Quando não ser grande coisa se torna a maior coisa do mundo
Por Rafael Kafka
O pequeno
Jean-Paul Sartre cresceu rodeado de amor. Filho de um casal de jovens, perdeu
seu pai com apenas dez dias de vida e passou a ser cuidado por sua jovem mãe,
que mais parecia sua irmã mais velha. Ambos eram criados pelos pais desta, que
rodearam o pequeno Sartre de carinho, afeto, proteção e livros. Logo cedo,
aquele que se converteria em um dos maiores escritores de todos os tempos,
percebeu-se como não sendo grande coisa. E em sua insignificância, ele se
sentia grande quando em contato com as palavras, com a literatura.
Passou
então a criar suas aventuras encenadas com toda a empolgação de uma criança
ensimesmada e consciente ao extremo de suas capacidades intelectuais e físicas.
O pequeno Sartre viu na literatura não a fuga da realidade, como os românticos
a viram, mas sim um complemento, um suplemento. A arte literária transformou
para si a realidade em um mundo mais completo e belo, pois permitia uma
constante descompressão de ser rumo a novas coisas, a novas descobertas.
Não sendo
grande coisa, Sartre explorava com afinco e sede todas as descobertas
existentes em seus livros e nas histórias lidas por seu avô. Não ser grande
coisa não representava uma ofensa para Sartre, mas sim a própria condição
humana que não se vendo enquanto algo completo pretende a cada segundo se
superar. Era na arte, na leitura, que Sartre via a si mesmo enquanto ser em
eterna mudança e feliz com sua pequenez.
Rodeado de
todo o amor do mundo, o pequeno infante, futuro Prêmio Nobel, via as pessoas ao
seu redor como presenças fugazes que um belo dia não mais estariam aqui. Ao
contrário, ele estaria sempre diante de si mesmo, sempre em contato consigo.
Pode-se dizer que na infância surgiu o germe da futura filosofia da existência
que marcaria textos literários como A náusea e o grande ensaio filosófico O Ser
e o Nada. É a existência individual em toda a sua complexidade que se mostra
desde cedo para o pequeno Sartre: consciente de ser uma gota no oceano humano, repleto
de possibilidades e vivências, de pessoas com suas individualidades próprias,
ele sabia que a literatura, com a sua péssima mania de fazer o leitor passar de
um livro a outro em uma corrente sem fim, era a própria chave da libertação.
Seja tirando-o
de sua própria realidade, mostrando outras formas de ver e sentir o mundo; seja
pelo elo que levava um título a outro, um prazeroso sofrimento para os amantes
das belas letras, Sartre desde pequeno sabia que não podia ficar parado em um
canto esperando a realidade correr de passiva diante de si. Ele era o dono de
seu mundo e só lhe resta crescer sem parar até o último dia de sua vida.
Aquele
comportamento infantil visto em As palavras pode ser visto em seus diários de
guerra e nos textos autobiográficos de Simone de Beauvoir, companheira de toda
a vida do mestre existencialista e apaixonada pela incrível sede de leitura de
Sartre. Tal comportamento levou o pensador a escrever em diversos gêneros
textuais, literários ou não, e a expressar-se todas as formas possíveis sobre
si e suas ideias. Tão apaixonado era pelas palavras que seus livros são cheios
de uma profunda e densa fala sobre os mais variados assuntos da existência, o
que torna sua prosa peculiarmente deliciosa.
Perceber-se
como não sendo grande coisa fez Sartre quebrar a imagem de si mesmo desde
sempre. Isso também o fez valorizar a boa solidão da leitura de um livro e
depois o momento de troca de ideias em um café parisiense. Sartre, rodeado de
amor desde pequeno, aprendeu o que muitos de nós ainda não sabemos: valorizar a
solidão para tornar a companhia das pessoas algo mais aprazível, por ser uma
genuína ponte de ideias e vida. A literatura era a seiva que sustentava tal
ponte a leitura dos livros infantis pelo pensador ainda criança o fez entender
a magia do ato de ler: devemos ficar sozinhos conosco mesmo para que por meio
de nossa conversa solitária com alguém que não esteja ali quebremos a nossa
casca de ser acabado a cada dia. Sendo assim mais e mais livres.
*
A atitude
do pequeno Sartre se equipara à de Mário Andrade que ao fundar o desvairismo o
destruiu algumas linhas abaixo. Mário não queria ser admirado. A admiração
prende o admirado em uma imagem sagrada de mestre, de ser possuidor de todas as
respostas, de um gênio como o descrito por Bernard Shaw como não podendo
existir: sem falhas, sem humanidade. Mário era a figura mestra do Modernismo
brasileiro, talvez o mais relevantes dos modernismos por ter todo um processo
de democratização da cultura em si. E Mário, como outros intelectuais da mesma
geração sua, tem no seu ideal de antropofagia uma atitude similar a do nosso
pequeno pensador estrábico que não se achava grande coisa: a leitura era
alimento. O contato com outras culturas de um modo que não anulasse o ser
existente aqui no Brasil é similar ao contato com livros que não visa a uma
anulação da própria realidade, mas uma suplementação da mesma, uma ampliação
que leva o ser a novas fronteiras de ser.
Cada livro
lido é uma experiência estética nova. A leitura é uma viagem dentro de si mesmo
para fora de si. Por mais reacionário que um livro seja, ele permite esse
escapar-se de si que culmina em um reencontro consigo mesmo mudado, diferente,
com um saber estético e intelectual, diria, novo. Porém, muitos leitores têm a
consciência de leitor viciada em uma fuga de si: é como se ao perceberem-se não
sendo grandes coisas, eles procurassem fazer da arte a sua vida. Isso hoje é
muito comum na mente de pessoas apaixonadas por novelas com enredos românticos
cujo fim é previsível.
Mas não é disso
que quero falar aqui. E sim desse ritual antropofágico existente na leitura,
nisso de nos levar sempre a novos horizontes intelectuais e existenciais. O ato
de ler soa para mim como a coisa mais bela do mundo justamente por isso: esse
constante crescer que nos leva a ter a ilusão de que a vida é algo infinito
mesmo que um dia que pode não tardar tanto assim ela venha a acabar. Contudo,
quando subo em um ônibus ou vou a uma biblioteca, sinto que profanamos demais o
caráter sagrado-trivial da leitura: vejo as pessoas olhando alternadamente para
livros e para seus celulares, distraindo-se demais de si mesmas e do que elas
poderiam sentir ao se entregarem de forma franca e solitária ao livro. É como
se, em uma cena bizarra, me fosse mostrado um casal que no meio do ato sexual
resolvesse se entregar a olhar suas caixas de mensagens para não se sentirem
desconectados do mundo que os rodeia.
Escrevi há alguns meses um texto sobre paz de espírito para este blog. Nele, eu falava que
paz de espírito era justamente o fato de começar a me afundar naquilo que me
faz crescer, a leitura (seja ela a literária ou a ligada a outras artes como o
cinema, os quadrinhos, etc), e ir de um ponto a outro sem parar, nunca cansando
desse movimento de existir que me soa belo por mostrar de forma plena o que ser
humano é: um eterno movimento rumo a si mesmo que, como disse Leminski, nos
levará muito mais adiante.
Confesso,
amigo leitor, que essa paz de espírito, esse me afundar em meu ser leitor,
ainda não foi alcançado por mim. Leio muito, mas leio da forma caótica como
descrevi acima, deixando-me de lado para ver quem fala comigo em um chat
online, conversando sobre coisas vazias e superficiais, enquanto eu poderia
estar ali, antropofagicamente crescendo. Como a personagem Ângela de Sopro de
vida, gosto de me afundar em mim, de me sentir vivendo, seja na leitura ou em
qualquer gesto menos sublime de minha existência. O tirar de olhos que sempre
faço de mim mesmo indica-me que ainda não me sinto à vontade comigo mesmo.
Antigamente,
as pessoas que não se sentiam à vontade reuniam-se para falar de coisas sem
sentido e ficavam sempre em êxtase, seja por meio de drogas ou sexo, para
tirarem diante de si a sua angústia. Falo esse “antigamente” remetendo-me a
diálogos ouvidos durante a minha adolescência os quais me fizeram pensar isso.
Hoje, não é mais preciso esperar a ida às festas para que se fique em êxtase:
os Whatsapps, Facebooks e Twitters da vida, que muito bem podem ser
instrumentos de crescimento pessoal e intelectual, são usados como forma de
êxtase comunicativo no qual os diálogos nunca devem ser interrompidos, como
diria Bauman, pois do contrário nos veremos diante de nós mesmos, solitários e
angustiados com tudo isso que nos rodeia.
Enquanto o
pequeno Sartre lia para ir ao encontro de seu nada de ser eternamente
crescente, lendo como se não houvesse amanhã, como diria Gabriel García
Márquez, nós estamos a nos usar para distrairmos de nossa condição tediosa e
amarga...
**
Por mais
incrível que pareça, esse é um texto otimista. Com ele, quero dizer que a
existência pode ser melhor vivida se fizermos conosco um pacto de melhoria de
nossa qualidade de vida pela exploração constante das possibilidades de nosso
ser. Isso é algo que converso e escrevo sobre há pelo menos um ano, desde o
término de um relacionamento amoroso o qual me fez o quanto eu estava a fugir
de mim procurando em outro ser a solução de todos os meus problemas.
Estava hoje
diante de minha terapeuta quando ela me disse algo muito interessante sobre o
fato de eu não me achar, no fundo, tão inteligente o quanto quero fazer passar
aos outros que sou. Concordei com ela e disse-lhe que foi a primeira vez que
alguém me falou algo do qual eu já estava cônscio. Ao perceber que eu não era
grande coisa, tornei-me em alguns gestos excessivamente arrogante com o intuito
de fixar no olhar dos outros uma auto imagem que eu queria proteger de todas as
formas possíveis, como se fosse possível isso de controlar o olhar dos outros!
Saí da
sessão me sentindo estranhamente leve, sem um sorriso no rosto, mas consciente
de que eu precisava me afundar mais em mim mesmo e não apenas falar disso.
Imaginei uma existência sem tantas formas de fuga de nós mesmos como as que
temos hoje e comecei a pensar em um ritmo diário intenso de leituras e descobertas,
de prazeres intelectuais e físicos não fechados a rótulos e sim abertos, como
uma grande obra que sempre é aberta a diversas interpretações e discussões.
Percebi que chegou o momento de desligar mais o celular, de ignorar um pouco o
mundo exterior e focar no prazer que sinto ao ler um livro, de me ver lendo com
paixão querendo ir de livro sem querer ser interrompido por ninguém.
Não quero
dizer aqui para que os leitores se tornem alienados do que os rodeia. Muito
pelo contrário! Falo de um despertar para si mesmo o qual eu procuro dentro de
mim. As pessoas não se veem vivendo e por isso têm grandes chances de serem
infelizes: postam-se fotos no Facebook sem realmente ter-se vivido a felicidade
de um momento sublime. Não quero mais isso: quero a sensação de ter me afundado
dentro de um fato, seja ele uma leitura ou uma conversa em grupo, e perceber
que o tempo passou e eu vivi uma experiência incrível. Somos seres cuja
essência encontra-se fora de nós, concretizada em nossos atos. Porém, é preciso
olharmo-nos de vez em quando, sentir esse nada que somos não ser ignorado pelo
nosso desejo de anular a nossa angústia.
Vivemos um
ritmo de vida cheio de procrastinação hoje em dia. Os celulares, os
computadores, a internet, tudo quer nos tirar a atenção e acabamos cedendo sem
muita resistência na maior parte do tempo. Ao mesmo tempo em que estamos a ler
ou trabalhar, falamos por mensagens com diversas pessoas e grupos de pessoas,
deixando sempre nossas tarefas de lado por alguns segundos ou minutos. Em diversos
dias, chego ao fim da minha lida diária com a sensação de que eu poderia ter
aproveitado melhor umas duas horas de meu dia. Em outros, chego mesmo a crer
que não fiz nada de proveitoso, mesmo sabendo que o fiz, pois fiquei em
diversos momentos longe de mim mesmo, apenas reproduzindo um ato robótico
enquanto o tempo passava.
Imagino
diante de mim o pequeno Sartre lendo como se não houvesse amanhã, praticando a
sua insaciável antropofagia, encenando suas histórias, escrevendo seus próprios
enredos, criando seu próprio universo, sempre se sentido maior a cada nova
descoberta e fazendo da certeza de que não é grande coisa o motivo de nunca
parar de seguir por essa estrada infinita na qual estamos a andar. Olho isso
tudo e percebo que nessa cena há muito a ser ensinado a mim sobre desligar o
celular, o roteador de wi-fi e começar a criar o hábito de ler sem parar até eu
criar apego pela minha própria presença e não querer ser interrompido por nada
nesse mundo exceto o desejo de viciar alguém nesse mesmo hábito, como um
Kerouac nascido na cidade das mangueiras.
Eu,
sinceramente, não consigo imaginar existência mais bela do que essa e espero
fazer da descoberta do óbvio de que não sou tão inteligente quanto gostaria de
ser não mais um motivo para a minha arrogância, e sim uma forma de estender-me
além de todos os horizontes os quais podem vir a se me apresentar.
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