Dentro de ti ver o mar, de Inês Pedrosa

Por Pedro Fernandes




Dentro de ti ver o mar. A expressão de um romantismo erótico latente é, pode-se dizer, também tema do romance de igual nome; nome trazido do verso de um fado escrito e interpretado por uma de suas personagens. Esse exercício literário, logo se vê, engendra uma capacidade criativa que Inês Pedrosa tem desenvolvido em outros textos já de longa data conhecidos de parte do público brasileiro. Como quem leu alguns dos seus romances – Fazes-me falta, A eternidade e o desejo, Os íntimos – digo mesmo que é possível visualizar neste novo título a consolidação de uma escrita sobre a fugacidade do amor nos novos tempos.

Tratar da relação amor-erotismo sem se reduzir a um dos polos, isto é, sem se deixar cair na via dos amores comuns já dissecados de maneira diversa nos romances água-com-açúcar ou não cair no extremismo do palavreado pornográfico, é uma grande prova de escrita para qualquer escritor cuja carreira ainda está em processo de elaboração. Inês se equilibra por sobre o fio que ela própria ergue para seu texto e alcança a outra margem com a postura esperada: não titubeia e nos oferece uma radiografia sobre as relações amorosas contemporâneas e ao mesmo tempo um romance de reinvenção do tema.

Sim, as relações contemporâneas não estão mais intermediadas por aquele romantismo de príncipe e princesa (talvez nunca tiveram, mas foram idealizadas) e os percalços presentes de se alcançar um grande final feliz são outros. Pode mesmo ser que essa conclusão nem exista no real sentido que vimos atribuindo em parte por a partir das narrativas de folhetim que agora dominam apenas a presença na TV. Aliás, Dentro de ti ver o mar assume-se mesmo, com o tom do folhetinesco, como uma novela escrita para leitoras (assim, a voz do narrador interpela-nos por variadas vezes, como leitora). Mas se fosse o caso de alguém se aventurar em levar o romance para a tela conseguiria, se bom uso fizesse do texto, um produto muito mais sofisticado do que o que se vê nas telenovelas.  É que sem colocar qualquer tom de rosa, a escritora quer mesmo é se aproximar de uma tradição de quando o gênero era considerado ainda coisa de entretenimento para mulheres e escrito por homens, como foi na literatura de seu país, uma tradição sedimentada com Camilo Castelo Branco. Isso adianta muita coisa: Inês se apropria de algumas estruturas textuais, mas como adiantado no final do parágrafo anterior, cumpre uma reinvenção, atividade cara à escrita romanesca. Está, portanto, no uso do comum, para além dele, porque consegue imprimir uma marca própria, marca já desenvolvida em obras como as citadas no início destas notas.

Se o tema do amor sempre teve como polo principal na construção da figura da heroína apaixonada, ou da adolescente encantada com alguém que está acima de suas possibilidades e pode, portanto, retirá-la de uma condição de inferioridade em que vive metida, por exemplo, isso não está no script de Dentro de ti. Este é um romance cheio de mulheres, vivendo, em grande parte situações amorosas, mas não se encaixam em nenhum dos estereótipos elaborados para a sua imagem na conjuntura do romance de amor. Dentre tantas mulheres, Rosa, Luísa, Eva, Farimah, Fernanda, Penélope (e deve haver outras), aproveito a ocasião para chamar atenção para duas delas porque me parecem ser a dorsal para o andamento da narrativa, ou como poderia dizer, é em torno delas que se alocam as ações mais significativas do romance.

São Rosa e Farimah. As duas são figuras representativas de dois extremos da atual conjuntura porque passam as mulheres tantos anos depois de levantarem a bandeira por liberdade e ordem entre os sexos: Rosa é a independente. Metida com a arte é a que larga a dança pela música – entra em cena o tema da criatividade artística – e tem profundo envolvimento com algumas causas sociais. Não é à toa que ela é representação clara do perfil tradicional da mulher politizada ocidental. Farimah, iraniana, é o oposto. Sim, tem desenvolvido uma larga vivência de rupturas com sua cultura, como o caso de estudar e se tornar engenheira, renunciado mais tarde em seu país em nome da tão sonhada liberdade. Pertence ela, portanto, ao rol daquelas que ainda estão em necessidade de emancipação ao redor do mundo.

Não é necessário dizer que o cruzamento dessas duas histórias questiona não apenas o papel da mulher em ambas as situações e coloca mesmo em pauta o tema liberdade. Também é possível se perguntar, como faz uma das personagens a certa altura da narrativa, sobre que liberdade foi essa estando ainda essas mulheres diretamente ligadas ao sexo oposto e padecendo muitas vezes de uma submissão ou violência sobre as quais não votam contra. Mas, calma, o narrador não está para julgar nenhum caso e tampouco dizer ao leitor qual o sentido ideal de liberdade. O respeito dado a quem está diante do texto obriga-nos a tirar uma conclusão, de fato, mas não há interesse outro de quem narra se não dizer dessas duas figuras e de seus dramas. Ou mesmo dizer que, apesar das distâncias culturais, as vivências estão muito próximas e a discussão sobre a emancipação feminina é ainda percurso longo de coisas por vencer. O termo liberdade é problematizado no intuito de sofrer, inclusive, uma reabertura de seu sentido.   

Das vivências, para além do trabalho, da dedicação ao exercício da liberdade, é onde se encena o amor: estamos diante daquela que se separa do companheiro por não creditar a vida medíocre que ele tem (Luísa, que aqui poderia ser uma ampliação, mas de caráter contemporâneo de outra Luísa, a fútil, de Eça de Queiroz, numa retirada do limbo dessa personagem já ícone da cena literária portuguesa); da que vive uma relação carnal, de tom naturalista, em que tudo se reduz a sexo e suor e é responsável pelas altas temperaturas na atmosfera do romance (Rosa e Gabriel, ele casado, pai de família, livreiro); e da que larga a vida em terras de cerceamento da liberdade, onde tudo é predestinação paterna, para assumir outra vida, outra nacionalidade, casando-se de fachada e às cegas com um gay soropositivo, professor de História e ativista pelos Direitos Humanos (Farimah e Alex).

Não vou entrar em detalhes em cada uma dessas condições ou relações que são utilizadas pela romancista como ricas ocasiões para desconstruir determinações, tanto para o lado corrente como para o lado o oposto; exemplo disso, o casamento, ora apresentado como uma prisão ora como uma oportunidade de libertação feminina. Com isso, quero apenas sublinhar mais alguns temas que são colocados na ordem desse romance, além do tema sobre a liberdade individual da mulher – posso assim delimitar o que antes vinha chamando de liberdade. Creio que não fará mal tendo pela frente essa pluralidade de narrativas dentre as quais enumerei algumas. Não hesitaria dizer do interesse da própria escritora em elevar o tema e as discussões em torno da mulher pensando que isto é já uma das obsessões de sua literatura desde sempre. Mas aproxima-se da questão com outro interesse: como se quisesse descosturar um discurso que ultrapassou o tempo e ainda tem plena aceitação na atual conjuntura.

Mas sem encaixar o romance em rótulos – porque deles parece querer fugir a escritora – o que prevalece é um relativismo das formas. Gabriel, por exemplo, se pode servir de encanto às leitoras pela forma como é visto no envolvimento sexual com Rosa e as considerações amorosas que ele lhe faz, pode também servir de Judas a quem todas quererão batê-lo pelo modo de vida que leva junto ao sexo oposto e pelas agruras que as duas mulheres envolvidas com ele acabam por ser submetidas. Sublinhe aqui o arrefecimento da relação de Gabriel com a esposa depois do nascimento de mais um filho e sexo tornado obrigação para manutenção do casamento e feito ao ritmo mecânico de uma vez ao mês – “Penélope deixava de ser uma vagina. Uma cona. O que agora via nela era um útero sagrado. Uma espécie de igreja cheia de velhas curvadas em oração.”
  
Diante das tramas mais ou menos delineadas acima, outro tema que se apresenta é o da família, ou a possibilidade de novos rearranjos familiares (sim, que o termo família tanto tempo depois tem se tornado um tanto piegas – “Que a família permanece no século XXI, como instituição fundadora e fundamental”, diz uma das personagens do romance em questão, “parecia uma injustiça medieval.”) Nesse sentido me vem, na superfície das relações, outro texto da literatura portuguesa contemporânea, O filho de mil homens, de Valter Hugo Mãe, em que o pescador Crisóstomo, um homem de quarenta anos e só no mundo, ganha a possibilidade de construir uma família ao longo de uma trajetória de outras vidas anuladas.

O próprio romance e a literatura são também temas. O leitor está diante de um narrador atrevido – que entra a todo tempo para explicar as coisas, para repisar determinados dizeres, para conversar com conosco e nos restabelecer as relações que este texto mantém com outros narradores da tradição clássica de língua portuguesa. Cito algumas dessas intervenções: “O problema é que as palavras, as que são ditas e as que ficaram por dizer, alteram as relações entre as pessoas e, por consequência, a história do mundo. A literatura apenas testemunha esses fenômenos.”; “Não quer isto que dizer que a tivesse esquecido: desengane-se a leitora se espera deste romance um consolo maniqueísta ou a confirmação de que os homens são uns biltres insensíveis.”; “Pode o leitor rir à vontade desta ingenuidade esforçada; por mais que suas gargalhadas ecoem através das páginas, a nossa heroína não desistirá.”; “Fernanda sofria da doença do sentido; sem essa doença parecia-lhe que a vida não teria graça nenhuma, e não desmentiremos porque o eco dos seus enredos estereofónicos serviu de fundo a muitas destas páginas, mesmo que a leitora não chegue a escutá-lo porque há coisas às quais convém o silêncio da página e as virtudes da tridimensionalidade foram já demolidas e violentadas pelas técnicas cinematográficas.”

Mas, não é só um narrador que se reinventa, é também a própria forma do romance que busca saídas dos espartilhos a que foi condenado, principalmente se considerarmos o tom sisudo e filosófico determinante na extensa variedade do cânone. E pela aproximação com outras formas textuais, pode-se dizer que é este um romance bricoleur. Faz sentido apresentar aqui, o diálogo que o romance estabelece com a poesia (há as letras de fado produzidas por Rosa nos recantos do texto), o e-mail (numa troca de correspondências entre os amantes que muito lembra a troca de cartas de Fazes-me falta) e mesmo o ensaio (as várias incursões pelo romance sobre temas como a pedofilia, a prostituição, o abuso sexual). E, porque os termos que dão título ao romance também o introduzem, o concluem e formam um verso colhido por Rosa nos calores do amor por Gabriel para um de seus fados cuja letra é a única não revelada pela narrativa, é possível dizer que Dentro de ti ver o mar é o poema que se oculta, um fado em prosa; termo, aliás, capaz de abrigar outros sentidos além do gênero musical. Fado pode designar o peso que constitui nossas existências e é sobre isso que trata o romance de Inês Pedrosa.

Mais poderia ser dito, mas isso fica aos interessados pelo estudo da literatura de Inês; que isso aqui é um mero exercício de leitura visando abrir algumas discussões. As considerações apresentadas até agora concorrem para duas amplas visões sobre este romance: o exercício de saber da liberdade do eu no mundo ou o dos desenraizados são elementos que remetem para uma questão sobre a identidade, um dos temas mais caros à contemporaneidade, principalmente com a acelerada produção de discursos em torno de uma crise do sujeito; acrescenta-se ainda uma variedade de inquietações sobre as artimanhas de Eros nas existências triviais, essas que se enxergam totalmente desnudas do mito; e as experimentações com a forma romanesca atestam a constante necessidade de uma reabertura ou reinvenção da própria linguagem da prosa. E isso já são elementos mais que suficientes para sua leitura.


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