Imre Kertész, o filho incorrigível das ditaduras
Por Alfredo Monte
Em Eu, um outro
(1997), Imre Kertész deu a si mesmo uma veredito irrevogável: “Sou filho
incorrigível de ditaduras, ser estigmatizado é minha particularidade”.
Vinte anos antes,
em História policial, curto romance lançado agora no Brasil pela Tordesilhas, o
Nobel de literatura de 2002 examinava de forma implacável a lógica das
ditaduras (infelizmente, Direita e Esquerda, em suas contrafações,
equivalendo-se no tocante aos resultados históricos): mesmo que calcadas, a
princípio, em lutas pela justiça social, não passam de projetos de poder, tudo
o mais se subordina à sua manutenção; para isso, tornam-se “estados policiais”,
mantendo os cidadãos sob vigilância, apelando para o arbítrio, a tortura, a
supressão de qualquer oposição.
Numa passagem
arrepiante, um torturador afirma: “O mundo seria diferente se nós, policiais,
fôssemos unidos... Não apenas aqui em casa, mas no mundo todo”. O narrador,
novato no ramo, replica: “Você quer dizer também os policiais dos países
inimigos?”, obtendo a seguinte resposta: “Os policiais nunca são inimigos, em
lugar algum”1.
Kertész tinha um background
nada invejável (se não levarmos em consideração o rendimento literário) para
seu esmiuçar cirúrgico dos fundamentos dos regimes totalitários: aos 14 anos,
foi enviado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, campos de concentração
nazistas, experiência-limite que propiciou a base de seu romance de estreia
(ainda seu livro mais famoso), Sem Destino (1975), certamente um dos relatos
mais desconcertantes e perturbadores sobre o tema2; depois da
guerra, viu seu país, a Hungria, transformar-se num dos satélites da União
Soviética: uma tentativa de revolução, em 1956, foi esmagada virulentamente,
transformando-se no evento cristalizador da desilusão de toda uma geração com o
comunismo.
Transpondo a ação
para um país imaginário da América Latina, para cavar a publicação (as
editoras, como de praxe no universo soviético e adjacências, eram estatais e
submetidas à censura), Kertész conseguiu criar não só uma alegoria da opressão
em seu país natal, como também (sem que esse fosse seu objetivo) uma síntese
acurada dos processos truculentos então levados a cabo na nossa realidade
latino-americana, com sua cota trágica de regimes autoritários de direita, ou
seja, o outro lado do espelho.
História policial
narra a investigação que leva à prisão de Enrique, filho do importante
empresário Federico Salinas, que almeja participar da luta clandestina contra o
governo, sempre esbarrando na hostilidade e desconfiança contra a sua classe
social. Após um episódio emblemático (fora alvo de uma diligência policial ao,
provocativamente, ficar abaixo do limite de velocidade permitido numa faixa de
rodovia próxima a um dos sinistros locais de reclusão de presos políticos;
contudo, sua condição de membro de uma família importante o salvaguardara de
represálias maiores), ao desabafar com o pai, descobre que este pertencia a um
grupo de resistência. Vigiado de perto,
e num momento em que há a ameaça de um atentado (verdadeiro ou fabricado pelos
agentes do regime, pouco importa), Enrique é levado para o “Departamento”. Seu
pai, iludido quanto à própria imunidade pessoal, ali adentra para se informar
do seu paradeiro, e o destino de ambos ali é selado.
Além da dinâmica da
relação entre Federico e Enrique (há uma revelação surpreendente quanto a
isso), o grande achado de História policial é que a narrativa é feita por um
dos torturadores, justamente o “novato”, aquele que ainda está aprendendo os
códigos da ação repressiva. Após a queda do governo, preso, confessa que está
em sua posse o diário pessoal de Enrique, pelo qual tem um peculiar apego,
verdadeira fascinação (eu, um outro?).
Através desse
diário, ficamos sabendo que a insatisfação do mauricinho vai além da situação
política, escancarando um mal estar que os frequentadores da obra de Imre
Kertész (além das já citadas, o ambicioso romance O Fiasco, por exemplo3)
reconhecerão de imediato: “Parece que após a filosofia do existencialismo só
poderia vir a filosofia do não existencialismo. Ou seja: a filosofia do existir
sem existir”. E então o leitor começa a se perguntar que tipo de pessoa pode
ser, de fato, o novato: “Fiz o curso, passei por uma lavagem cerebral. Não foi
o suficiente, longe disso”.
Outro trunfo do
texto é a sua sugestão dos horrores praticados no “Departamento”, sem ser
preciso nenhum detalhe explícito. De explícito, apenas o horror da lógica
totalitária, como na cena em que um tabelião colaborador do regime é submetido
à tortura por sua associação meramente comercial com Federico Salinas:
“– Não entendo os
senhores, não os entendo. O que querem de mim? Pois se o Estado confia em
mim...
– Bem, sim. – Díaz
balançava a cabeça como um professor primário. – O problema é que nós não
confiamos no Estado...
– Não entendo, não
entendo... Então acreditam em quê?
– No destino. Mas
no momento nós é que assumimos o papel do destino: portanto, em nós mesmo – disse
Díaz com seu sorriso inigualável...”
É a esse destino
que o filho incorrigível e pródigo sempre retorna.
Notas:
1 Utilizo a tradução de Gabor Aranyi. Nessa
versão lançada pela Tordesilhas há uma passagem que ficou estranhíssima em
português, logo no Prefácio do autor, escrito em 2004 para a edição alemã.
Nele, Kertész relata como História policial surgiu a partir da recusa de um
romance anterior (seu segundo), O rastejador (ainda não lançado em português,
mas conhecido em inglês como The pathseeker); lemos então que o diretor da
editora (que aprovara a publicação do primeiro romance do autor húngaro, Sem
destino) “leu O rastejador e também o editaria de bom grado – declarou-me – se
fosse um texto maior. Um livro precisava ao menos de dez páginas (sic) inteiras
para que tivesse corpo, e o meu texto não passava de seis páginas (sic), se
tanto. Sugeriu-me que acrescentasse algo. Então me veio à mente o enredo de História
policial”.
2 Como amostra, transcrevo a extraordinária
passagem do anúncio da libertação dos prisioneiros do campo (utilizando a
tradução de Paulo Schiller):
“Talvez já fosse quatro da tarde quando, por fim, o
alto-falante emitiu alguns estalidos e, depois de um breve chiado e de sons
sibilantes, deu a entender a nós todos que era o Lagerältester... Kamaraden,
disse, lutando audivelmente contra um sentimento que o asfixiava e ora o fazia
engasgar, ora a voz fica mais aguda, gemente, wit sind frei!, ou seja, estamos
livres (...) e para minha grande surpresa, de repente: Atenção, atenção! O
comitê húngaro do campo... – e pensei: nem suspeitava que isso existisse!
Porém, não valeu a pena prestar atenção, pois também ele, como todos antes
dele, só falou sobre a libertação e não fez nenhuma referência à sopa que não
tinha vindo. Eu também fiquei muito feliz, sim, naturalmente, por estarmos
livres, mas não tenho culpa de ter sido obrigado a pensar em outra coisa... A
noite de abril estava escura, Pjetyka também havia voltado, vermelho, excitado,
cheio de milhares de palavras incompreensíveis, quando o Lagerältester se
apresentou de novo pelo alto-falante. Dessa vez, dirigiu-se aos membros do
antigo destacamento dos Kartoffelschäler pedindo-lhes que fizessem a gentileza
de reassumir os postos na cozinha, e aos demais moradores do campo solicitou
que ficassem acordados ao menos até o meio da noite, pois começaram a cozinhar
uma grossa sopa de gulash; só então me deitei, aliviado, no travesseiro; só
então alguma coisa se desprendeu lentamente de mim, e só então pensei – talvez
pela primeira vez com seriedade – na liberdade”.
3 Cujas primeiras 100 páginas são uma experiência
formal desafiadora, com seus parênteses incessantes e frases que vão e volta
para depois mergulhar numa fábula kafkiana, cuja atmosfera pode ser
exemplificado pelo seguinte diálogo entre Köves (o protagonista) e a mulher que
o aloja em casa:
““– Sim, Köves disse, só que não estou trabalhando para
nenhum jornal –depois, pouco se incomodando com a decepção que poderia causar à
mulher (quem sabe ela até já se tenha vangloriado de ter um inquilino
jornalista) – acrescentou rapidamente: Fui despedido...
– Então foi despedido – a locadora falou de novo, agora com
certa familiaridade, como se não tivessem mais nada a esconder um do outro, ao
mesmo tempo com a voz baixa, como se não quisesse que outros a ouvissem (apesar
de ninguém mais estar no quarto além deles) – Por quê?...
– E pode-se saber?
– Não – respondeu a mulher, deixando-se pender lentamente
sobre a cadeira, momentos antes oferecida porém logo recusada, enquanto toda e
qualquer expressão abandonava seu rosto, como se de repente se tivesse dado
conta de sua incomensurável fadiga – não se pode... O senhor sabe... às vezes
sinto que já não entendo mais nada...” (utilizo, fazendo algumas adaptações, a
tradução de Ildikó Sütö).
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