Mané e o sonho*
Por Carlos Drummond de Andrade
Mané Garrincha. Copa do Mundo de 1962. Reprodução. |
A necessidade brasileira de esquecer os problemas agudos do
país, difíceis de encarar, ou pelo menos de suavizá-los com uma cota de
despreocupação e alegria, fez com que o futebol se tornasse a felicidade do
povo. Pobres e ricos param de pensar para se encantar com ele. E os grandes
jogadores convertem-se numa espécie de irmãos da gente, que detestamos ou
amamos na medida em que nos frustram ou nos proporcionam o prazer de um
espetáculo de 90 minutos, prolongado indefinidamente nas conversas e mesmo na
solidão da lembrança.
Mané Garrincha foi um desses ídolos providenciais com que
o acaso veio ao encontro das massas populares e até dos figurões responsáveis
periódicos pela sorte do Brasil, ofertando-lhes o jogador que contrariava todos
os princípios sacramentais do jogo, e que no entanto alcançava os mais
deliciosos resultados. Não seria mesmo uma indicação de que o país,
despreparado para o destino glorioso que ambicionamos, também conseguiria
vencer suas limitações e deficiências e chegar ao ponto de grandeza que nos
daria individualmente o maior orgulho, pela extinção de antigos complexos
nacionais? Interrogação que certamente não aflorava ao nível da consciência,
mas que podia muito bem instalar-se no subterrâneo do espírito de cada patrício
inquieto e insatisfeito consigo mesmo, e mais ainda com o geral da vida.
Garrincha, em sua irresponsabilidade amável, poderia, quem sabe?, fornecer-nos
a chave de um segredo de que era possuidor e que ele mesmo não decifrava,
inocente que era da origem do poder mágico de seus músculos e pés. Divertido,
espontâneo, inconseqüente, com uma inocência que não excluía espertezas
instintivas de Macunaíma – nenhum modelo seria mais adequado do que esse, para
seduzir um povo que, olhando em redor, não encontrava os sérios heróis, os
santos miraculosos de que necessita no dia-a-dia. A identificação da sociedade
com ele fazia-se naturalmente. Garrincha não pedia nada a seus admiradores; não
lhes exigia sacrifícios ou esforços mentais para admirá-lo e segui-lo, pois de
resto não queria que ninguém o seguisse. Carregava nas costas um peso alegre,
dispensando-nos de fazer o mesmo. Sua ambição ou projeto de vida (se é que, em
matéria de Garrincha, se pode falar em projeto) consistia no papo de botequim,
nos prazeres da cama, de que resultasse o prazer de novos filhos, no
descompromisso, afinal, com os valores burgueses da vida.
Não sou dos que
acusam dirigentes do esporte, clubes, autoridades civis e torcedores em geral,
de ingratidão para com Garrincha. Na própria essência do futebol profissional
se instalam a ingratidão e a injustiça. O jogador só vale enquanto joga, e se
jogar o fino. Não lhe perdoam a hora sem inspiração, a traiçoeira indecisão de
um segundo, a influência de problemas pessoais sobre o comportamento na
partida. É pago para deslumbrar a arquibancada e a cadeira importante, para nos
desanuviar a alma, para nos consolar dos nossos malogros, para encobrir as
amarguras da Nação. Ele julga que entrou em campo a fim de defender o seu
sustento, mas seu negócio principal será defender milhões de angustiados
presentes e ausentes contra seus fantasmas particulares ou coletivos. Garrincha
foi um entre muitos desses infelizes, dos quais só se salva um ou outro
predestinado, de estrela na testa, como Pelé.
A simpatia nacional envolveu Mané em todos os lances de sua
vida, por mais desajustada que fosse, e isso já é alguma coisa que nos livra de
ter remorso pelo seu final triste. A criança grande que ele não deixou de ser
foi vitimada pelo germe de autodestruição que trazia consigo: faltavam-lhe
defesas psicológicas que acudissem ao apelo de amigos e fãs. Garrincha, o
encantador, era folha ao vento. Resta a maravilhosa lembrança de suas incríveis
habilidades, que farão sempre sorrir a quem as recordar. Basta ver um filme dos
jogos que ele disputou: sente-se logo como o corpo humano pode ser instrumento
das mais graciosas criações no espaço, rápidas como o relâmpago e duradouras na
memória. Quem viu Garrincha atuar não pode levar a sério teorias científicas
que prevêem a parábola inevitável de uma bola e asseguram a vitória – que não
acontece.
Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e
farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e
de todos, nos estádios. Mas como é também um deus cruel, tirou do estonteante
Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e
pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é
que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um
novo, que nos alimente o sonho.
* Texto publicado pela primeira vez no caderno "Esportes", do Jornal do Brasil em 22 de janeiro de 1983, dois dias depois da morte do jogador Mané Garrincha. A Companhia das Letras reeditou recentemente o livro Quando é dia de futebol que reúne textos como este mais outras crônicas e poemas cuja temática é o futebol. Reproduzimos uma versão deste texto mais imagem da publicação original num catálogo que editamos sobre a crônica de Carlos Drummond de Andrade.
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