O otimismo de Cortázar
Por Rafael Kafka
Dia desses li aqui no blog do Letras in.verso e re.verso uma
interessante análise do conto “O Perseguidor” de Julio Cortázar. Tal conto, que
li somente ano passado dentro da coletânea de textos As armas secretas,
tocou-me profundamente pois foi nele que vi o estilo prosador único de Cortázar
manifestado de forma mais intensa: algo quase que oral, como se estivesse em
uma mesa de bar tomando uma cerveja, com o olhar desperto na rua, falando sobre
tudo o que viesse à cabeça. Na verdade, a maioria dos textos do grande autor
argentino me passa essa sensação de discurso que começa em um mote qualquer e
se desdobra por diversas outras situações humanas, como uma árvore frondosa
cuja copa não para de crescer.
Alfredo
Monte, o autor da análise que acima citei (ver links abaixo), fala do otimismo presente dentro das
obras de Cortázar e mesmo de forma breve conseguiu me tocar justamente nesse
ponto. Lembrei-me automaticamente do período do mês de março de 2012, quando
após uma história de amor de curtíssima duração, eu estava em uma verdadeira
ressaca moral das maiores já sentidas por mim. Foi nesse período que li o livro
de contos Todos os fogos o fogo e a forma aberta, imprecisa, com a qual as
histórias eram construídas logo me causou profunda comoção.
O primeiro
livro do autor lido por mim foi Livro de Manuel em 2009. Eu fiquei
profundamente encantado com a forma de narrar a história, com uma narrativa que
mais parecia um complexo fluxo de consciência e os belos hiperlinks presentes
em todo o livro mostrando as barbaridades ocorridas no longo século XX. Mesmo o
livro tendo me causado uma impressão tão forte a ponto de ser considero meu
romance favorito, levaria mais três anos até eu tocar novamente em um livro
desse genial escritor argentino.
O curioso é
que Cortázar foi lido em uma época na qual eu estava afastado da leitura
literária. Lia bem pouco e ao ministrar aulas de língua portuguesa e tentar
exortar meus alunos à leitura eu me sentia um hipócrita. Por algum motivo
impreciso, pensei que Cortázar seria o autor a ser lido nessa tentativa de
recuperar o prazer sedento pela leitura tido por mim até certo tempo.
Não há como
eu fazer uma análise agora desse livro, mas depois vieram outros como Bestiário,
Octaedro, As armas secretas, Os prêmios, Exame final, 62 – Modelo para armar, Divertimento
e agora o célebre O jogo da amarelinha.
Em todos os livros, deparei-me com histórias repletas de personagens
vivas demais a ponto de eu não aceitar o fato de elas não serem realmente
criaturas humanas. Seja na densidade dos monólogos interiores ou na casualidade
muito bem construída dos diálogos non sense sobre arte e política, Cortázar nos
mostra criaturas épicas em seu caráter prosaico. Faz-nos, mesmo que à nossa
revelia, começar a amar o que há de humano no ser humano.
Além das
personagens vívidas, observei também no hermetismo de Cortázar um efeito
paradoxal muito amplo: o de tornar suas obras abertas. Difíceis de serem lidos,
os seus textos se torna fontes de múltiplos significados e interpretações,
gerando um grande número de leituras possíveis dentro de tecidos verbais
riquíssimos do ponto de vista estrutural e narrativo. Por serem obras abertas,
tais textos mostram a própria realidade da existência humana, não se fechando
de forma completa em uma forma de serem enxergados por um olhar leitor. Na
leitura dos textos de Cortázar, vemos a própria opacidade da vida e é isso, ao
lado das personagens humanamente literárias ao extremo, que percebo um grande
otimismo em sua obra.
Talvez por
isso tenha sido acertada para mim a leitura de Todos os Fogos o Fogo quando
estava na fossa após o rompimento amoroso. O livro em seus belos contos nada me
ensinou exceto o modo de ser da existência, que é algo indefinido e livre em
si. Mesmo sem saber se havia ou não influência de um autor sobre o outro, vi
muito de Sartre em Cortázar, como se este soubesse mais da filosofia da
existência transformada em literatura do que o mestre existencialista.
**
Sartre diz
em O Existencialismo é um humanismo que a sua filosofia tão criticada por ser
uma filosofia do desespero era na verdade um “otimismo desesperado”. Isso
significava que ao invés de ver a filosofia existencialista como uma declaração
do vazio da vida ela era na verdade uma assunção de que o homem, ao ser sua
única possibilidade, era todas as possibilidades do mundo. A liberdade tem o
agridoce sabor da angústia em si, pois a cada momento precisa fazer escolhas
que a definem até seu mais profundo aspecto de ser. E pior: sem a certeza de
que ela se manterá em seus desígnios. Uma pessoa pode, por exemplo, cursar uma
graduação e abandoná-la quando estiver prestes a se formar. O mais angustiante
na liberdade não é o fato de que podemos falhar naquilo que escolhemos, mas sim
que em um certo momento podemos mudar completamente nossos rumos. Não há
certeza nessa vida.
As críticas
ao existencialismo sartreano se dão muito por conta dessa quebra de lógica a
qual já vinha sendo discutida desde a aclamada “morte de Deus” pelos
irracionalistas. Contudo, em Sartre e em seu clã essas coisas ficaram mais
sérias, mais perceptíveis, pois em um mundo cada vez mais transparente com o
avanço das telecomunicações causava choque ver escritores agindo como pessoas
normais em noitadas que infligiam a séria moral burguesa francesa. O discurso
que execrava as práticas existencialistas se volta para a crítica das ideias de
um movimento cuja maior diretriz é justamente não haver desculpas para a
liberdade humana exceto si mesma: nem Deus, nem o destino bastam para explicar
nossos motivos mais íntimos.
Em Cortázar
há uma quebra da leitura linear cujo maior resultado é justamente dar essa
angustiante liberdade ao leitor. Diante de um texto hermético e ao mesmo tempo
fluido, somos levados a nos questionar em diversos momentos se estamos a
entender o que o autor quis dizer, se estamos a entender algo que pelo menos
nasça em nossas mentes, se há algo a ser entendido. São diversas possibilidades
de interpretações que nos estonteiam e nos deixam confusos, ao contrário de
textos clássicos os quais justamente queriam do leitor um contato linear com a
obra.
Alguns
textos são emblemáticos quanto a isso, como o romance Livro de Manuel, em que
no final não fica suficientemente a morte ou não de um dos protagonistas do
enredo, o conto “Cartas a Mamãe” de As armas secretas, no qual não sabemos se a
morte de um ente próximo é delírio ou realidade, metáfora ou concretude; e Exame
final cujo final é também tão preciso e impreciso ao mesmo tempo com o
protagonista Andrés Fava encarando a morte de forma pacata e destemida.
Os livros
permitem múltiplas interpretações e é justamente essa a intenção do autor:
mostra que a obra de arte só é o que é no contato existente entre a mão que
escreve e a boca que lê as palavras. Isso é angustiante para o autor, pois sabe
de forma bem consciente que nunca será entendido em suas intenções postas ali.
Toda leitura é tangencial por ser livre. E é essa liberdade provocada pela
dificuldade do texto que nos angustia, pois em diversos momentos não sabemos
como lidar com ela...
O otimismo
de Cortázar é justamente usar o realismo mágico para mostrar como a realidade
é: indeterminada em todas as suas determinações, além e aquém de qualquer
leitura verbal. A atitude otimista do autor é levada ao extremo no Jogo da
Amarelinha, livro que possui mais de 150 capítulos e pode ser livro em duas
ordens básicas de leitura as quais afetam diretamente o modo como a história é
lido. Se levarmos em conta que o texto são dois e podem ser vários, mudando de
acordo com a ordem escolhida pelo leitor (indo do capítulo um ao cinquenta e
cinco, seguindo a tabela de orientação indicada no começo do romance, lendo
somente os capítulos pares, os ímpares, de trás para a frente, etc.) e que cada
pessoa terá o seu entendimento para cada ordem sugerida ou inventada, fica-se
diante do retrato mais perfeito da liberdade humana: algo que é concreta em
diversas situações (no caso presente, a leitura), mas não tem um limite visível
de ação.
E é aí que
tudo se torna ainda mais agridoce: por mais que tentemos, nunca teremos tempo o
suficiente de ler o romance em todas as suas possibilidades de ordens de
leitura e de entendimentos. A morte, um belo dia, irá terminar a brincadeira.
¨**
O começo da
ordem convencional de leitura do Jogo da amarelinha mostra Horácio Oliveira
circulando pelas ruas de Paris pensando em Maga, sua amada, e nos jogos de
acaso que eles tinham. Marcavam encontros vagos pelos bairros e corriam sempre
o risco de se perderem um do outro. Nessas jornadas, faziam de suas viagens
verdadeiros encontros com o lado mais minucioso e secreto da cidade luz. Muitos
dos textos de Cortázar são repletos de cenas como essas. A cidade se revela
como uma selva de pedra cheia de mistérios e possibilidades de existência. E
isso a torna bela, poética.
Por esse
motivo, as obras de Cortázar com sua velocidade bastante jazzística em muitos
momentos é a que mais me encanta dos realistas mágicos já lidos por mim. Como
sou uma pessoa muito presa à cidade, suas histórias mostram-me que por trás dos
muros de concreto que me rodeiam há muito a ser vivido, por mais que haja
coisas assustadoras em cada momento de minha existência. Mas é esse o otimismo
cortazariano que tanto amo: nele não há o bem e o mal. Há apenas a realidade
nua e crua, absurda, cheia de fatos insólitos, prosaicos. E nosso desejo de escolher
entre essa ou aquela decisão. Entre essa ou aquela leitura.
Cortázar é
um autor que subverte a forma de escrita e por isso mesmo se torna muito
político em suas linhas. Muito recentemente descobri que a forma de escrita de
um autor é em si um ato político ou ideológico. Dar ao leitor um poder de dar
significação a um texto, de concretizar a existências de linhas cheias de
palavras é algo rebelde diante de um cenário ainda acostumado a dar tudo
“mastigado” ao seu consumidor. Autores como o argentino querem que o leitor se
sinta presa da angústia de ter de decidir o seu destino a cada página avançada
e a cada passo dado. É isso que os tornam revolucionários.
Hoje em
dia, evito ler livros de Cortázar com grande frequência, deixando-os, como um
remédio controlado, para momentos nos quais preciso desconstruir minha mente e
rever minha posição no mundo. Contudo, posso afirmar desde 2012, quando decidi
corrigir meu erro de ficar longe de grandes leituras com um livro seu, esse
argentino injustiçado por nunca ter ganhado um Nobel mudou minha forma de ler e
sentir o mundo com o seu desesperado otimismo.
Em 2013, ainda no cinquentenário de O jogo da amarelinha editamos uma série de textos Juan Cruz Ruiz e uma leva de outros trabalhos:
>>> Crônica 1;
>>> Crônica 2 + trecho de Los nuestros
>>> Crônica 3
>>> Crônica 4
>>> Crônica 5
>>> Crônica 6
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