A insustentável forma de A festa da insignificância
Por Alfredo Monte
I
O lançamento, com
toda a pompa e circunstância1, de A festa da insignificância, e o fato de que o novo romance de Milan
Kundera já encabeça a lista dos mais vendidos (pelo menos no site da Livraria
Cultura) se reveste de aspectos dignos de nota: há 30 anos, o autor tcheco era
a bola da vez, como se diz, com A
insustentável leveza do ser. Nem antes (apesar do seu prestígio) nem depois
ele alcançaria tal repercussão. No Brasil, alguns títulos (obras anteriores)
ainda se beneficiaram da “onda Kundera”; logo passou, mesmo porque certa ala
dos nossos intelectuais associou o sucesso na “lista dos mais vendidos” à ideia
de banalidade; para muitos, tratava-se de um escritor pretensamente sofisticado
e profundo, mas com pouca substância, no fundo (em contrapartida, muitos
leitores “comuns” compravam os livros e desistiam de ler, achando-os “difíceis”);
para outros (é o meu caso), A
insustentável leveza do ser representara a descoberta de um grande escritor2.
Além disso, depois
de passar a escrever diretamente em língua francesa, produzindo pequenos
romances (A lentidão; A identidade; A ignorância), é a primeira vez, já que A festa da insignificância é dividido em sete partes, embora curto
como os três anteriores, que Kundera retorna à sua arquitetônica obsessiva, tal
como caracterizada na célebre entrevista a Christian Salmon (da Paris Review): “Existem
duas formas-arquétipos em seus romances: 1) a composição polifônica que une
elementos heterogêneos em uma arquitetura fundada sobre o número sete; 2) a
composição vaudevillesca, homogênea, teatral, que roça o inverossímil, e que se
funda sobre o cinco”, sintetiza Salmon (exemplos da primeira maneira: O livro do riso e do esquecimento, A insustentável leveza do ser e, agora,
o romance aqui em questão; exemplo da segunda: A valsa dos adeuses). Kundera: “Sonho sempre com uma grande
infidelidade inesperada. Mas até o momento não consegui escapar dessas duas
formas”.
Então tentarei a
seguir proceder a uma avaliação do novo romance-sensação (já em fase de gerar
reações ambivalentes), roçando primeiramente a sua temática — afinal, os leitmotivs filosóficos sempre são um
destaque, para admiração ou depreciação, na sua obra kunderiana —; e depois
considerando essa volta à prisão, por assim dizer, das formas metronômicas,
dentro da sua carreira como “escritor de língua francesa”.
II
“A grande ideia de
Schopenhauer, camaradas, é que o mundo é apenas representação e vontade. Isso
quer dizer que por detrás do mundo tal como o vemos não existe nada de
objetivo, nenhum Ding an Sich3, e que, para fazer existir essa
representação, para torná-la real, deve haver nela uma vontade: uma vontade
enorme que a imponha (...) A questão é esta: existem tantas representações do
mundo quanto pessoas sobre o planeta; isso cria inevitavelmente o caos; como
pôr ordem nesse caos? A resposta é clara: impondo ao mundo inteiro uma única
representação. E ela só pode ser imposta por uma única vontade, uma única
imensa vontade, uma vontade acima de todas as vontades... E asseguro-lhes que
sob o domínio de uma grande vontade as pessoas acabam acreditando em qualquer
coisa.”4
Quem está com a palavra no trecho acima é
Stálin, evocado em A festa da
insignificância a partir de anedotas colhidas nas memórias de um posterior
dirigente supremo da União Soviética, Nikita Khruschóv, lidas por alguns dos
personagens do romance. Elas nos remetem a uma época em que ainda não fora
decretado o “fim da história” e em que havia Grandes Narrativas, como o
marxismo — transformado (e o trecho sugere que deliberadamente) em uma
impostura: o stalinismo.
É desconcertante (e
provocante) a evocação da figura de Stálin porque o narrador envolve o ditador
numa aura de gracejo (sim, Stálin graceja e chega a ser frívolo), enquanto em
torno—e isso é o Terror—espalha uma mentalidade de mortal (ainda que risível)
seriedade, um dos grandes temas kunderianos.
Num mundo de
impostura, onde uma versão da realidade, uma representação, é escolhida como A
Verdade, não há liberdade para a insignificância básica da existência (uma
insignificância benigna): tudo é levado a sério. Daí o escândalo de Khruschóv e
dos outros membros do Partido à volta de Stálin quando percebem que ele contou
uma mentira. No mundo totalitário, a pequena comédia privada tem alto valor
subversivo em contraposição à Grande Comédia da impostura universal5.
III
“Agora, a
insignificância me aparece sob um ponto de vista totalmente diferente de então,
sob uma luz mais forte, mais reveladora. A insignificância, meu amigo, é a
essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está
presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas,
nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em
condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de
reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la.
Aqui, neste parque, diante de nós, olhe, meu amigo, ela está presente em toda a
sua evidência, com toda a sua inocência, com toda a sua beleza. Sim, sua
beleza. Como você mesmo disse: a animação perfeita... e completamente
inútil...”
Agora quem está com
a palavra é Ramon, um dos protagonistas (os outros são seus amigos Alain,
Charles e Calibã, além de um ex-colega por quem nunca teve muita simpatia,
D´Ardelo) de A festa da insignificância, numa Paris atual, pós “fim da
história”, muito longe da representação única imposta pela vontade stalinista e
numa Europa-Novo Milênio onde multidões entediadas fazem fila para uma
exposição de obras de Chagall como poderiam estar fazendo qualquer outro
investimento de tempo e de consumo (para fugir ao tédio e ao vazio, mas
incorporando-os na própria ação, que sempre parece insatisfatória nessa
“economia de desejos”).
Os leitores de A insustentável leveza do ser vão
lembrar-se de que seus protagonistas, mesmo longe da opressão stalinista e de
uma Praga ocupada pelos russos, sentiam um mal-estar indisfarçável na ultrademocrática
Zurique. Dessa vez, Stálin recuando para o universo anedotário, vagueando pela
capital francesa, o que ocupa os seres kunderianos, esses caracteres ficcionais
que o narrador confessa amar (“Os quatro companheiros que lhes apresentei:
Alain, Ramon, Charles e Calibã, eu os amo. Foi por simpatia com [sic] eles que
um dia trouxe o livro de Khruschóv a fim de que todos se divertissem”)?
Basicamente, eles
(e mais D´Ardelo) se dedicam a pequenas comédias íntimas e imposturas
inofensivas (até certo ponto), que não se chocam com nenhuma vontade única e
excludente. Talvez porque cada um deles seja manqué de alguma forma: por
exemplo, Calibã é um ator (assim alcunhado por ter brilhado na pele do
personagem shakespeariano) há anos desempregado (no esteio da cambaleante
práxis do “estado de bem-estar” vive do seguro-desemprego), que auxilia, como
garçom, Charles em coquetéis e festas. Para tanto, criou para si a persona de
um paquistanês que não fala o francês, ele e Charles comunicando-se numa
linguagem inventada com o fito de dar verossimilhança à farsa; D´Ardelo, por
sua vez, aparece pela primeira vez no romance recebendo a informação de que
seus exames não apontaram o câncer que ele temia; porém, ao encontrar Ramon
(que, como já apontei, nunca teve muita simpatia por ele), seu colega
aposentado, informa-o de que está com a doença. Nesse ponto, mais uma vez vemos
a implicância de Kundera com um conceito derrisório de seriedade: “Fiquei
comovido com a maneira como ele me contou... muito lacônica, quase pudica...
sem demonstrar nenhum sofrimento, sem narcisismo algum. E de repente, pela
primeira vez, senti por aquele cretino uma verdadeira simpatia... uma
verdadeira simpatia...”, diz Ramon.
Já Alain,
observando os corpos femininos, medita sobre o “umbigo” como nova zona erótica6,
substituindo coxas, bundas, peitos, e o significado disso para caracterizar
nossa época, o que remete tanto às ásperas polarizações ideológicas em que se
taxava alguém “alienado” como aquele preocupado “com o próprio umbigo” (o que
justificaria sobremaneira essa parte do corpo como obscuro objeto de desejo
numa fase histórico loucamente ensimesmada), quanto à própria biografia do
personagem, abandonado pela mãe ao nascer (ela não queria ter filhos), e aí há
toda uma distorção da mística do cordão umbilical, o amor materno, etc.
Inconformado com esse abandono, Alain inventa diálogos com o retrato dela, e no
decorrer da narrativa, a voz fictícia da mãe vai adquirindo força e
acompanhando-o até fora dos limites do retrato.
Portanto, os
personagens de A festa da insignificância
procuram, através desses pequenos logros ou imposturas, escapar da
insignificância não benigna, isto é, do indiferenciamento e uniformidade que
transforma toda a fruição da vida moderna numa fila enorme e entediada para uma
exposição de Marc Chagall7. E escapar da evidência8 da
pluminha na festa (uma festa de verdade, não a metáfora do título) de
aniversário de D´Ardelo (organizada por Charles, com Calibã como garçom, e à
qual —a contragosto—comparece Ramon), que deixa siderados os convidados,
tentando apanhá-la: “Ela erguia a mão com o indicador em riste para que a
pluminha pudesse aterrissar nele. Mas a pluminha evitava o dedo e continuava
sua errância...”
IV
Espero, ao utilizar
as expressões “insignificância benigna” e “insignificância não benigna”, ter
mostrado a feição ambivalente e até prismática que o conceito de
“insignificância” toma no romance de Kundera. A insignificância pode, por
exemplo, ser benigna quando relativiza e solapa a seriedade como imposição
totalitária; e pode ser não benigna quando o irrisório passa a ser um projeto
contínuo e conspícuo de como empurrar as existências pela frente.
Penso que haverá
quem considere que ele apenas arranhe superficial e frivolamente essas
implicações (lembrando que Kundera sempre gostou de explorar conceitos:
“imortalidade”, “lentidão”, “ignorância”, “identidade”, e mesmo, de forma menos
evidente, “esquecimento”, “leveza” etc). Acredito, porém, que o calcanhar de
aquiles do livro está na questão da forma romanesca, naquelas duas
formas-arquétipos já citadas e às quais retorno.
Escrevendo numa
segunda língua, ratificada sua condição de “exílio” (e de autor que,
essencialmente, é conhecido via tradução, pois seus originais estavam
censurados no país de origem), tive a impressão ao longo dos anos em que
acompanhei o lançamento dos seus três romances em francês de que aos poucos ele
desatava os nós e recuperava seus dons. Recapitulando: começou meio duro,
apesar do despojamento formal, com A
lentidão; o seguinte, A identidade,
já era mais equilibrado, e finalmente com A
ignorância (para mim, o melhor Kundera pós-A insustentável leveza do ser) parecia ter sido encontrado o ponto
certo, na história de dois exilados tchecos, Irena e Jozef, pressionados a
voltar à pátria após a queda do regime comunista. No relato desse retorno, o
próprio autor parecia ter reencontrado seu “laço secreto” com a fonte de seus
dotes: “É a essa Praga que ela é afeiçoada, não aquela suntuosa, do
centro… Sonhadora, ela caminha; durante alguns segundos entrevê
Paris, que, pela primeira vez, lhe parece hostil: geometria fria das
avenidas… e em nenhum lugar um único toque dessa intimidade amável, um só sopro
desse idílio que ela respira aqui; aliás, durante todo seu exílio foi esta
imagem que ela guardou como emblema do país perdido… ela se sentia feliz em
Paris, mais do que aqui, um laço secreto de beleza a ligava só a Praga”.
A ignorância demarcava
também um possível estilo tardio kunderiano, ao mesmo tempo reconhecível por
seus temas e mais depurado, concentrado. Nesse sentido, A festa da
insignificância me parece um tremendo retrocesso, uma volta diluída aos
procedimentos anteriores à “fase francesa”, inclusive a opção infeliz por
dividir uma narrativa tão curta em sete partes9.
Creio que até mesmo
dentro do fetichismo das duas formas, teria sido preferível algo mais
vaudevillesco, do tipo A valsa dos adeuses.
Mesmo um romance “filosófico” (termo detestável), pelo próprio estatuto épico
do gênero, precisa se espraiar em ação e conflitos para que suas ideias sejam
encarnadas com mais vigor e mais verossimilhança. Da maneira como A festa da
insignificância foi estruturado, houve um efeito de compressão sem adensamento.
A forma sendo “séria” (ou “larga” ou “ampla”—tudo o que poder evocar o
polifônico, isto é, os contrapontos narrativos e rítmicos em que ele sempre foi
um mestre) e o conteúdo tendo a ressonância (e consequente impacto) de um
piparote, a impressão é que temos é que o romance que lemos representa um
descompasso entre ambos.
Kundera ama seus
personagens, contudo não se deu ao trabalho de nos fazer amá-los também. E
quem, como eu, tem pelo menos a Sabina de A
insustentável leveza do ser em altíssima conta, entre as personagens da
ficção das últimas décadas, acaba se sentindo um pouco logrado.
Notas
1 Capa dura, com uma imagem (de Dominique Corbasson) muito
bem escolhida. Lamentável (e desnecessário) é a Companhia das Letras ter
colocado um apelativo BEST SELLER INTERNACIONAL para chamar a atenção sobre o
livro.
2 Gosto muito de todos os livros de Kundera, no entanto para
mim suas obras-primas são os romances A
brincadeira e A valsa dos adeuses
e a coletânea de contos Risíveis amores.
3 A “coisa em si” por trás das representações, na concepção
de Kant.
4 Em todas as citações de A festa da insignificância [no original, “La fête de
l´insignifiance”), valho-me da tradução da kunderiana-mor Teresa Bulhões Carvalho
da Fonseca (Companhia das Letras, 2014).
5 Que seja Stálin quem pratique a pequena comédia da
mentira, da impostura privada, inclusive como objeto de anedotas, é um achado
delicioso. Lembremos-nos de outro tcheco, o Kafka de O processo: “A mentira se converte em ordem universal”.
6 Não custa lembrar que o don-juanismo, em seus esplendores
e misérias, em sua glória e melancolia, é um dos motes recorrentes da obra de
Kundera.
7 Não posso deixar de apontar que essa imagem da fila revela
um sentimento elitista e muito nostálgico da ideia de Europa-civilização (que
também tem o seu quê de impostura) que me parece muito problemática, mas que
não me proponho a desenvolver aqui, só deixo a indicação.
8 Ou aceitá-la, como faz Ramon.
9 Ricardo Lísias parece ter matado a charada, ou seja, a
perplexidade (que pode ser traduzida como insatisfação) que a leitura de A festa da insignificância causa no
sentido da falta de ressonância formal para aquilo que se propõe: “O livro me
deixou perplexo: tem tudo dos melhores romances de Kundera, mas em proporções
reduzidas. As personagens são apresentadas de forma ligeira e seus conflitos
também são rasos. Os diálogos são um tanto frívolos e o livro vai aos
poucos se desfazendo, sem que eu tivesse conseguido entender se isso faz parte
da construção de uma espécie de discurso do insignificante (nós que sempre
buscamos significantes...) ou se o livro não deu certo mesmo.
Dizendo de outro jeito: não consegui saber se o autor, para mostrar um grupo
social insignificante, fez um livro com tudo mais ou menos insignificante, ou
se sou eu que estou procurando qualidades demais em um livro menor de um grande
autor. De um jeito ou de outro, um autor como Milan Kundera merece no mínimo
essa dúvida.”
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