O mapa da tribo, de Salgado Maranhão
Por Iracy Conceição de Souza
capa da edição de O mapa da tribo (editora 7Letras) |
ouço
ladrar uma ausência
Que me
rasteja:
loba.
Salgado
Maranhão
A poética
salgadiana, ao longo dos últimos anos, construiu um perfil que se
solidifica em sua décima obra, O mapa da tribo. Concebê-la é duplicar
continuamente os espaços por ela construídos: “um oceano insondável”, que
movimenta os afetos e incentiva o labor.
Se o livro, Punhos da Serpente, (1978)
marca o início de sua trajetória e sinaliza o estilo e a singularidade, para
além do saber fazer, da habilidade; a obra, A pelagem da tigra, procura extrair
e filtrar os meandros mais complexos da autenticidade sensível da vida, os ecos
enigmáticos das entranhas do interdito, para expô-la em cenários reconstruídos
e a obra, Sol sanguíneo (2002) ou Blood of the sun, (2012)1 marca a
experiência, o limiar do raso e do profundo, onde as coisas não somente têm
significações, mas também têm existências e, por isso mesmo, o pacto com a
palavra é o grande relevo que vai além da relação individual e de suas
alternâncias imaginárias.
Seu último lançamento, O mapa da
tribo, (2013) consolida o movimento do dizer como uma saga poética, um misto de
espiritual e telúrico não limitado à representação, e ainda mostra que há um
cerzimento na poética salgadiana de fingimento e testemunho.
Encontraremos em O mapa da tribo
a trilha de um sujeito do discurso, que ao buscar significantes no campo do
Outro, promove novas articulações em que um vazio emerge, pois transgride o
discurso corrente e, ainda, dá uma visão do universo. Ou seja, ao mesmo tempo
em que releva o segredo de uma alma, o sujeito do discurso e objeto conquistam
unidade.
O mapa da tribo se divide em
cinco momentos, sinaliza um ponto de vista determinado e constitui um todo: “Nenarias
e/ou fotogramas verbais” é a primeira delas, seguido de “Os outros eus”, em que
compartilha “coração no lábio”. “O Mapa” se complementa com um momento
intitulado: “Por aqui agora /e ou Litanias de laranjeiras” subdividido em “da
origem” e “Dos Renas (seres)”.
Se a epígrafe do livro, seu
“Haicai 2”, antecipa seu compromisso com os haveres humanos, o último poema,
“Ofício”, traduz sua experiência como a expressão da autenticidade da vida, e
marca que suas metáforas e suas metonímias são regidas pela obscuridade do
contemporâneo: os laços desfeitos, as contradições, o esmagamento da verdade,
e, principalmente, pelas fragmentações e pela dispersão.
“Nenarias e/ou fotogramas
verbais” é construída como uma colocação em narrativa das operações simbólicas,
o que o torna uma cena. A subjetividade não poderá ser superada, pois o sujeito
do discurso é o regente dessa “ópera de nãos e nuncas”. Uma poética unificadora,
em que a construção alegórica e a reflexão poética se desenvolvem para dar
conta da precariedade do ser, diante do não ter.
Como não poderia deixar de ser,
há uma inovação, os poemas de “Nenharias e/ou fotogramas verbais” são
entremeados com uma narrativa poética, como uma base de sustentação, que não dissolve
a complexidade dos poemas, mas a intensifica. Numa forma de apreensão do mundo
e das transformações da alma. Esses pequenos trechos, essas narrativas
poéticas, quase poemas são, de certa forma, uma maneira de objetivar a
realidade exterior e ultrapassável, indo muito mais fundo nas questões que
movem seu desejo e nas coisas do mundo. Entre parênteses surge:
(Era um chão
insolente e um sol que ejaculava sobre o abandono;
um acervo
lavrado nos ossos e no esquecimento)
No momento
em que “Os outros eus” surgem; cuja função é a representação do que chamaremos
de “fora do significado”, o vazio. A poesia salgadiana ganha supremacia, porque
o poeta por meio de um experimentalismo, pois não há pitoresco ornamental, nem
realismo imitativo, nem consciência social e, sobretudo, a dimensão temática é
menos importante do que a dimensão linguística, e parece criar outra realidade,
a palavra ganha uma espécie de transcendência, como se valesse por si mesma.
Isso significa dizer que sua poesia não apenas sugere o real de um modo nada
realista, mas elabora expressões verbais autônomas, ou seja, a palavra é
criadora por si mesma e transcende a matéria e, por isso, transforma o
particular num universo sem limites, que exprime o humano.
LADRANTE
Ouço ladrar
uma ausência
que rasteja:
loba
a rosnar
com a pata
dos brutos.
Ouço com os
dentes;
sinto com as
unhas,
tangido pelo
que
em mim
é instinto e
êxtase.
Estou
escrito
em muitos
nadas
e bateram em
minha porta
com um nome
que já não
sou:
borda de
estrada
comida pelo
deserto.
Posso estar
louco
como a
tempestade;
posso estar
enfermo
como as
utopias.
Mas grito na
carne
uma acesa
sanha de ser.
Um raio de
pernas ruivas
rasgou meu
silêncio,
desde então
sou somente
este abrigo
de enredos.
Esta porta
aberta aos pássaros.
Seguir a trilha indicada em O
mapa da tribo, do poeta Salgado Maranhão é conhecer o exercício de concisão
que, enquanto escrita é sublimação e enquanto fala, é testemunho dos remendos
sem cura do real, portanto, um ato de criação. Desejar mil anos luz à poesia
salgadiana e a seu poeta é o que nos resta a fazer.
Notas:
1 O conforto da versão de Blood of the sun, está garantido, pois a
fidelidade de interpretação se deve à honestidade intelectual, especialmente
aos conhecimentos linguísticos e de cultura geral. Além do talento poético, do
professor e tradutor Alex Levitin, que perseguiu o pensamento do poeta não só
estrofe por estrofe, mas verso por verso, para elucidar as conexões,
determinando, com exatidão, os elementos sintáticos que permitem a
classificação das palavras polivantes. Estilo, naturalidade e despojamento
sustentam a qualidade da versão para a língua inglesa.
Ligações a este post:
Saiba mais sobre a obra do poeta Salgado Maranhão e veja edição do caderno-revista 7faces em homenagem ao poeta acessando aqui.
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Iracy
Conceição de Souza é Doutora em Letras Vernáculas.
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