A perseguição de Cortázar: em louvor da audácia e da aventura

Por Alfredo Monte



Oh, faz-me uma máscara e um muro que me escondem de teus espiões
Dos agudos olhos esmaltados e das garras que denunciam
O estupro e a rebeldia nos viveiros de meu rosto,
Uma mordaça de árvores mudas que me guarde da nudez dos inimigos,
Uma língua de baioneta nesse indefeso fragmento de oração,
Torna loquaz a minha boca, e que ela seja uma trombeta de mentiras
[soprada com doçura,
Dá-me as feições de um estúpido entalhado no carvalho e na velha
                                                                                     [armadura
Para escudar o cérebro brilhante e confundir os inquisidores,
E uma dor viúva manchada de lágrimas caídas das pestanas
Para dissimular a beladona e fazer com que os olhos secos percebam
Que outros atraiçoam as lamentosas mentiras de suas perdas
Através do arco dos lábios nus e do riso à socapa.

Dylan Thomas, tradução de Ivan Junqueira

I

Fiquei contristado ao ler a seguinte afirmação de Alan Pauls, autor argentino por quem tenho imensa admiração, a respeito de seu compatriota Julio Cortázar (1914-1984): “Seus livros, mesmo os melhores, parecem exigir agora de mim o impossível: que volta a ser jovem. Como se só assim, rejuvenescendo, pudessem exercer sobre mim algo parecido ao efeito de audácia e de aventura que em algum momento exerceram”1.

Cortázar morreu há 30 anos. Estamos prestes (em 26 de agosto) a comemorar o centenário do seu nascimento. E devo dizer, provocativamente, quem sabe, que minha contristação é mais relacionada ao autor de O passado do que à sua avaliação do legado do autor de RayuelaO jogo da amarelinha, cuja leitura me é necessária periodicamente justamente porque faz reviver radicalmente o encantamento, o ato de ler (complementando o de escrever) em função de uma ânsia de audácia e de aventura.

Não que a esse encantamento não se mesclem ingredientes de dissonância e desconforto (voltarei a esse ponto oportunamente), mas é preciso ter coragem e dizer: se há uma obra que me restitua tanto a fé (ou algo muito parecido) quanto o otimismo, é a cortazariana, no sentido vital de estar sempre alerta e em luta contra “a resistência absurda de um mundo rachado que continua defendendo raivosamente suas formas mais caducas”, como lemos em Livro de Manuel, seu último e talvez mais belo romance (opinião, adianto, que está longe de ser universalmente compartilhada).

Deixando de lado os (des)encantamentos e impressões antípodas entre os que já leram sua obra, pus-me a imaginar como seria para um neófito se deparar com o seu conjunto. Sim, pois há toda uma fieira de títulos que podemos reunir no cordão “dentro do padrão de gênero”, por mais desafiadoras que eles sejam: assim, temos a parte “professoral” (seus ensaios sobre Keats e Poe, por exemplo), seus quatro romances (Os prêmios; O jogo da amarelinha; 62-Modelo para armar; Livro de Manuel), suas coletâneas (Bestiário; Final de jogo; As armas secretas; Histórias de Cronópios e de Famas; Todos os fogos o fogo; Octaedro; Alguém que anda por aí; Um tal Lucas; Orientação dos gatos2; Fora de hora), assim como a peça Os reis, de 1949, a qual, junto com um pequeno livro de sonetos (aliás, publicado sob pseudônimo), Presencia, de 1938, constitui sua “estreia” editorial; há toda uma outra fieira, muito menos “alinhada”, mais difusa e escorregadia, desde os miscelânicos A volta ao dia em oitenta mundos e Último round, até o inclassificável Prosa de observatório, os quais possivelmente representam o mais profundo anelo  de Cortázar como escritor, no sentido de criar jazz (na acepção assaz mítica que ele atribuía ao termo) em prosa, de não se submeter a nenhuma convenção ou classificação, sempre privilegiando a audácia e a aventura que Pauls já não encontra na sua releitura3; e há, ainda, todo um jovem Cortázar póstumo, os textos inéditos e preciosos publicados depois da sua morte, e que se postam em ambas as fieiras, pois há aqueles “dentro do gênero”, como os ensaios reunidos na Obra crítica (onde se destaca sua “Teoria do Túnel” sobre o romance), ou os seus primeiros tateios no romance, que ele desistiu de publicar (O exame; Divertimento), ou textos do tipo Diário de Andrés Fava, a um só tempo subsidiários de outros e perfeitamente autônomos, dentro de uma percepção menos rígida e estanque de leitura.



Para fugir à dispersão de um comentário geral, e até como sugestão para uma boa parte de entrada do universo cortazariano, limito-me, na sequência, a “perseguir” um texto emblemático, El perseguidor, longo conto que pertence a uma das mais extraordinárias coletâneas de seu autor, As armas secretas, de 1959, mas que também seguiu trajetória à parte. Prova disso é que o comentarei, aqui, numa tradução de Sebastião Uchoa Leite em edição da Cosac Naify, a qual segue a da espanhola Libros del Zorro Rojo (esta última, de 2009, portanto comemorativa dos 50 anos da publicação original), com as ilustrações de José Muñoz4.

II

O perseguidor (como parte de As armas secretas) foi publicado numa época em que Cortázar ainda não gozava de renome universal (em função do famoso boom latino-americano), o que acontecerá depois de O jogo da amarelinha (1963), porém era reputado como contista de alta qualidade, por suas duas primeiras coletâneas, Bestiário (1951) e a primeira versão de Final de jogo (1956)5. Naquele momento, mais precisamente na década de 1950, ele sobrevivia como tradutor, após sua mudança para a França (durante muitos anos, atuara como professor na Argentina).

Como admite ao entrevistador uruguaio Ernesto González Bermejo, na visão que cultiva de seu próprio desenvolvimento como escritor, O perseguidor é um ponto de inflexão, superando as realizações anteriores  num sentido claramente definido (e fortemente humanista): “O que verdadeiramente  me interessava, aquilo que eu enfatizava, era o conto em si mesmo, a situação, o mecanismo fantástico que eu pretendia com o conto (...) Posso dizer que se, naquela fase, para chegar a um conto eu fosse obrigado a sacrificar parcialmente a humanidade de um personagem, creio que o teria feito. Ao contrário, em O perseguidor minha atitude é muito diferente: o conto gira em torno do personagem e não o personagem em torno do conto”6.

Charlie Parker ao saxofone e Thelonious Monk ao piano no Open Door Café de Nova York em 1953. Getty Images.

Portanto, esse relato seria a cristalização de um modo novo de encarar a fabulação e seus personagens, numa direção eticamente menos solipsista. O quão equivocado estaria o autor sobre seus próprios textos, e como essa é uma “ferida” ainda a sangrar na recepção da obra cortazariana, é uma questão para depois. Primeiro, constatemos como o texto “gira em torno de um personagem”, no caso o saxofonista Johnny Carter, calcado diretamente na biografia de Charlie Parker (1920-1955).

Johnny segue os passos de seu inspirador: instrumentista revolucionário, levando a música a limites insuspeitos, também era o típico “artista maldito”, viciado, destrutivo (embora muito atraente para as mulheres), com episódios de tentativas de suicídio, internação em clínicas de reabilitação, vexames em shows, cancelamentos de turnês, escândalos e incidentes quase trágicos em hotéis, numa tumultuada e curta trajetória de Baltimore a Nova York, e desta para Paris, nos badalados cafés, como o Flore.

Mas Johnny não é, em essência, uma vítima, um loser, enfim, um perseguido. Ele é o perseguidor do título.  O que Johnny persegue? Lemos a certa altura: “Compreendo que o enfureça a ideia de que vão lançar a gravação de Amorous, porque qualquer um percebe as falhas, o sopro perfeitamente audível que acompanha alguns finais de frase, e sobretudo a selvagem queda final, essa nota surda e breve que me pareceu um coração que se rompe, uma faca entrando num pão... Mas em compensação a Johnny escaparia o que para nós é terrivelmente belo, a ansiedade que busca saída nessa improvisação cheia de fugas em todas as direções, de interrogação, de gesticulação desesperada. Johnny não pode compreender (porque o que para ele é fracasso para nós parece um caminho, pelo menos o sinal de um caminho) que Amorous vai ficar como um dos maiores momentos do jazz. O artista que há nele vai ficar frenético de raiva cada vez que ouvir esse arremedo do seu desejo, de tudo o que quis dizer enquanto lutava, cambaleando, a saliva lhe escapando da boca junto com a música, mais do que nunca só diante do que persegue, do que lhe foge quanto mais o persegue...”



Quem nos fala é Bruno, crítico musical que escreveu uma biografia pioneira de Johnny. O perseguidor também é sobre Bruno, ou melhor, é sobretudo a respeito de Bruno e o fato de que ele até pode fazer para o leitor a exegese da perseguição de Johnny, mas sempre haverá um abismo; o que ele poderá lograr, no máximo, é “fazer uma máscara” do perseguidor, tentar fixá-lo (por essa razão, que toma uma feição mesquinha muitas vezes, se preocupa, conforme a biografia vai abrindo caminho entre os sucessos editoriais, de que as ações de Johnny comprometam a integridade do seu trabalho), exasperando-se (apesar do fascínio) com a constatação de que não há parada nem volta no rastro da perseguição de seu biografado/ amigo: “Sim, há momentos em eu gostaria que ele já estivesse morto”.

No fundo, há uma má-fé essencial na relação entre Bruno e Johnny, o que torna seu relato um modelo do “narrador não-confiável”,  e também do relato que nos diz tanto (ou mais) do narrador do que daquele que seria o motivo por que a narração é feita, como verificamos também em Bartleby, de Melville, Coração das trevas, de Conrad, o Sebastian Knight de Nabokov, o Seymour de Salinger ou o Zorba de Kazantzakis, ou, mais recentemente, o Humboldt de Saul Bellow, para dar alguns exemplos célebres7.

A verdade é que, mais do que exasperado com Johnny, Bruno por vezes se mostra hostil a ele. Alguém poderia dizer que ele está sendo franco, contudo ele sempre atribui, reflexivamente, tal hostilidade como partindo inicialmente do próprio Johnny. É o que ele parece querer nos fazer acreditar ao descrever uma atitude “chocante” (e com conotações racistas incontornáveis da maneira como é visualizada para nós) do músico, num de seus momentos mais decadentes, num tugúrio sórdido: “...estava me despedindo de Dédée e dava costas a Johnny; senti que alguma coisa acontecia, vi nos olhos de Dédée e me voltei rapidamente (porque quem sabe tenho um pouco de medo de Johnny...) e vi que Johnny tinha tirado de súbito a coberta em que estava enrolado, e o vi sentado na poltrona completamente nu, com as pernas levantadas e os joelhos junto ao queixo, tremendo mas rindo, nu de cima a baixo na poltrona ensebada... eu não sabia como fazer para não dar a impressão de que o que Johnny  estava fazendo me chocava. E ele sabia e riu-se com toda a sua bocarra, mantendo as pernas obscenamente levantadas, o sexo pendendo da beira da poltrona como um macaco no zoológico, e a pele dos músculos com umas manchas esquisitas que me deram um asco infinito...”8.

A revolta de Bruno é com o fato de que o músico admirável, seu objeto de biografia, é afinal um ser humano “abjeto” (pelo menos, na sua ótica burguesa), a respeito do qual ele aparentemente chega a uma conclusão “saturada”: “Eu que passei a vida admirando os gênios, os Picasso, os Einstein, toda a lista sagrada que qualquer um pode fabricar em um minuto (e Gandhi, e Chaplin, e Stravinsky), estou disposto como qualquer um a admitir que esses fenômenos andam pelas nuvens e que com eles não há por que estranhar coisa alguma. São diferentes, e ponto final. Em compensação, a diferença de Johnny é secreta, irritante por ser misteriosa, porque não tem nenhuma explicação. Johnny não é gênio, não descobriu nada, toca jazz como milhares de negros e brancos e, embora o faça melhor que todos eles, é preciso reconhecer que isso depende um pouco dos gostos do público, das modas do tempo, em suma”.

Um pouco mais adiante, no entanto: “Tudo isso prova que Johnny não é nada do outro mundo, mas mal penso isso me pergunto se precisamente não existe em Johnny algo do outro mundo (que ele é o primeiro a desconhecer)”9.

Dói em Bruno sua condenação de ser, ao fim e ao cabo das voltas do parafuso de suas relações com Johnny, somente um mero “crítico” (daí o abismo), mesmo que bem-sucedido e importante: “Sou um crítico de jazz bastante sensível para compreender as minhas limitações, e percebo que o que estou pensando está abaixo do plano em que o pobre Johnny trata de avançar com as suas frases truncadas, seus suspiros, suas raivas súbitas e seus choros. A ele não interessa nem um pouco que eu o ache genial... Penso melancolicamente que ele está no princípio do seu sax enquanto eu vivo obrigado a me conformar com o final. Ele é a boca, eu a orelha, isso pra não dizer que ele é a boca e eu...”.

III

“Todo crítico é o triste final de algo que começou como sabor, como delícia de morder e mascar”, nos diz ainda Bruno.

Eis o momento de recolher redes lançadas (espero que não a esmo): e a afirmação de que no meu encanto com a poética da audácia e da aventura que é a obra cortazariana se insinuar o veneno insidioso da insatisfação; o próprio autor de O perseguidor apontando-o como ponto-chave de uma evolução pessoal e criativa (e que tomará uma forma explicitamente politizada em sua obra posterior); e de certa forma, conectando-se com a desilusão de Alan Pauls, certa corrente de opinião, segundo a qual “o envolvimento de Cortázar com a política não fez muito bem a sua literatura e situam o melhor de sua produção entre 1951, ano da publicação de Bestiário, e 1963, ano da publicação de O jogo da amarelinha10, corrente que me parece comungar de uma concepção produtora que não seria estranha ao pior lado de Bruno: a suspeita de que há “outra coisa”, um sopro de outro mundo (para ficar na esfera semântica do saxofone), mas a exigência de uma conformação ao estatuto de um “produto” a ser digerido, interpretado, decifrado, mesmo como desafio artístico.



A meu ver, a dramática tensão evidenciada pela relação Johnny-Bruno é um reflexo do terror pessoal de Cortázar de se tornar algo parecido com o segundo, e sua ambição de ser mais como o primeiro, o que resultou num certo tom caricatural e maniqueísta a que não escapa o texto de O perseguidor11: professor, crítico, ensaísta e tradutor, ele poderia ter vivido uma trajetória muito parecida com o seu narrador tão pouco confiável; por outro lado, suas obras publicadas e mais exaltadas até aquele momento eram “esféricas”, muito bem acabadas, “produtos” (e sobretudo, limitadas do ponto de vista ético e político). Daí que ele, numa inflexão injusta, quero crer, postule limitações e uma “caretice” para esse período anterior, enquanto O perseguidor seria a abertura para uma exploração-Johnny da prosa, alargando a abertura para experiências como romances “abertos’ (O jogo da amarelinha) e livros que rompem com gêneros estanques (Prosa de observatório). E, ponto fundamental, uma abertura para a política, no sentido de transgressão a todas às formas retrógradas e repressivas, e de luta explícita contra determinados regimes.

O ponto delicado se situa nessa própria decisão (se é que não foi uma exigência existencial), que foi para o bem e para o mal: contida pelo próprio entorno dramático e narrativo (o confronto entre a realidade prosaica de Bruno e a perseguição impossível de Johnny), esse “programa”, mesmo porque Cortázar nunca chegou de fato a ser um Johnny em plenitude, muitas vezes escorregou para um proselitismo realmente programático, anunciado e enfatizado por demais, e explicitado no discurso em prejuízo da própria intensidade e voltagem da perseguição.

Ainda assim, por sua audácia, seu senso de aventura, e pela força de uma generosidade (sempre rara) com a condição humana, aliada a um humor deleitável, a obra cortazariana pós-O perseguidor resiste como uma das experiências mais revigorantes que pode pedir o leitor cercado por uma realidade-Bruno (aquela condição acomodada que é o... da boca da utopia-saxofone), tentando fechar desesperadamente todas as brechas na superfície do mundo.

Notas:
1 Minha fonte é a excelente introdução de Sérgio Karam para A autoestrada do sul & outras histórias, seleção de oito contos de Cortázar traduzidos por Heloisa Jahn (L&PM. 2013).

2 Título no Brasil de Queremos tanto a Glenda.

3 E que embasou seu último grande projeto, escrito em colaboração com seu amor tardio, Carol Dunlop: Os autonautas da cosmopista.

4 Salvo engano, há outras duas traduções brasileiras de El perseguidor: a de Eric Nepomuceno, constando da versão integral de As armas secretas (publicada pela José Olympio em 1995, reeditada pela Civilização Brasileira em 2010); e a de Heloisa Jahn na já citada antologia A autoestrada do sul & outras histórias.

5 Nessa primeira edição, havia nove contos; na segunda (1964), esse número dobrou, ganhando a feição atual.

6 Cf. Conversas com Cortázar, em tradução de Luís Carlos Cabral (Jorge Zahar Editor, 2002).

7 Matreiramente, ele nos diz, a certa altura: “O pior é que se continuo assim vou acabar escrevendo mais sobre mim mesmo do que sobre Johnny”.

8 Em incidente posterior (causado pela notícia da morte da filha de Johnny), o músico — em pleno Flore — se   ajoelha chorando  pateticamente diante de Bruno, que fica exasperado e inconformado ao ver que as pessoas mais reprovam sua atitude  “decorosa” de tentar mitigar a penosa cena (levantando Johnny, sem êxito) do que o comportamento vexatório do outro.

9 Em outra passagem, ele chama o talento musical de Johnny de “fachada” para outra coisa: “... e essa outra coisa é a única que deveria importar para mim, talvez porque é a única que importa verdadeiramente para Johnny”.

10 Recorro mais uma vez a Sérgio Karam.

11 Talvez seja esse o cerne da insatisfação de Antônio Cândido que, no prefácio do grande estudo de Davi Arrigucci Jr. sobre a obra de Cortázar (O escorpião encalacrado) diz que a interpretação brilhante parece tirar do texto mais do que ele parece oferecer (referindo-se explicitamente a O perseguidor).

Quase um dossiê  para Cortázar

Em 2013, ainda no cinquentenário de O jogo da amarelinha editamos uma série de textos Juan Cruz Ruiz e uma leva de outros trabalhos:
>>> Crônica 1;
>>> Crônica 2 + trecho de Los nuestros



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