Os passos em volta, de Herberto Hélder
Por Pedro Belo Clara
Nascido
em 1930, na ilha da Madeira, Herberto Hélder é muito provavelmente uma das mais
enigmáticas figuras da literatura portuguesa contemporânea, estando, sob o
ângulo de alguns pontos de vista, envolta numa certa aura de misticismo. Para
tal, em muito contribuem as constantes reservas do autor em comparecer em
eventos públicos ou conceder entrevistas. Em 1994, por exemplo, foi-lhe
outorgado o Prémio Pessoa, honraria essa que de pronto recusou. Por tudo isto,
e certamente muito mais, Herberto Hélder é tido como uma figura de cariz
declaradamente misantropo. No entanto, é dos mais originais, hábeis e
competentes artífices da palavra que Portugal pode actualmente orgulhar-se de
“ter”.
A
obra em questão, um conjunto de contos que são transversais a uma só personagem
(muito facilmente plasmada no próprio autor) e às suas deambulações por
diversas cidades e quotidianos rotineiros, foi pela primeira vez publicada em
1963 e muito justamente é considerada, dentro do género literário em causa, um
dos trabalhos mais bem sucedidos do escritor madeirense. Na verdade, da obra
consegue-se extrair uma súmula quase perfeita dos principais temas que ao longo
dos anos têm figurado nas publicações de Herberto, seja em modelos de reflexão
ou em simples passagens de discorrer filosófico. Em todo o caso, é uma
competente porta de entrada para o universo herbertiano, amiúde denso,
melancólico, surreal e obscuro.
Após
uma leitura atenta a estes “passos em volta”, sobressai uma declarada e intensa
necessidade de sentido, quer da vida quer do Homem, algo que concede a estes
vinte e três contos um forte carácter existencialista (sem, contudo, entrar dos
domínios de Sartre) e uma orientação manifestamente indagadora. De certa forma,
os trabalhos levantam imensas e pertinentes questões sem que uma só
interrogação seja erigida, não podendo, no entanto, as percepções permanecerem
indiferentes ao sofrimento e à alienação que em diversos momentos daí afloram.
O
estilo de escrita apresentado revela uma enorme inteligência, não só ao nível
da organização das frases e das ideias, mas igualmente em termos da sua própria
exposição e maturidade (amplamente conseguida). É, em suma, um estilo
perfeitamente consolidado. Embora a linguagem seja razoavelmente simples e
acessível, nem sempre intencionalmente directa, mas de ecos melódicos algo
entristecidos e, como antes referimos, melancólicos, ainda assim imprime uma
agradável dose de poesia ao orquestrar de cada linha.
Dos
contos extraem-se muito naturalmente algumas influências que sempre se poderão
classificar hipotéticas, como comprova a forma de composição das narrativas
(lembrando os contos de Fernando Pessoa, maioritariamente escritos na primeira
pessoa do singular). Algumas temáticas exploradas farão, ainda, aos leitores
mais experientes, recordar nomes como Franz Kafka ou Albert Camus,
especialmente, no caso deste último, no que diz respeito ao absurdismo
(compreender-se-ão as inclinações preferenciais de Herberto em, por exemplo,
“Descobrimento” ou “Cães, marinheiros”). Também se descortina, especialmente no
conto “O Grito”, um breve polvilhar de interseccionismo, que aproxima um pouco
mais o autor dos ideias ditos modernistas. Mas em maior escala denota-se a
presença do surrealismo, influência que se considerará central na obra de
Herberto Hélder.
Se
nos focarmos somente no conteúdo de todos os contos, esse seria suficientemente
vasto para que as considerações facilmente se diluíssem nos terrenos da pura
divagação. No entanto, é possível condensar alguns sobejos e apresentá-los
condignamente, desde os termos algo metalinguísticos do conto de abertura às
surreais deambulações por cidades estrangeiras.
No
fundo, existem ideias que se repetem e se reforçam em tal acto. Desde logo, a
que se extrai de “Como se vai para Singapura”: o esboço de um deus que, ao
existir, pela sua real condição atemoriza o “eu” mais do que a sua própria negação
ou completa ausência. Envolto em incertezas, conclui ser preferível negá-lo do
que suportar tudo o que a sua divina existência poderia comportar. Este conto
em específico, composto em tom agreste, afirma uma ruptura definitiva:
«Desabituei-me dos milagres. Sabe-se como é:
quase todas as manhãs acordo angustiado, esforço-me por imaginar que este dia é
virgem e primeiro, carregado de poderes enigmáticos, destinado às revelações.
(…) Trata-se de mais um dia em que me vou chatear, aturar os meus semelhantes,
a filha-da-putice teológico-emocional de um Deus que, ainda por cima, não
existe».
Tudo
isto para, um pouco mais adiante, propor a sua própria solução:
«Mas não é nem nunca foi essencial. A comoção
e a esperança, sim, essas existem, e são o tema dos nossos dons, a nossa
tarefa. E é nelas próprias que o milagre do mundo pode ser concebido».
As
inclinações ideológicas surgem mais tarde reforçadas em “Equação”, uma obscura
narrativa que promove o regresso de um morto do mundo dos falecidos (a avó),
somente para reafirmar de vãs as esperanças que os Homens depositam nesse mundo
além-físico: «É tudo mentira».
Analisando
estas intenções, tão cheias de animosidade perante temas de cariz religioso ou
transcendental (espiritualmente falando), não se poderá contudo depreender que
Herberto seja um defensor do Homem em detrimento do Divino, como Torga se
assumira, pois em “Aquele que dá a vida” o leitor é presenteado com um acurado
retrato da crueza humana, sublinhando tudo o que de animal e de inóspito nele
ainda habitam. Não nega ou proscreve o Homem, é um facto, mas também não se
coíbe de revelar tanto o que de benéfico ou de sombrio este é capaz de
produzir.
Nessa
linha de pensamento, que após atenta apreciação compreende-se que somente se
esforça por ser imparcial, surge o conto “Lugar lugares”, uma bem conseguida
parábola da existência humana, escrita num só parágrafo, e com especial enfoque
nos seus apetites, ilusões e exasperos. Daí sobeja a negra imagem de um mundo
intransigente que não suporta a diferença. Todo aquele que, por alguma arte
mística, tenha o ensejo de o ser, ou muito naturalmente o seja por sempre ter sido
assim, acaba invariavelmente por perecer sob o constringente jugo da implacável
(e medíocre) maioria.
O
conto que encerra a obra, “Trezentos e sessenta graus”, retoma uma outra das
centrais variantes da obra deste autor: o imaginário materno. De contornos
edipianos, este tema poderá eclodir do facto de Herberto ter perdido a sua mãe
bastante cedo, com apenas oito anos de idade. Naturalmente, certas perdas
deixam profundas marcas. Embora este
conto não seja propriamente um chorrilho de emoções em cascata, compõe uma
imagem digna de uma beleza muito própria em Herberto, sempre melancólica, quase
mística, e de forte veio sombrio. Ao estilo do mais pródigo dos filhos, o “eu”
transversal às narrativas regressa aqui a casa dos pais (os «dois velhos
estúpidos e inocentes») e com eles enceta um diálogo que parece provir dos ecos
das coisas mortas. Será, em suma, uma tentativa de reproduzir um encontro
fictício que, a existir, teria como palco cenários familiares transpostos para
esse limbo “entre vidas”.
Há
a firme certeza de Os passos em volta constituir um imenso e rico mapa de todos
os eventos, acasos ou formulações que em torno do ser, ou “eu” se preferir, têm
ou tiveram lugar. Muitos deles, como se sabe, retirados da própria experiência
pessoal do autor. Erigidos sob a supervisão de uma escrita quase experimental,
os contos passados em cidades estrangeiras revelam uma grande precisão se
comparados com as viagens feitas através da Europa central por este autor
recatado sobre o qual se sabe tão pouco. Mas à experiência do real, que nunca é
abertamente admitida, acresce, e de sobremaneira, a virtude poética de cada
pensamento ou elemento propositadamente criado para obscuramente colorir a
narrativa. Pois existem tons que evocam a decadência das cidades e da sociedade
que as construiram e desenvolvem, uma desolação íntima que só ressoa no vazio
de cada Homem, um desespero que nem a fímbria nocturna sabe amenizar. É, por
isso, um livro de inquietações e de suspiros perante a inutilidade de tudo, mas
de igual modo propõe uma viagem plena de enleios surreais: da densa névoa do
sonho à crua translucidez do concreto.
«(...) a urdidura inútil de um emblema, um
símbolo: a fácil garantia do mundo. E o coração inclina-se, o coração também
horrivelmente vazio. O centro é essa tarefa absurda, a continuação do tempo. A
imensa inutilidade de tudo apazigua-me. Sou vil. Paz e vileza: toda a minha
vida».
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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