Ivan Junqueira
Em 2000, Ivan Junqueira tornou-se membro da Academia Brasileira das Letras; foi o sucessor de João Cabral de Melo Neto. Foto: O Globo |
Ao contar a extensa quantidade de papeis assumidos por Ivan
Junqueira no território da escrita e o que desempenhou em cada um deles não
restam dúvidas de que sua perda registrada no último dia 03 de julho de 2014 é
uma lacuna irretocável na cultura brasileira. Como jornalista, primeiro lugar
assumido logo depois de abandonar um Curso Superior de Medicina e outro de
Filosofia, trabalhou em jornais como Tribuna
da imprensa, Correio da manhã, Jornal do Brasil e O globo; como crítico literário e ensaísta, colaborou com outra
leva de jornais e revistas dentro e fora do país; como tradutor, trouxe para o
português autores como Marcel Proust, Marguerite Yourcenar, T. S. Eliot e
Charles Baudelaire; como poeta, foi galardoado diversas vezes pela sua obra
poética Junqueira e tem trabalhos traduzidos nos quatro cantos do mundo.
Ainda nesse ofício de escrita, Ivan Junqueira foi
colaborador da Enciclopédia Barsa, Encyclopaedia Britannica, Enciclopédia Delta Larousse, Enciclopédia do Século XX, Enciclopédia Mirador Internacional e Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro
– funções que o colocam no rol dos últimos homens de gênero há muito em
decadência pelo grosseiro advento das tecnologias eletrônicas. Funções que
certamente estiveram entre os ingredientes necessários à forja do título alcançado
pela crítica: o de “poeta do pensamento”.
O título cumpriu valia, por duas razões: uma, é que todo
poeta não é apenas um produtor de versos; outra, todo esforço de transgressão da
linguagem passa obrigatoriamente por essa múltipla vivência com a palavra. Numa
entrevista a Floriano Martins, Ivan diz pensar “que qualquer poeta autêntico,
por menor que seja, sempre cria uma linguagem, ainda que não a transgrida, ou
melhor, não transgrida o sistema da língua”. E cita uma observação de José
Guilherme Merquior sobre o que ele chama de um metaludismo da linguagem ao se
referir aos casos de transgressão operacionalizados pela poesia concreta. “Diz
Merquior, com muita argúcia e lucidez, que “a literatura, à diferença das
outras artes, tem por matéria-prima não uma realidade a que, eventualmente, se
empreste um sentido simbólico […] mas sim uma realidade que já é, em si mesma,
um sistema simbólico: a linguagem”. Esse mesmo impasse foi denunciado por
Antônio Houaiss quando, ao comentar os riscos da aventura concretista,
assinalou que os integrantes dessa corrente haviam reduzido a palavra a um
“signo cadavericamente linguístico”, pois o despojaram de toda a sua carga
semântica e, o que é pior, de todas as suas articulações contextuais dentro do
discurso. Quando um poeta como Dylan Thomas, por exemplo, se insurge contra a
linguagem convencional, cumpre observar que não o faz com o objetivo de
destruir o sistema da língua inglesa, mas apenas de transgredir a linguagem
sempre que esse sistema, por sua rigidez e passividade, põe em risco o vigor e
a legitimidade da expressão poética. Em suma, Thomas em nenhum momento destrói a
língua: simplesmente tenta transcender os limites racionais do sistema
linguístico.”
T. S. Eliot. Uma das influências de Ivan Junqueira, de quem traduziu sua obra. |
“Daí, talvez, o hermetismo de sua retórica, que não
constitui nenhum maneirismo, como chegaram a supor alguns, mas sim uma
necessidade expressiva. E foi isso o que fizeram quase todos os grandes poetas,
sobretudo aqueles a que Pound chama de “inventores”, embora tal conceito
implique um verdadeiro cortejo de contradições. Por outro lado, cabe registrar
aqui que não se pode, a todo instante, tentar uma reinvenção da língua. Ao
analisar as propostas “revolucionárias” de Milton com relação à língua inglesa,
Eliot situou com muita lucidez esse problema. Diz ele em De poesia e poetas: ‘Se cada geração de poetas assumisse o
compromisso de atualizar a dicção poética relativamente à linguagem falada, a
poesia fracassaria no que se refere a um de seus mais importantes deveres. É
que a poesia deveria não apenas ajudar a purificar a língua da época, mas
também a evitar que ela se transforme muito rapidamente: um desenvolvimento
demasiado rápido da língua poderia constituir um desenvolvimento no sentido de
uma gradual deterioração, e é esse o risco que corremos hoje em dia’”.
As observações por ele apresentadas podem, com muita propriedade,
servirem a uma definição sobre a obra de Junqueira na cena poética nacional. Sem
malabarismos com a linguagem, sua poesia se filia ao trabalho paciente e
acurado de outros nomes já escritos no cânone brasileiro; Carlos Drummond de
Andrade talvez seja o nome que de imediato salta nessa relação entre o poeta e
a literatura nacional, embora o diálogo com a tradição exercitado por ele
esteja mediado por outras vozes poéticas. Na mesma entrevista ao Diário de Cuiabá, Junqueira evoca Fernando
Pessoa, Eliot e Baudelaire: "me impressiona muito como conseguiram ambos
se manter emocionados dentro de estruturas formais tão rigorosas. Eliot e
Baudelaire, tanto quanto Fernando Pessoa, me ensinaram como poucos esse milagre
que consiste em fazer com que o pensamento se emocione e a emoção pense".
Provocado por Floriano Martins sobre estes nomes aos quais
acresce o nome de Dylan Thomas, comenta que com Eliot e Baudelaire o diálogo existiu
muito antes de iniciar sua tradução; “foram ambos poetas de formação e de
eleição”. Quanto “a admiração por Thomas, esta nasceu no instante de tradução
de seus poemas [...] Thomas, como Baudelaire, é a própria encarnação daquilo a
que poderíamos chamar, como o faz o poeta e ensaísta francês Pierre Emmanuel,
de o mito do poeta moderno, daí serem ambos, aliás, tão populares, não obstante
a extrema dificuldade de compreensão que envolvem.”
Ivan Junqueira em cena. O poeta também inciou carreira no teatro. Aqui, numa apresentação na década de 1960 da peça Dona Rosita, a solteira, de García Lorca com tradução de Carlos Drummond de Andrade. Na peça encenada pelo Grupo Tablado, Junqueira é um catedrático em Economia. |
Para Junqueira o encanto por Thomas deveu-se ao desafio
imposto por sua obra, que “implica consideráveis complexidades que se situam no
cerne da língua e no nível da própria leitura. Os traços convergentes, no caso
de Thomas, não são tão profundos como nos de Eliot e Baudelaire. Thomas foi um
retórico genial, um herdeiro de Blake e Milton, uma espécie de reflexo tardio
da metaphisical poetry do século
XVII. Essa vertente retórica dylaniana compromete um pouco meu diálogo secreto
com o poeta galês, pois a poesia que sempre cultivei está intimamente
relacionada a uma forte preocupação de austeridade e economia expressivas, em
tudo distinta dos ritmos bíblicos e da féerie
imagístico-metafórica de Thomas. Mas admiro-o justamente por isso, por ter ele
se consagrado a uma poesia que jamais pratiquei.”
Em 2000, Ivan Junqueira tornou-se membro da Academia
Brasileira das Letras; foi o sucessor de João Cabral de Melo Neto, a quem buscou
filiá-lo à ordem das afetividades recuperadas na longa entrevista com Floriano
Martins: “a poesia não é linguagem racional, mas linguagem afetiva. Dirige-se à
inteligência, sim, mas através da sensibilidade” – relembrou as palavras do
autor de Morte e vida Severina. “Você
vê os gregos, o Pégaso, o cavalo que voa é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar
antes , como símbolo da poesia, a galinha ou o peru – que não voam. Ora, pra o
poeta, o difícil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse. O poeta é
como o pássaro que tem de andar um quilômetro pelo chão.” – cita João Cabral.
Ficou-nos de sua poesia títulos de necessária visita vez em
quando: Os mortos, seu primeiro
título; Três meditações na corda lírica,
A rainha arcaica (Prêmio Nacional de
Poesia do Instituto Nacional do Livro), Cinco
movimentos, O grifo, A sagração dos ossos, Poemas reunidos, O tempo além do tempo e O
outro lado.
Recentemente, a Editora Girafa havia publicado dois extensos
volumes onde se lê uma quantidade significativa da obra ensaística de Ivan: Ensaios escolhidos - De poesia e poetas,
o primeiro volume, o poeta afirma que seu ensaísmo, produzido desde a década de
1960, em nada tem a ver com "a crítica literária de um teórico e, muito
menos, de um scholar, e sim de
um poeta que pretendeu decifrar outros poetas"; Da prosa de ficção, do ensaísmo e da crítica literária, o segundo
volume, Ivan perscruta particularidades da prosa que recria pela linguagem o mundo
e suas histórias e verdades. Entre os ensaios do primeiro título é
necessário destacar os textos sobre a poética de Baudelaire e Manuel Bandeira;
já no segundo o passei que faze pela obra de Aníbal Machado, Per Johns e
Stendhal.
A seguir preparamos um catálogo com fac-símile de um ensaio sobre Manuel Bandeira publicado numa edição da revista portuguesa Colóquio/Letras por ocasião da celebração do centenário do poeta mais cinco poemas de Ivan Junqueira.
* A entrevista a Floriano Martins aparece publicada no Diário de Curitiba, edição n.13307, de 13 de maio de 2012.
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