O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez
Por Rafael Kafka
Sendo fã
dos dois escritores em um nível difícil de mensurar, diria que pelo que
escreveu em seu grande ensaio feminista Simone de Beuavoir amaria o texto de
Gabriel García Márquez, tido hoje como um de seus romances mais bem escritos: O amor nos tempos do cólera. Seja pelo nível da escrita, seja pela forma de
abordar o mais universal de todos os temas humanos: o amor.
O romance conta de forma bastante interessante a construção de um tipo bizarro
de triângulo amoroso que dura mais de cinquenta anos. Um tipo bizarro, pois não
se converte em um triângulo propriamente dito como esses existentes nas mais
melosas novelas mexicanas. O que temos é um amor deixado de lado, logo depois
sendo substituído por outra relação, essa ao contrário da primeira bastante
duradoura.
O amor
deixado de lado é um amor juvenil surgido entre Florentino Ariza, uma espécie
de funcionário estágio do correio da cidade onde a história se passa, e Fermina
Daza, filha de um rico decadente, cheia de beleza e graça radiantes. Apaixonado
pela donzela, Florentino passa a se corresponder com ela em um tom romântico
digno de um grande poeta, desafiando barreiras geográficas, como a do pai que
resolve se mudar de cidade para acabar com aquela indesejada relação.
Florentino então desenvolve uma comunicação via telégrafo, meio de comunicação
então recente, com a ajuda de alguns amigos para manter-se em contato com
Fermina.
Após mais
de um ano, a filha e seu pai voltam para a capital e os dois amantes finalmente
têm a chance de se encontrar. Contudo, ao ter diante de si o amado poeta das
cartas, Fermina Daza o rechaça percebendo que tudo aquilo era ilusão de sua
mente juvenil, mostrando em um golpe seco como o amor pode ser doloroso em suas
atitudes volúveis.
Passado algum
tempo, devido a uma visita médica por conta de uma suspeita de cólera que
supostamente atingira seu corpo, Fermina Daza recebe a visita do doutor Juvenal
Urbino, que logo se apaixona pela moça das tranças. Mesmo com o apoio do pai
Lorenzo Daza, o doutor Urbino tem de lutar contra a resistência da moça,
conseguindo após algum esforço conhecê-la melhor e casando com ela.
Creio ser
esse um resumo bem simplório da parte mais inicial do enredo do romance, mas o
suficiente para se entender de que forma se caracteriza esse triângulo de amor
bizarro. O que Gabriel García Márquez faz depois é explorar o cotidiano do
casal e do amante rejeitado de uma forma riquíssima, como já foi possível de
ser visto em outros textos dele como Cem anos de solidão e O general em seu labirinto.
O casal
Urbino Daza é visto como a união perfeita de duas pessoas belas e distintas,
apesar de no começo Fermina ter de enfrentar o preconceito das pessoas de sua
nova classe por ela ser vista como plebeia, devido ao modo pouco claro de como
seu pai faz para manter sua fortuna. Tudo se torna ainda mais doloroso quando
os crimes cometidos por Lorenzo Daza começam a vir à tona. Mas ainda assim, o
casal composto pela moça das tranças e pelo doutor é visto com uma distinção
rara pelos demais membros da sociedade.
É aqui que
entra o ponto que provavelmente faria Simone se apaixonar por este belo
romance: pode-se ler o texto de O amor nos tempos do cólera como uma análise
crítica das mais diversas formas de amor, principalmente do amor romântico
concretizado na figura do casamento. Se diante dos olhos do mundo social ao
qual pertencem, Fermina e Juvenal representam a imagem de uma rara perfeição no
tocante à sintonia de duas pessoas amantes, o que vemos diante de nós mostrado
pela visão do narrador são os pequenos conflitos cotidianos existentes na vida
de um casal.
A sociedade
patriarcal transformou o casamento no standard de felicidade plena da vida
humana. Uma pessoa somente consegue ser feliz se achar um par perfeito para a
vida toda. O casamento, então, torna-se a certeza de que a promessa foi
cumprida e o ser encontrou-se completo em sua vida e por isso é feliz. Todavia,
em uma frase do texto Gabriel, na fala de Juvenal Urbino, sintetiza um tipo de
crítica feita por Simone em O segundo sexo afirmando que “no casamento, mais
importante do que a felicidade é a harmonia”.
No ensaio
de Simone, no segundo tomo, há um capítulo imenso dedicado à análise do
casamento. Nele, a autora mostra como por trás do belo discurso de duas pessoas
que se unem por toda a vida há uma imensa crueldade, a qual pesa bem mais sobre
as mulheres do que sobre os homens. Uma mulher só se torna mulher plena se
consegue ser atraente a ponto de desposar a algum homem que a queira como mãe de seus filhos e
cuidadora de sua casa pelo resto da vida. Do contrário, ela se torna uma
espécie de pária, uma excluída social. Casada, a mulher não tem mais pleno
direito sobre sua vida e vê o homem determinando os seus passos, seus desejos,
suas verdades. Além disso, presa ao ambiente familiar, não pode ser o direito
de ter aventuras, sexuais ou não, sofrendo todo tipo de injúria caso queira
recair nesse “erro”. Enquanto isso, o homem conquista o mundo e, se quiser,
outras mulheres. Por mais amável que seja, um homem pode, e até deve segundo o
discurso patriarcal, ter outros casos amorosos ou sexuais. É o que faz o doutor
Juvenal Urbino, que somente deixa tal prática por medo de colocar tudo a perder
em seu casamento.
Vemos na
atitude Urbino esclarecido o significado da sentença sobre harmonia e
felicidade, colocando aquela como mais importante do que esta: não importa se o
relacionamento está uma série de grandes conflitos, o que importa é manter-se
as aparências, seja para os outros, como forma de status social, seja para mim
mesmo, que não importa o que aconteça ainda tenho um amor que torna minha vida
algo com sentido. Gabriel, usando sua bela forma irônica de narrar tudo, dá uma
bela capa de romantismo ao que na verdade é apenas jogo de interesses pessoais,
não necessariamente com retorno materiais, e sim o conforto da paz psicológica.
Florentino
Ariza persegue essa paz psicológica. Ao ter contato com Fermina Daza, tem a
certeza de que ela é a mulher de sua vida capaz de trazer toda a felicidade do
mundo para a sua vida infeliz de pessoa sem porte físico avantajado e mente
tímida e retraída. Ariza coloca, então, toda a força de sua alma em suas
palavras com o intuito de provocar a chama de amor em Fermina e até consegue,
mas a realidade acaba por desiludir os seus planos.
Mesmo
apaixonado por ela, Florentino passa a viver uma vida de peregrinação sexual,
que começa de forma tardia mas se mantém ativa até os anos da velhice. Tem
diversos casos com viúvas, mulheres compromissadas, uma colega de trabalho e
até uma garota de quatorze anos, construindo um belo contexto de análise para
alguém interessado em complexos de Édipo. Em diversas situações, Florentino se
vê em um contexto de ter de escolher entre o casamento com uma das moças ou um
afastamento brusco. Sempre escolhe a segunda opção, pois prometera a si mesmo a
fidelidade eterna à moça das tranças.
Florentino
então passa a acompanhar os passos do casal Urbino Daza com a convicção de que
mais cedo ou mais tarde Juvenal morrerá e ele terá o caminho livre para
finalmente concretizar o seu ato de amor. É neste ponto que vale ressalta a
bela forma de narrar de Gabriel, que muda de assuntos como quem está na mesa de
um bar contando um interessante causo ou monta a estrutura da história de um
modo que o clímax se torna o começo da história e ainda assim nós ficamos
interessados em ler tudo até o final.
Assim como
em Crônica de uma morte anunciada já sabemos do crime que é o mote de todo o
enredo e ainda assim ficamos presos ao desenrolar do caso visto de trás para
frente, de frente para trás e de outras formas; em O amor nos tempos do cólera logo no fim do primeiro capítulo, quando estamos acostumados coma figura forte
apesar de frágil fisicamente devido à velhice de Juvenal Urbino, vemos o doutor
cair de uma escada enquanto procurava resgatar seu papagaio de uma árvore e
morrer de forma e em posição patética. A história volta no tempo e conta tudo o
que relatei acima de forma bem resumida, sempre dando atenção ao contexto
social da Colômbia no final do século XIX e no começo do século XX, explorando
de forma minuciosa e profundamente poética a idiossincrasia de cada um dos
personagens do bizarro triângulo amoroso.
No final de
tudo, aprendendo a controlar o seu jeito ansioso e sedento por amor, Florentino
consegue a tão sonhada aproximação de Fermina e em uma viagem de barco os dois
finalmente concretizam o seu amor com mais de meio século de atraso.
Preocupada, no ato de regresso, em ser vista tão pouco tempo depois da morte de
seu esposo em ser vista com outro homem, Fermina recebe se Florentino a certeza
de que o barco será todo deles, sem passageiros ou carga, na volta para sua
terra, usando o recurso de supor uma quarentena de cólera dentro do navio por
meio de uma bandeira amarela que hasteada indicava o perigo de uma
contaminação.
Ao chegarem
ao porto final, contudo, recebem a vistoria de órgãos oficiais e para fugir da
descoberta da fraude, regressam à cidade aonde haviam ido originalmente,
iniciando um ciclo de idas e vindas que provavelmente durará por tempo
indeterminado. De forma simbólica, tal ciclo representa o próprio existir da
humanidade, cheia de idas e vindas, querendo chegar a um porto seguro e vendo
no amor, não importando onde ele ocorra, a resposta para todos os seus dilemas.
Gabriel
García Márquez escreveu outro belo texto por meio de sua linguagem jornalística
a serviço de uma literatura densa e cheia de perspectivas sobre os problemas
humanos. Poucos escritores conseguem produzir personagens tão cheios de vida a
ponto de se confundirem com pessoas reais. O realismo mágico de Gabito consegue,
por meio das distorções usadas em gestos, atos e pensamentos, produzir
criaturas similares demais em vida aos seres de carne e osso que encontramos em
todos os lugares aos quais vamos. É difícil escolher um ponto da obra de
Gabriel para ser analisada de tão densa que é. Pode-se falar dela em um aspecto
mais existencial, mais político, mais cultural, etc. O certo é que sua obra é
engajada com os conflitos psicológicos que assolam e permeiam a existência
humana tornando o ser humano naquilo que ele é: uma criatura indefinível.
Comentários
Gostaria de dizer que nenhum livro do mundo atinge 100% de uma audiência leitora local ou global, então por mais "batido" que seja um livro, ele pode e deve ser comentado por novos leitores. Além disso, quando falo do romance, faço intertexto com outra autora muito importante como Simone de Beauvoir focando na análise crítica do casamento. Outros leitores, poderiam focar os problemas históricos e sociais que a obra mostra ou ainda a questão da velhice que é muito bem explorada dentro do texto. Nesse sentido, explica-se que uma obra tão conhecida ainda seja comentada: ela é tão densa, tão aberta, tão grande, que sempre surgirão mais comentários acerca de sua forma e conteúdo. Abraços.
de Gabriel para escrever, "Olhai os Lírios do campo"? Essa li. Abraço
Foi meu terceiro livro do Gabo, e apesar de ter gostado, confesso que a leitura não foi tão prazerosa como cem anos de solidão ou ainda memórias de minhas putas tristes.
Na minha modesta opinião de leigo, um livro que fala sobre amor, mas não um amor autruista, e sim pelo amor egoísta de um personagem central que aguarda incansavelmente a morte do esposo de sua amada para poder reconquista-la.
Achei show as sutis críticas quanto ao suposto "sucesso do casamento", porém em alguns certos momentos, a leitura do livro não fica muito "emocionante" como nos outros livros que li do Gabriel.
Abs e parabéns pelo blog
Indescritível como é o sentimento do amor em todos os corações!
👏👏👏👏👏