O novíssimo testamento (e outros poemas), de Jorge Sousa Braga
Por Pedro Belo Clara
Em
primeiríssimo lugar, e porque a existência desta coluna quinzenal exige a
aplicação dos traços de uma seriedade sóbria, expor-se-ão as devidas evidências
sobre a obra e o autor hoje em discussão.
Vejamos:
lançado ao público em Abril de 2012, o presente trabalho, de índole poética,
poderá não ser considerado, por diversas personalidades versadas em assuntos
literários, um dos marcos principais da carreira deste autor nascido na cidade
que lhe dá o nome e que como profissão diária elege a de médico obstetra.
Contudo, a uma certa originalidade e convicção criativa, que servem de sustento
à obra, nenhum leitor poderá permanecer indiferente.
Tanto que o presente
trabalho, em certos aspectos, assume uma ruptura (provavelmente não definitiva)
com alguns dos habituais traços poéticos exercidos por Sousa Braga,
nomeadamente o emprego de vocabulário representativo dos instantes de intensa
intimidade amorosa e o recurso a um léxico instigador de significativos
impactos em quem os ler (para muitos,
obscenos), algo que, em termos globais, tende a ser omitido pela maioria dos
autores. Basta, para tal, recordar a célebre “Epístola sobre a merda” (que em
2007 foi publicada na revista Poesia Sempre) ou o título do livro editado em
1980, aquele com que deu início à sua carreira escritor: De manhã vamos todos
acordar com uma pérola no cu. Um homem directo e desprovido de preconceitos,
como se conclui.
Uma
vez que o estimado leitor já terá por ora compreendido os termos com que
anteriormente nos tentámos expressar, seguiremos com o devido enfoque na obra
em questão.
A
bem da verdade, ao longo da mesma, excluindo as características atrás
referidas, agora ausentes, o cunho habitual de Sousa Braga faz-se sentir ao
longo de cada poema, principalmente ao nível da sua construção. A pontuação,
amiúde inexistente, e o recurso a versos ditos “fragmentados”, quebrando o
ritmo harmonioso que uma fluida leitura poderia sugerir, de um modo que as
sílabas que os compõem aparentam ser privilegiadas em detrimento da
musicalidade verbal, são os exemplos mais flagrantes. Acresce a esse facto o
recurso, nem sempre usual, ao verso longo e a preferência – talvez obstinação –
pela rima, quase cruzada, somente no término de cada poema (a poesia é livre e
sem rigidez métrica). Embora se compreenda a doce harmonia com que a rima é
capaz de impregnar um poema, essa opção assume por vezes um risco algo elevado,
já que o seu uso nem sempre se consegue despojar da sensação de “emprego forçado”.
Nada nos olhos escuros
e pequenos revela a sua
via sacra Veste umas calças
coçadas um colete de malha
com manchas de tinta
Iluminam o atelier
alguns focos de luz...
O pintor olha-nos fixamente
pendurado na cruz
(Estudo para o retrato do pintor Albuquerque
Mendes)
Não
estaremos, é certo, perante a mais distinta obra de Jorge Sousa Braga, vencedor
do Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil com Herbário (1999) e tradutor de
nomes como Bashô e Jorge Luís Borges, até porque a um autor é impossível editar
obras-primas com uma ímpar consecutividade, mas este conjunto de vinte e seis
poemas, divididos em três partes, detém em si um agente diferenciador que
merece toda a nossa atenção e, subsequentemente, o prazer de uma serena
leitura.
Apresentam
os poemas uma boa coerência entre si, pelo que nenhum deles imprime um
desfasamento aos temas ou às sensações por outros sugeridas, embora seja
notório a pouca homogeneidade em termos de intenção, força ou impacto. Não que
tais valências se ausentem por completo; apenas são registadas e como trunfos
assumidas por alguns poemas da obra. Sobeja assim a sensação de que tal
consistência, a existir, reforçaria, de sobremaneira, o carácter mais vincado
do trabalho em causa. Mas, em todo o caso, o autor assume as suas escolhas (e
bem se sabe o quão difícil poderá ser assumi-las), pelo que tal acto é
condignamente, goste-se ou não, merecedor da nossa tolerância e respeito.
O
poema que dá o nome à obra é igualmente aquele que a abre: “O novíssimo
testamento”. Não é à toa que na epígrafe se acrescenta “e outros poemas”, tendo
em conta a centralidade do referido poema. É claro que títulos como este
remetem o imaginário do leitor para cenários e motivos bíblicos. Sem qualquer
erro, essa percepção é acionada. E muito justamente, diga-se, já que a suposta intenção
do autor encontra assim a sua realização. Desse modo, não se estranha a
presença de certas referências ou até mesmo vocábulos como “Sermão da
montanha”, “Salmo”, “Epístola” ou “Génesis”. De certo modo, Sousa Braga parece
desejar reescrever, por suas próprias rimas (ainda que escassas) e versos,
aquilo que o católico comum sempre conheceu. A razão de tal surge impressa, em
estilo de inscrição, no poema que temos vindo a referir: «Para acabar de vez
com os direitos humanos / e restaurar os direitos divinos». Não só por esse
motivo, mas também pela toada que confere à obra em geral e à envolvência que
imprime, este poema, o de abertura, escrito como um testamento composto pelo
«sangue / do último dos genocídios», embora não seja propriamente complexo, mas
um trabalho fértil e pleno de substância, dos mais longos deste livro, merece
veramente que o leitor sobre ele se debruce e escave todas as suas reentrâncias
em busca dos mais ocultos sentidos.
Em
suma, toda a primeira parte de O novíssimo testamento (e outros poemas) é
versada sem esoterismos obscuros ou infundados, mas com laivos de místicas
intenções e simbólicos motivos, naturalmente mais religiosos do que espirituais,
ainda que tão ténue possa ser a fronteira que diz separá-los. Sem
transcendentalismos, mas com uma metafísica subentendida, esta poesia de
inclinação prosaica revela muitas vezes a sua natureza indagadora. O poema
“Salmo”, por exemplo, parece nascer de um desses caminhos de redoma quase sem
fim que buscam um entendimento, uma íntima causa, uma derradeira solução, já
que nele o autor se debruça sobre as causas do maior dos sacrifícios,
rejeitando, contudo, a sua incidência:
«Não foi por mim que deixaste que te pendurassem na cruz (…) / (…) É uma herança
demasiada pesada / para se deixar a alguém». Em todo o caso, deste exercício
parece conseguir-se o soerguer do essencial: a reformulação, o refundar, o
recriar. Afinal, a renovação impõe-se. Uma nota final, breve, para as duas
epístolas do capítulo, ao silêncio e ao mar, que compõem uma criativa forma de
anexar breves haikus num só poema, pleno de intenções visuais e, claro,
contemplativas.
Nestas ervas O coração do mar
só
o silêncio é um cemitério
se
pode deitar de navios e de luar
A
segunda parte desta obra marca uma súbita ruptura com o anterior capítulo.
Aqui, desenvolvem-se epitáfios e demais divagações de índole fatalista, onde a
morte e o seu fatídico simbolismo mais se fazem sentir. O poema de abertura,
“Valsa da Morte”, ensaia o tom para a breve melodia do também breve volume.
Importa aqui destacar, pois mais que nenhum outro em particular este, no
presente volume, se destaca, o poema “Em nome do pai”, um pungente
retrato/relato dos últimos dias de vida do pai do autor, concluído habilmente
com a ideia plasmada da sensação que, no fundo, é o sobejo da própria morte: a
ausência («Mas o banco continua vazio / demasiado vazio... / No fim da noite /
corre um rio»).
A
terceira e última parte retoma, em parte, os temas anteriormente expostos, se
bem que não se consolida como uma súmula dos mesmos – somente um útil
complemento. Assim, tem a honra de a abrir o singularmente belo “À Cristina”,
um poema singelo escrito ao estilo de um epitáfio, embora as razões do mesmo
não sejam propriamente claras. Isto é: a linha entre dedicatória e elogio
fúnebre encontra-se algo diluída, ainda que a última hipótese, pelo léxico
escolhido, ganhe uma força especial: «Se os anjos soubessem pintar / ela seria
um anjo (…) // (…) Persistente / como é há-de ensinar // os anjos a pintar».
Mas também assistimos à exaltação dos elementos da natureza, como em
“Agapantos” («(...) um fogo-de-artifício rente / ao chão como se inteiros // os
dias te explodissem na mão»), e à aguda tristeza fomentada pelo simples render
das estações, de que “Dias sem árvores” é um óptimo exemplo («sem plátanos
tílias liquidâmbares / robínias numa moldura de frio»). De certa forma, a
pluralidade temática da obra conhece aqui uma digna manifestação. O tempo da
infância (“Ventelas”) e a frustração que decorre do desejo ou intento
constantemente negado (“O semáforo vermelho”) são igualmente exploradas neste
derradeiro capítulo.
A
escrita de Sousa Braga é maioritariamente simples e directa. Embora não seja
propriamente rica em metáforas, a construção do verso é um dos motivos de
admiração do trabalho poético deste autor que muito recentemente desenvolveu a
sua principal antologia que já conta com mais de trezentas páginas - O Poeta Nu.
Ainda que a poesia, «a mais daninha das ervas» (“Erva daninha”), seja uma
essência naturalmente livre e indomável, o seu exercício neste trabalho propõe,
essencialmente, um acto de reflexão, mas só quando não serve propósitos
evocativos, celebrativos ou meramente confessionários. Transcrevemos, para o
efeito, a metáfora existencial erigida nos moldes de uma questão em “Braga,
cidade santa”:
O que fazias tu
sentado no banco de trás duma limousine negra
que circula a cem à hora numa rodovia
sem ninguém ao volante?
Em
todo o caso, longe de ser um épico do género, O novíssimo testamento (e outros
poemas) é um livro que amplamente justifica a aventura literária a ele latente.
***
Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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