Florbela, de Vicente Alves do Ó
Três casamentos, abortos, amantes, um amor incestuoso pelo irmão
que morre tragicamente num acidente de avião, rejeição da crítica pela sua
escrita, uma personagem perdidamente entre os fluxos da vida, dada ao
arrebatamento em tudo que faz, uma suicida. Um perfil assim, tão simples, mas
sublinhado por situações tão complexas, é já matéria suficiente ao exercício criativo
em produzir qualquer texto sobre a vida da poeta portuguesa Florbela Espanca. Diante dessas situações, há muitas possibilidades de produção. Fiquemos, no
entanto, com duas delas: transformar isso num melodrama típico ou trabalhar o
drama até aproximá-lo do trágico.
Nem precisa dizer que os dois extremos são um tanto
perigosos. E não ter o domínio da objetividade, corre o risco de quem por aí se
aventurar dar com os burros n’água. Isto é, transformar uma biografia que muito
tem a dizer em qualquer coisa para agradar emoções ou exacerbá-las. A questão se complica ainda mais quando lembramos
está diante de uma poeta. Não que os poetas não sejam seres comuns, mas é que, como
trabalhar a obra no interior da composição do perfil histórico da figura, sem
cair na balança da hiperinflação por uma das duas vias: ou a poeta ou a obra.
Pois bem, todo esse dilema deve ter envolvido a gênese do
trabalho de Vicente Alves do Ó antes da construção do filme Florbela – produção portuguesa depois
tornada em seriado para TV. Para os lados de cá, chegou-nos primeiro a série
cujo título é Perdidamente Florbela e
se mostra como uma versão ampliada da produção para o cinema (notificamos aqui, em primeira mão, os leitores deste espaço). Talvez por isso,
nossa condição de análise seja um tanto afetada e passemos a considerar Florbela como um filme que não faz jus
à figura da poeta portuguesa; embora o seriado se manifeste como uma via quase contrária, dado que muitas das imperfeições
cinematográficas se repetem, por pressa ou descuido, no seriado.
O corte feito na temporalidade da existência da poeta foi um
gesto de que garante a não-perda do produto final; corria-se o risco de que,
grande mais, tudo findasse num grande fiasco, que tudo desmoronasse pela pompa muita. Por isso, Vicente prefere contar
a vida da poeta a partir de seu terceiro casamento, com o médico Mário Lage,
quando já tinha publicado uns tantos pares de livros, passava por uma das crises criativas e tenta romper o silêncio
relegado à sua obra. É também quando também Florbela vai morar numa área rural
presa de expectativas de que aí pudesse lhe vir alguma coisa que a curasse do martírio das intensidades; quando nada lhe vem, ela vai ter com o irmão em Lisboa, onde passa uma das temporadas mais
intensas de sua vida.
Esse é exercício sincrônico é ardiloso e se alinha a outra decisão;
esquecer a obra e se interessar mais pela figura da poeta. Ao dizer esquecer,
dizemos que não foi interesse do diretor em se dedicar a perscrutar alguns
determinismos da escrita. É até justa essa escolha, visto que, seu interesse
precisamente não está em produzir um filme com tons de academicismo dado apenas
aos entendidos da obra de Florbela. Em grande parte essa tomada de decisão funciona.
E no filme de Vicente funcionou.
O que restou de academicismo ele utilizou, uma parte, como
instrumento para dar forma ao dado biográfico que, dada sua pluralidade,
dispensa maiores esforços na criação. Outra parte, derivada daquela, foi empregada
na construção do figurino, da arte, da fotografia e outros apetrechos que se não
são desenvolvidos estão sob a batuta da direção.
O trabalho com o dado biográfico, por exemplo, é talvez o
maior acerto do filme. Interessar-se apenas pelo ficou registrado e não pelo
que foi adicionado de mito em torno do nome – seja a tumultuada vida sexual ou
a insanidade mental da poeta, por exemplo – possibilita resgatar a imagem do
poeta – e agora não apenas de Florbela – com um sujeito comum. Afasta a lógica do indivíduo arrebatado por
uma força maior que a existência e pela qual está sempre preso, alheio ao
mundo. Nesse sentido Alves do Ó pensa que a única interferência no trabalho
poético de Florbela era a necessidade de estar sempre tomada por uma vida
não-medíocre a fim de ter matéria para sua laboração, reforçando um certo viés
autobiográfico pelo qual a obra se fia e pelo qual, um leitor atento é capaz de
compreender sem fazer com que uma coisa se reduz a outra.
É necessário ressaltar algo que toda crítica ressaltou e de
maneira diversa: a exuberância do filme, a riqueza pelo acabamento, quase
reforçando ao telespectador que, mesmo sendo um exercício de retorno ao dado
biográfico, ele não está diante de um retrato fidedigno, mas de uma interpretação,
um olhar sobre a poeta. Impera um traço realista, muito embora, queira fugir do
tom, dando à narrativa certa tonalidade surrealista, o que decerto é o pecado
mais grave do diretor – isso soa artificial demais e é uma armadilha da contradição
em que o diretor cai quando faz uma daquelas escolhas de como iria abordar a
vida de Florbela.
Deslizes a parte – que isso de uma obra agradar a gregos e
troianos nunca existiu depois do cavalo de Troia – o filme de Vicente se
constitui numa aproximação necessária para os amantes da poesia de Florbela,
que estes são quase unanimidade. Amantes e não amantes, é preciso reiterar. Que a aproximação de retratos como estes podem servir para o desenvolvimento de um lance amoroso com a poeta e a obra que, diga-se, não há sensibilidade que não se arrebate com uma existência dessas.
Ligações a este post:
A novidade é que Vicente Alves do Ó publica em Portugal o romance nascido do filme, Florbela, Apeles e eu.
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