A leitura “histórica” de Thomas Mann: mas além do sensacionalismo artístico
Por Anna Maria Iglesia
Num mundo fragmentado, a reconciliação tornou-se impossível, este é o mundo
que Friedrich Nietzsche vislumbra e ante o qual propõe um regresso ao mito
primitivo, ao mito de Dionísio, ao mito do excesso e da desmesura. Dionísio é o
mito da vontade de poder, dessa mesma vontade que permite dizer sim à vida marcada pelo pessimismo, pela
negatividade, uma vida constituída por um sofrimento inevitável, impossível de
superar, que retorna eternamente. O mundo vislumbrado por Nietzsche é o do
eterno retorno, o mundo que o homem do futuro deve aceitar tal e como é sem
esperar a redenção final que a moral cristã e a razão acrítica e, inclusive, a
ideia de uma ciência que visa o progresso demasiada vezes prometida e prevista.
A racionalidade acrítica já não é válida, tornou-se insuficiente;
converteu-se numa ferramenta invisível num mundo e numa realidade que não podem
ser mudadas, pois o mundo deve ser aceito na dor e no prazer que o constituem. Dionísio
é o deus desta aceitação, é o deus cujo convite é aceito por Gustav Aschenbach,
o protagonista de Morte em Veneza: um
escritor que decide partir movido pelo desejo de afastamento, buscando um
distanciamento com respeito à vida presa em aparências e determinismos,
obrigada à perpétua vigilância e constrição. A viagem de Aschenbach é a viagem
no dionisíaco e, por sua vez, ao Hades, esse lugar onde o prazer é inseparável da
dor. Aschenbach é o personagem criado por Thomas Mann leitor de Nietzsche, pelo
jovem fascinado por esse homem, o filósofo e sua Zaratustra, que “se superava a
si mesmo”, “não tomava nada ao pé da letra, nem acreditava em quase nada”. O
jovem escritor Thomas Mann é, ao mesmo tempo, o leitor seduzido por aquele é capaz
de desmascarar a mentira, ou seja, descobrir a artificialidade de uma sociedade
e de um modo de vida construído sobre a falsidade.
Aschenbach foge precisamente
dos esquematismos de uma sociedade em
que tudo parece estar predeterminado; abandonando-se nos braços de
Dionísio, o protagonista de Morte em Veneza
descobre o véu da mentira que obstrui da vida: não se trata de negar o mundo,
mas precisamente de abandonar-se nele, às suas dores, às suas paixões, aos
prazeres e aos temores. Dionísio dá sim à
vida, mas a uma vida marcada pelos instintos desenfreados, o do prazer romântico
e, portanto, ao poder. A arte dionisíaca, o que seduzia a um Nietzsche todavia
jovem, era a arte do excesso, da grandiosidade: a arte composicional de Wagner
é a arte desinteressada, da embriaguez. Através de suas composições, Wagner
reflete o sentimento dionisíaco, ao que Aschenbach se abandona, mas também é
reflexo dessa vontade de poder, de domínio sobre tudo, que teorizava Nietzsche
e que não tardou em ser apropriado pela burguesia em ascensão que ansiava por
ocupar o lugar de domínio que a história até então lhe havia negado. Descobrindo o véu da falsidade, Wagner constrói
novas mentiras: em sua aceitação, Dionísio volta a levá-lo ao engano e,
portanto, ao desengano ao que sucumbe com doce amargura Aschenbach contemplando
o mar de Veneza.
O protagonista de Doutor. Fausto,
Adrian Leverkhün, é o compositor que, ao contrário, rechaça a vida em busca da
grande arte capaz de dizer a verdade, de desvelar a mentira em se sustenta a
realidade de sua época. Leverkhün é o artista do pacto fáustico, pelo qual rechaça
todo prazer e é inevitavelmente condenado ao isolamento, à solidão do artista
moderno, consciente da significação de sua arte. Não se deseja abandonar-se no
irracional dionisíaco, não se trata de fugir da artificialidade de toda vida
social em busca dessa realidade autêntica de dor e prazer, de sofrimento e paixão;
Adrian Leverkhün é o artista que da solidão trata de dar resposta a uma
realidade manchada por conflitos, o poder desmesurado dos governantes e,
sobretudo, uma realidade construída a partir de uma linguagem manipulada e
convertida em instrumento de poder e de domínio.
Quando as palavras perdem seu
sentido, quando os excessos artísticos se convertem em mero artifício carente
de todo sentido, o artista deve buscar outra linguagem, pois a arte, a grande
arte a que aspira Leverkhün, não é simples e mero efeito de exercício de estilo.
A arte deve falar, deve conquistar esse sentido que as palavras, a comunicação,
a realidade hão perdido; não será uma arte fácil, mas como já comentava Adorno
em respeito a Samuel Beckett, será uma arte capaz de falar desde a negação do
sentido comum e acriticamente aceito.
A arte do artista moderno é a arte de Schönberg, a arte aparentemente incompreensível,
capaz de dar significado ao mundo e ao eu, aquele capaz de dizer a verdade que
arte da aparência sempre negou. Leverkhün é o artista que desde o isolamento
revela a verdade. Thomas Mann, seu criador, é o escritor que desde o exílio
desmascara a Alemanha que o desterrou, e condenou milhões de pessoas ao desterro,
um país que Adorno e Schönberg já não reconheciam como deles, obrigando-os ao
exílio. Adrian Leverkhün é o personagem de um Thomas Mann maduro, do autor já não
fascinado pela exaltação dionisíaca de Nietzsche, do escritor testemunha do “colapso
de uma época embelezada e a aparição de um mundo de sofrimentos sociais, do
triunfo do religioso sobre o cultural”.
O Thomas Mann de Doutor. Fausto é o artista que sabe que a arte é o meio para dar
sentido ao mundo, para interrogá-lo uma vez mais; Mann, como Adorno, sabe que a
arte moderna é a arte verdadeira enquanto nascida da experiência negativa;
frente à impossibilidade de escrever depois de Auschwitz, o artista segue
criando: Paul Celan converteu seus versos em resposta e, por sua vez,
testemunho de um tempo; Beckett encontro no teatro o lugar onde encena e, ao
mesmo tempo, denuncia o sem sentido que a lógica e a razão dominante havia
criado consigo. Como o desolador e cinzenta paisagem que observam os dois
protagonistas de Fim de partida, a
paisagem ante a qual escreve Thomas Mann é cenário no qual se representa o
desmoronamento de um tempo e de uma civilização: a Europa rui na pior das
guerras, arrastou a Alemanha dos grandes filósofos, a Europa se converte num
campo de batalha no qual há demasiadas vítimas.
A arte de Leverkhün é a arte de Thomas Mann dos últimos anos e de
Schönberg; é a arte musical de Berg, a arte literária de Thomas Bernhard, Samuel
Beckett e Paul Celan. É a arte filosófica
de Adorno, de Horkheimer e de Hannah Arendt; como também é a poesia filosófica de
Maria Zambrano, de todos aqueles que buscaram através da arte e do pensamento
voltar a dar sentido a uma linguagem condenada ao pior dos racionalismos.
Leverkhün é o artista que Aschenbach nunca foi, Schönberg é o compositor que
Wagner não chegou a ser, o que não se deixou seduzir pelo efeito, pela busca romântica
de uma redenção final, a mesma de Wagner o grande compositor da burguesia.
Schönberg é o compositor sobre o qual teorizou, sem saber, Nietzsche e
Leverkhün é o artista que, ainda que diga não
à vida, busca desvelar a mesma verdade do filósofo, busca rasgar o véu que
Zaratustra já havia rasgado.
* Anna Maria Iglesia é graduada em Filologia italiana e em Teoria da
Literatura e Literatura Comparada; mestre em Teoria da Literatura e Literatura
comparada pela UB.
** O texto aqui publicado aparece pela primeira vez na Revista
de Letras.
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