Em
Fantasmas (
Ghosts),
um dos textos de
A trilogia de Nova York (
The New York
trilogy, 1986, tradução de Rubens Figueiredo, Companhia das Letras¹),
aparece uma historieta, quase uma vinheta, das muitas que entremeiam a trama
geral, a respeito de um sujeito chamado Gray que desaparecera. Contratado pela
esposa de Gray, Blue (personagem principal da narrativa) descobre que ele
perdeu a memória e passou a se chamar Green, tornando-se um barman (era
engenheiro). Bem, Green não só se sente confortável por não rememorar sua
existência anterior, como chega a se casar com a antiga esposa, agora dentro da
sua nova identidade e vida profissional.
Essa problematização do valor da
identidade, essa possibilidade perversa de permutação, perda ou desagregação de
quem somos percorre todo o livro de Paul Auster.
A esse preâmbulo se pode
acrescentar frases tiradas do primeiro texto,
Cidade de vidro (
City
of glass), verdadeiras chaves para entender o universo austeriano: “nada
era real a não ser o acaso”; “Nova York era o lugar nenhum que ele havia
construído em torno de si mesmo”; “o que interessava nas histórias que escrevia
não era a sua relação com o mundo, mas a sua relação com outras histórias”.
Na sucessão de histórias
“policialescas” da
Trilogia, o leitor vai encontrando paralelismos
e simetrias intrigantes: no meio da terceira história,
O quarto fechado (
The
locked room), o narrador esbarra em Paris com um tal Peter Stillman, o
mesmo nome de um dos personagens de
Cidade de vidro; no reencontro
com um amigo perdido, este lhe revela que adotou o nome de Henry Dark, homônimo
de um tipo inventado por um dos Peter Stillman na outra história. Esse
mesmo amigo, Fanshawe, tem um caderno vermelho que entrega para o narrador, e
em
Cidade de vidro há também um caderno vermelho (em
Fantasmas,
os dois personagens centrais fazem anotações em cadernos). Tudo é anotado, mas
nada se fixa, tudo se dissolve.
Os exemplos de espelhamento
proliferam, mesmo num recenseamento rudimentar: Quinn, o protagonista de
Cidade
de vidro, escreve com o pseudônimo (fato que por si só é um desdobramento)
de William Wilson, o que evoca uma das histórias mais famosas (e a minha
favorita) de Edgar Allan Poe, em que o herói-título tenta destruir seu duplo e
homônimo, William Wilson; Quinn conhece um personagem chamado Paul Auster, cuja
vida reproduz exatamente (é escritor, tem esposa e um filho) a vida que Quinn
perdeu (a mulher e o filho morreram). Por sua vez, o narrador de
O
quarto fechado assume a vida que Fanshawe abandonou (a mulher e o
filho, além da carreira literária).
Blue escreve relatórios minuciosos
sobre um sujeito chamado Black, a quem ele vigia indefinidamente, para depois
descobrir que Black é o destinatário dos seus relatórios. Um dos romances de
Fanshawe chama-se “Blecautes”, que é o título de uma das peças do jovem Paul
Auster, na qual é contada a história de
Fantasmas.
Além desse efeito especular
alucinante, além da tipicamente austeriana relação acaso-destino, chama a
atenção na
Trilogia a angústia do autor de
Palácio da
Lua com a paternidade e a insegurança financeira (e interligado com
esta última, o tema do fracasso), que fica mais clara agora, passados alguns
anos e após a publicação de
Da mão para a boca (1997), texto
memorialístico que lançou luz sobre as motivações pessoais de Auster, que
fundamentaram várias tensões encontradas em suas obras, como por exemplo
nesses três pequenos romances e o maravilhoso
Leviatã.
Numa linhagem que remonta a Samuel
Beckett e que tem suas ramificações norte-americanas em J.D. Salinger, Thomas
Pynchon, John Barth e Don DeLillo, Paul Auster é um dos mestres da
pós-modernidade. Blue diz para si mesmo que se sente como se fosse “absolutamente
nada”:
“Sente-se como um homem que foi
condenado a ficar em um quarto lendo um livro pelo resto da vida. Isto é muito
estranho – estar vivo pela metade, na melhor das hipóteses, ver o mundo apenas
através das palavras, viver apenas por intermédio da vida dos outros. Mas se o
livro fosse interessante, talvez a coisa não parecesse tão má assim. Ele seria
colhido pela história, por assim dizer, e pouco a pouco acabaria esquecendo-se
de si mesmo. No entanto, esse livro não lhe oferece nada. Não tem nenhuma
história, nenhuma intriga, nenhuma ação – nada senão um homem sozinho dentro de
um quarto escrevendo um livro. Mas como sair? Como sair do quarto que vem a ser
o livro que vai continuar a ser escrito por todo o tempo que ele ficar no
quarto?”
A ironia cruel e instigante
de
A trilogia de Nova York é que, ao contrário do que Blue
pensa do “livro da sua vida”, o de Auster nos oferece muito, e nos colhe de tal
forme com suas histórias sobre a desintegração pessoal, que a gente acaba
esquecendo de nós mesmos. Uma desintegração da personalidade bem mais prazerosa
do que a experimentada por seus personagens.
Notas:
1 Havia uma tradução anterior, de
Marcelo Dias Alomada, pela Best Seller, a qual, aliás, tornou Auster conhecido
no Brasil.
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