Tempestardes, de Leonardo Chioda

Por Pedro Fernandes



Leonardo Chioda. Foto: Giane Portal


confesso que sou tarde mas entendo
lá vem alva a noite
de estrelas baixas, próximas
do teu ventre tatuado


O que sugere um título como Tempestardes? Ou os versos de “Magna luna (romance no Caffè Florian)” colocados à abertura deste texto? Primeiramente de não estamos diante de uma chuva passageira de palavras cujo fim deságua em nada. O engendrar de signos já nascido no termo que acolhe esse conjunto de poemas e a transmutação do eu poético em natureza e força temporal sugere que o leitor tem por adiante não mais um título de poesia para fazer volume na estante, mas um relicário doce, complexo e inventivo, três qualidades muito caras à poesia ou ao estado poético que não estão acessíveis de maneira gratuita no universo da criação. São qualidades que exigem sensibilidade, outra forma de inserir-se no mundo – ainda mais complexa se pensarmos que habitamos e somos habitados por um desencanto profundo – e, por fim, criação. Sim, que o poema não se presta à qualidade de representação, mas é um objeto próprio situado como matéria existente.

Mais que um primeiro livro, Leonardo Chioda quis ser uma voz nova no extenso cordão de vozes erguidas ao longo da libertação das formas poéticas e no já extenso rol de nomes que compõem aquilo que chamamos por tradição. Se pensarmos na cena contemporânea, então, não faltarão motivos para dizer que estabelecer uma voz é mais que um desafio é uma maneira dada a poucos. Claro, essa afirmativa, considera que, na atual conjuntura a cena literária brasileira alcança um número diverso e forte de obras do gênero.

Logo, se ninguém tiver dito que, na primeira tentativa, Chioda conseguiu aí estar, que seja dito pela primeira vez; se alguém já tiver reparado, bem, fique então corroborada a opinião que não é alheia, portanto. Nesse ínterim, a criação, o maior dos dons de um poeta, não é desperdiçada com matraquear de palavras ou construções simplistas, Tempestardes (Editora Patuá) não retoma correntezas e nem reforça vozes. Tempestardes que ser um fio a mais, uma voz a mais. 

Daqui para adiante, o poeta já tem plantada as bases de todo um projeto literário se assim quiser: a revigoração do clássico pelo olhar aguçado do poeta imaginativo; a revigoração da palavra pela capacidade de exercício léxico-gramatical; a transformação da experiência em existência pura. No livro todas essas possibilidades não aparecem individualizadas, mas integradas como se juntas pudessem melhor colocar o poema em funcionamento.

Os elementos motivadores desses textos também são diversos: o tempo e suas fronteiras, a palavra e seus domínios, a imaginação e a existência, o mito e o sagrado, as coisas palpáveis e as abstrações, os lugares vividos e os da ficção. As influências, que nenhuma voz se põe solta no deserto, estão marcadas direta e indiretamente em toda parte e se porta de igual maneira dos elementos motivadores: Maria Teresa Horta, Alejandro Zambra, Sergei Parajanov, Leonardo Cohen, Debussy, Federico García Lorca, Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez, Blaise Cendrars, Fernando Pessoa, Shakespeare, Herberto Helder, Leminski, Murilo Mendes, Sylvia Plath, Ana Luísa Amaral, Maria Gabriela Llansol e outros.

Capa da edição de Tempestardes. A imagem é produto
do próprio poeta - uma colagem com nome também de
enigma: "Destino".  Publicado em 2013 pela Editora Patuá,
a obra integra a coleção Patuscada e foi premiada
pelo PROAC 2012.

Tanto assim se mostra as bases de um projeto poético que pode tomar uma forma grandiosa no futuro como pode ainda servir de um único livro de uma existência, embora saiba que a primeira via é a mais coerente. Um poeta pronto que renuncia à palavra é uma linha a mais na ordem do desencanto do mundo – ainda mais no Brasil cujas vozes poéticas, mesmo em toda parte, e mesmo em grande parte fortes se deixam muitas vezes perder-se no interesse escuso do ofício e alia-se às vias do mundo ordinário apenas em nome de uma multiplicação exagerada da imagem nos holofotes. E praticam um trocadilho verbal doente garantidor de uma leva de seguidores anônimos igualmente apáticos acreditando que dizer poesia é só desdizer. A leva de nomes citados acima, por plural que seja se acomoda por um traço – um poeta é aquele que tem a humildade de se irmanar na voz dos grandes, não para querer ser eles, mas para quer ser voz entre eles.

Tempestardes não é ainda apenas um livro de poesia; é uma antologia. As três posturas do eu-poético sobre as quais quisemos qualificar no meio deste texto apresentam-se em três unidades marcadas por formas e exercícios próprios: “víscera da musa – trajetos e presságios de quintais e outros corpos”; “azulantigo – poemas netunos e ladrilhos {para amansar e revolver o mar}”; “górgona a caminho – 7 feitiços de amor e não”. 

Juntos, três cadernos de exercício para enlarguecer silêncios, corromper sintaxes, inventariar temas, propor novas existências, tudo um jogo silencioso contra a excrescência, ora tornando o poema corpo – “desvela o símbolo, habitado / a ponto de cometer pixídio, no / voo que segue suga na vírgula / predição do meimendro” (de “Os verbos de veneração”), ora tornando corpo o poema – “herda a pele / o âmbar das núpcias // é corrupta a imagem / minoica / das tuas levas // são espirais sobre a derme do momento / a ponto de – / cantar as rédeas” (de “Tatuagem”).

A diversidade é outra forma de mover-se entre a complexidade do mundo, cujo universo de signos encontra-se, por vezes tomado por uma conjuntura esvaziada de sentido. O exercício poético ou o trabalho com a palavra desenvolvido por Chioda não quer coadunar com isso; por isso a diversidade adquire aqui outra forma de romper com a decadência do poema. Assume-se numa maneira de escapar ao solipsismo do verso. Em tempos de relativismo e de multiplicidade de pontos vista, a diversidade é também uma maneira de sua negação e integração num mundo cuja reinvenção do aparente deve sempre ser o grande desafio de todo artista. Assim, a poesia de Chioda se constitui como instrumento crítico contra as falácias do exercício poético, cada vez mais comuns na contemporaneidade.

Se um livro de poesia se apresenta sempre como um artefato para implosão do comum – até mesmo das formas de ler – Tempestardes se mostra como uma implosão também da forma de ler poesia; que não é possível ler e num mesmo dia voltar ao livro ou mesmo ao poema. É necessário ler e ficar por dias remoendo as existências da palavra e os sentidos provocados por ela – exercício que tivemos o cuidado de poupar o leitor numa leitura como esta porque é um adendo a convidá-lo para vivê-lo in loco na leitura da obra ora em questão.

Ligações a este post
Leonardo Chioda teve poemas incluídos na 7ª edição do caderno-revista faces, que pode ser lida aqui.

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