Joãozinho Malvadeza


Por João Ubaldo Ribeiro




Acho que a Copa enseja a confissão de um pecado longínquo, na minha carreira futebolística, defendendo as cores do Flamenguinho do Rio Vermelho, do São Lourenço de Itaparica e de outras agremiações menos renomadas. Zagueiro de recursos discutíveis, mas bom de carrinho, chutão e reclamação com o juiz, recebi do técnico Hélio Gaguinho a alcunha de Delegado, pelo meu “efi-ficaz po-policiamento da-da gran-grande área”.

Deu-se que, com o outro time jogando pelo empate, estávamos disputando a final do campeonato do Rio Vermelho e o gol não saía. Aí pelos 30 minutos do segundo tempo, Gaguinho me instruiu para ir ao ataque e tentar aproveitar os cruzamentos de Toninho Seminarista. Cumpri a determinação, mas não achei a bola em nenhum dos cruzamentos. Gozila, o goleiro deles, que lembrava o Dida, só que maiorzinho, catava tudo. Gaguinho me chamou de novo e mandou que, quando o goleirão fosse subir, eu pisasse nos pés dele.

Não discuti. Era só entrar na pequena área e eu já estava procurando os pés do goleiro, que logo notou, xingou minha mãe e fez sinal de que ia me pegar, mas eu, atleta disciplinadíssimo, nunca aceitei provocações do adversário. Só que o tempo terminava e nada de gol. Gaguinho me acionou outra vez:  “Seu De-delegado, ago-gora não te-tem jeito. Quan-quando o go-goleiro su-subir, dê--dê uma de-dedada na bunda de-dele”.

Tive êxito na segunda tentativa. Quer dizer, tive êxito na missão, mas, pessoalmente, não me saí tão bem, porque, ao receber a dedada, Gozila deixou de acompanhar a bola e, no meio da confusão dentro da área, me deu uma tapona no pé do ouvido que me levou a knockdown.

Celeuma, invasão de campo, gritaria, ninguém tinha visto nada direito e todo mundo desmentia todo mundo. Sua Senhoria não estava em boa posição no lance, com uma porção de jogadores obstruindo-lhe a visão. Mas terminou por controlar a situação e o goleiro o informou a respeito da dedada. Ele aí me chamou e atendi, na clássica postura de mãos nas costas.

“Senhor Delegado” disse ele. “O senhor vai agora me dar sua palavra de honra de desportista. O senhor me dá sua palavra de honra de desportista que não enfiou o dedo entre as nádegas do senhor Gozila?”

Mirei em torno. Nossa torcida, majoritária, em silêncio nervoso, todos os jogadores de olho em mim, Gaguinho aguardando meu pronunciamento, com a cara de que não demonstraria a mínima compreensão, se eu desse a resposta errada. O campeonato estava na minha mão, pois o juiz, que não vira o tapa, mas inventara alguma outra falta da defesa, tinha dito que, caso eu negasse a dedada, ia marcar pênalti a nosso favor. O senhor dá sua palavra de honra de desportista que não deu a dedada?” Dou, sim, senhor.

Delírio na nossa torcida, tentativas de me linchar, tumulto finalmente sanado, pênalti a nosso favor, Niltinho converteu, campeonato no papo e eu tive que sair sob escolta durante meses, porque Gozila queria me pegar mesmo. Conto isto para ajudar na Copa. Copa é Copa e, como sabemos, o importante é ganhar, nada de palavra de honra de desportista. Eu queria ver o que o Maradona diria ao juiz, depois daquele gol de mão.


* Crônica publicada na Edição Especial Abril na Copa, 2013. 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual