de três anos depois do primeiro título.

Não estou dizendo com isso que veio pronto o escritor. A poesia era já (e ainda é) espaço – o beiral – através do qual Mia se experimenta; mas pense ainda noutros exercícios literários quando se decide pelo jornalismo ao abandonar o terceiro ano de Medicina: primeiro na Tribuna, depois no Tempo e no Notícias. Quando publicou Vozes anoitecidas ainda era este o Mia Couto: o que nasce no jornalismo e amplia-se na poesia, depois passa ao conto. E só mais tarde vai ir ter com o romance, não como uma gradação, de gêneros, porque nesse páreo, a poesia está acima de qualquer gênero literário por ser este um claro exercer-se na criação.

A edição de 1986 publicada pela Associação de Escritores Moçambicanos trouxe a princípio apenas oito contos; a trazida ao Brasil quase vinte anos segue, não a edição original, mas a que depois foi editada em Portugal em 1987 com doze textos. Todos eles escritos como se doze peças poéticas pelo distanciamento criado pela voz narrativa em fazer a realidade recriar-se aos olhos do leitor. Isto digo referindo-me a nuance do maravilhoso pensada com muita frequência quando a crítica se vê confrontada com a tessitura verbal da prosa coutiana; o  que não é de um todo verdade. A narrativa de Mia Couto respira África e os modos de pensar de sua cultura estão a muito diferenciados da razão dicotômica do ocidente que terá cultivado a expressão redutora de que aquilo que ultrapassa o real ficcionado está no âmbito do maravilhoso ou como terão pensado os formalistas o real estranhado.

O que a narrativa coutiana propõe não é outra coisa se não tornar escrito aquilo que foi sendo construído pela oralidade; há muito desse itinerário do contador de histórias através de sua literatura a ponto de não ser redutor dizer que suas antologias de conto sempre significam ficar diante de Griot e ouvi-lo falar sobre um tempo cada vez soterrado pelos motores aplanadores da globalização, responsáveis por condenar uma cultura ao silenciamento.

E essa voz que narra traz ao centro as vozes que estão soterradas em algures. Há no entorno de toda a transmutação poética um eco dos subjugados, dos colocados à margem do mundo e reduzidos à ignorância. Não, entretanto, um retorno a um Moçambique profundo, mas a uma atmosfera corroída pela indignação do homem tornado objeto do homem. Essa trajetória está entre o sublime da poesia e a constatação da brutalidade da vida para aqueles que estão mergulhados no nada e não têm outra forma de se manter vivos se não acreditando na ilusão de estar vivos. A voz das margens se ouve noutros textos de Mia – faço lembrar O fio das missangas.

Aqui aparece o velho, o estrangeiro, a criança, a mulher; a miséria, a dor, a morte, o amor, a perda, a solidão, a traição, a violência; figuras e temas que matéria constante de criação da literatura de Mia Couto. E as frases de efeito; o moçambicano é um frasista. E as metáforas, e as criações linguísticas pescadas no falar do povo; antes de ser um inventor comparado (e reforçado por ele próprio) a Guimarães Rosa, o autor de Vozes anoitecidas é alguém de ouvido aguçado e quer deixar na escrita o registro da oralidade que cada vez mais se é perdida.

Mas, mais que alguém dado a pensar sobre o que estudos culturais têm insistido em pensar como uma moçambicanidade ou uma identidade coletiva, penso que Mia Couto tem buscado cada vez mais e desde sempre distanciar-se disso sob a ameaça de transformar uma identidade diversa em estereotipia fabricada. Como pensador das margens, seu interesse são as individualidades, os compósitos desse coletivo. Também não é a criação de tipos, mas o exercício da invenção tornada ela forma literária. Percebam, então, porque dessa desfronteirização entre o narrado e o poético ou imersão do poético no narrado; é como criação, o poético é sempre lido a cada vez como invenção.

Salvo raras exceções não dá para se apaixonar ou compadecer-se desses sujeitos. Eles não são idealizações nem modelos; são universalizações de subjetividades apanhadas pela crise. Como o relato de confissão em “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?” – “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não das raças, mas de existências.” 

Poderia deter-me em analisar mais este e outros textos, mas o momento não é oportuno. Só quero citar, além desse conto "Saíde, e a lata de água", outros que mais me agradaram e me tocaram de um modo singular: "O dia em que explodiu Mabata-bata", "De como se vazou a vida de Ascolino", "As baleias do Quissico" (um dos textos, se não o único do Vozes que tem um pé na história de Moçambique do período das guerras coloniais) e "A menina do futuro torcido". De todas elas, fica-nos as imagens tecidas com a engenhosidade do narrador forjado por Mia Couto – aquele cuja matriz são as vozes de seu povo, capaz de suspender o tempo e prender o ouvinte pela história a ser contada; este é, portanto, o escritor que aprendi a gostar e o que gosto de ouvir. Não um mero inventor de palavras ou colecionador de frases de efeito, mas um contador de histórias capaz de deixar seus leitores cúmplices da invenção. Isso tem faltado ao Mia dos romances recentes. 

Ligações a este post:
No Tumblr do Letras quatro fotos raras do tempo de antes de quando Mia Couto publicou Vozes anoitecidas.
Leia o conto "O dia em que explodiu Mabata-bata" aqui.

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