Julio Cortázar, o menino de 100 anos
Por Juan Cruz Ruiz
O menino. Cortázar disse a
Elena Poniatowska, numa das quatro entrevistas que ela lhe fez, que sentiu mal
de menino: “Sim, eu creio que fui um animalzinho metafísico desde os seis ou
sete anos. Recordo muito bem que minha mãe e minhas tias – meu pai nos deixou
muito pequenos, a minha irmã e a mim – enfim, a gente que me via crescer, se
inquietava por minha distração ou devaneio. Eu estava perpetuamente nas nuvens.
A realidade que me rodeava não tinha interesse para mim. Eu via as lacunas,
digamos, o espaço que há entre duas cadeiras, se posso usar essa imagem. E por
isso, desde muito pequeno, me atraiu a literatura fantástica”.
A gente. Seu primeiro livro
importante, ou ambicioso, Os prêmios
(1960), está pleno de gente, cheio de pessoas que vão num barco de Buenos
Aires a Europa. Gente vulgar, todo tipo de gente. Tem essa admoestação de
Dostoiévski, nada mais para começar: “Que faz um autor com a gente vulgar,
absolutamente vulgar, como colocá-la diante seus leitores e como torná-la
interessante? É impossível deixá-la sempre fora da ficção, pois a gente vultar é
em todos os momentos a chave e o ponto essencial na cadeia de assuntos humanos;
se suprimimos, se perde toda probabilidade de verdade”. Para sintetizar
Dostoiévski, assim começa Os prêmios:
“A marquesa saiu às cinco – pensou Carlos López – Onde diabos li isso?”.
Estavam em Londres, no café de Buenos Aires, no Peru e Avenida, e a partir
dessa pergunta na que intervém os diabos, essa gente começa a desvairar. O resultado
é a loucura, que é a razão envolta no mistério.
A noite. Esse desvario de
Cortázar e de sua gente de ficção alcança sua altura em O jogo da amarelinha que foi lida (que é lida) como um breviário da
saudade e da noite, um monumento literário ao amor, à estranheza e ao tempo. É presidido pelo jogo, pois Cortázar quer que
o leia como der na telha, mas sem alcançar o fim dessa imensa cebola literária;
toda essa paixão lúdica atribuída a Julio só pode ser vista apenas na solidão, despojado, falando
só e de noite, em Paris mas também em Buenos Aires e em qualquer outra parte de mundo. Como se O jogo da amarelinha houvesse sido
escrito diante do espelho de um homem sozinho que convoca (como disse
Dostoiévski) a muitíssima gente que, neste caso, se pergunta quanto durará uma criança.
A criança é Rocamadour; os leitores de O jogo da amarelinha estão habituados a ver uns nos outros essa
criatura indefesa. E a criança não era difícil de vê-la também com uma metáfora que Cortázar atribuía à infância como um todo.
Múmias. A recepção de O jogo da amarelinha assombrou Cortázar,
seu editor (e amigo) Paco Porrúa, porque então (são palavras de Juan Carlos
Onetti) pelo mundo literário havia (não mudou tanto) ‘infinitas múmias’. Quando
Félix Grande dedicou a Julio um número especial dos Cuadernos Hispanoamericanos (outubro-dezembro de 1980), Onetti lhe
disse numa carta: “[...] sem prévio aviso, apareceu O jogo da amarelinha. Aí Cortázar se desloca e coloca. Se
desloca da tradição romanesca de nossos países, aceitada ou roubada do que se
escrevia na Espanha ou França. Sua atitude foi escandalosa para muitas múmias,
rejeição que não o comoveu porque deliberadamente se tratava de provocá-las”. Quem
não se assombrou foi Luis Harss, o grande escritor argentino que provocou (com Los
nuestros) o conhecimento de todos que, junto a Cortázar, fizeram o boom.
Jovens. Onetti seguia com
seu entusiasmo secreto e antigo: “E o autor se colocava, sem buscá-lo, sem
buscar nada mais ou menos que um entendimento consigo próprio, à frente de uma
juventude ansiosa de, para além de tantos planos, respirar um pouco mais de
oxigênio, de entregar-se com felicidade à zona lúdica e sem resposta satisfatória
de sua própria personalidade”. Esses jovens se puseram em fila então. Mas logo,
trinta anos depois, quando Cortázar voltou a reinar nas livrarias espanholas,
depois um interregno que inaugurou sua morte (em 1984), outros jovens voltaram, agora à Fundação March de Madri para escutar jazz e palavras em honra
a Julio Cortázar. Para esse acontecimento veio sua viúva, Aurora Bernárdez, e o
pintor Eduardo Arroyo desenhou o capítulo 7 de O jogo da amarelinha, que foi de uma ternura envolvente; o que há dentro
desse livro de gente perdida na noite. Agora, isso faz vinte anos e O jogo da amarelinha já cinquentenário segue como se fosse
um romance recém publicado.
Você. O editor que acreditou
nele, que o guiou, foi Paco Porrúa. Estavam trabalhando na revisão de Os prêmios; era março de 1960 e ele
tratava seu editor sempre por você. E
quase se publicou antes outro livro que ele o oferece. “Há um par de semanas terminei a revisão
de Os
prêmios, que mandei já a Sudamericana. Recordei então de que havia
dito a você sobre os cronópios e me pus a buscar esses papéis que andavam
bastante espalhados por toda a casa, convém coisas de cronópios. Mas finalmente
apareceram, alguns salpicados de sopa e outros com evidentes vestígios de
restos de borracha [...] Agora que juntei todos esses pequenos textos e
estivemos lendo e analisando com Aurora, tenho a impressão de que não se
excluem de nenhuma maneira, ainda que se reflitam épocas e intenções e
distintas. [...] Se você ainda quiser publicar essas coisas, será questão de
que primeiro me escreva dizendo com sua franqueza habitual (e que é a razão
(uma das razões) de minha simpatia por você) os méritos e deméritos do bicharraco”.
Rir-se. Assim se iam fazendo
os livros; ante Plinio Apuleyo Mendoza (o escritor colombiano) espantava-se com
Paris, quando já tinha 64 anos e seguia parecendo um menino, de dentes
separados, e comm uma quantidade de livros que havia publicado; tinha a certeza, dizia,
de que isso devia constituir um erro, “não são meus”. Ia fazendo assim, como se
fossem bicharracos pintados de dentro
mas com sorrisos. Assim escreveu A volta
ao dia em oitenta mundos (1967); com a ajuda de seu amigo, o pintor Julio
Silva (que fez a capa e a arte interior) não apenas escreveu mas também o construiu
como quem desenha uma jogo de amarelinha. Tudo com que contava ou recontava, tudo
o que via viajando ou parado, tudo o que lhe inspirava externamente, se
converteu em literatura. Como se um menino que sempre fosse levado pela mão e
fazendo recordações. Assim fez também com as fotos de Antonio Gálvez, Prosa de observatório (1972). Nesses dois
livros estão seus descobrimentos e a gente, vista para que permanecessem ainda
sendo vulgares ou extraordinárias.
Julio Cortázar por Carlos Bosch, 1983 |
Fim. O fim veio depois de
várias tristezas: a morte de Carol Dunlop, sua própria enfermidade. Mario
Muchnik, seu amigo e editor, o convidou para ir a Segóvia. Cortázar podia ser
circunspecto ou alegre, mas em ambas as atitudes conservava o olhar de menino
que foi, assustado e curioso. Aqui, sem
dúvidas, em sua última viagem espanhola, seu olhar era essencialmente o da
tristeza. Muchnik o fotografou numa imagem inesquecível em que Julio aparece
escrevendo sem dizer como tinha sobrevivido ao tempo com sua noite. Aquele menino
que foi seguiu com ele, um animalzinho metafisico buscando o espaço.
A seguir um catálogo com quase 100 páginas agrupa alguns dos textos que circularam em nossas homenagens para Julio Cortázar (todos podem ser lidos logo abaixo) com fotografias, recortes, manuscritos e poemas inéditos.
Quase um dossiê para Cortázar
>>> Cortázar forasteiro
>>> O otimismo de Cortázar
>>> Cortázar de A a Z
>>> Alfredo Monte lê O perseguidor
>>> Cortázar forasteiro
>>> O otimismo de Cortázar
>>> Cortázar de A a Z
>>> Alfredo Monte lê O perseguidor
>>> Os 50 anos de O jogo da amarelinha
>>> Julio Cortázar no Tumblr do Letras
>>> No canal do Letras no Youtube separamos entrevistas e leituras com Cortázar
>>> Julio Cortázar no Tumblr do Letras
>>> No canal do Letras no Youtube separamos entrevistas e leituras com Cortázar
Em 2013, ainda no cinquentenário de O jogo da amarelinha editamos uma série de textos Juan Cruz Ruiz e uma leva de outros trabalhos:
>>> Crônica 1;
>>> Crônica 2 + trecho de Los nuestros
>>> Crônica 3
>>> Crônica 4
>>> Crônica 5
>>> Crônica 6
* Texto traduzido livremente de "El niño de los cien años" de Juan Cruz Ruiz publicado no El País
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