Dois tipos de atitude perante a angústia: Bernardo Soares x Jean-Paul Sartre
Por Rafael Kafka
Dia desses estava escrevendo algo em meu diário que decidi parafrasear
e transformar em meu texto da semana. Confesso que isso se deve muito à falta
de inspiração, pois estou há mais de duas horas tentando produzir um texto e
não consigo... Mas desabafos à parte, vamos ao que interessa.
Nesse dia que cito
acima, escrevi em meu diário a diferença entre uma mente metafísica e uma mente
com perspectiva existencial. Inspirei-me para falar sobre isso muito provavelmente
no Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, cuja autoria é dada a Bernardo
Soares, um dos muitos heterônimos do poeta português. O livro citado é de
difícil classificação: parece demais com um diário pessoal, tendo passagens de
pura narração ao mesmo tempo em que possui excertos de uma filosofia
profundamente existencial e estoica e alguns momentos de um arroubo sentimental
maior causado principalmente pela desesperança perante o ato de existir. O
próprio autor, Bernardo, rotula o livro como uma autobiografia sem fatos, dando
a entender desde o começo que o livro não falaria da vida em si, mas do que a
existência causava como sensação na mente do escritor. Outro fato curioso é que
o livro não possui datas, dando assim uma imensa sensação de atemporalidade.
Em diversas
passagens, a angústia é citada de uma forma que lembra demais os bons romances
existencialistas que surgiriam depois e que provavelmente Pessoa não conheceu.
O sentimento angustiante é muito reforçado por meio da náusea, uma sensação
física que será explorado em um romance muito popular de Jean-Paul Sartre.
Nele, o personagem principal percebe o absurdo da vida no belo dia em que se
pega sentindo uma náusea ligada a todo o seu sentimento de angústia perante a
finitude da vida. O tom de diário
pessoal, sendo o de Sartre marcado com datas e contando a vida de Antoine
Roquentin, o clima de desesperança e a secura filosófica fazem o Livro do desassossego e A Náusea se aparentarem
em diversos pontos. Contudo, a atitude dos personagens é que será usada aqui
por mim para descrever a diferença entre uma mente metafísica e uma mente com
perspectiva existencial.
Edição brasileira de Livro do desassossego |
Bernardo Soares
tem um estoicismo que facilmente irritaria Sartre. Para aquele, as sensações
são a única coisa que importa no mundo em relação a conhecer a realidade. Acaba
mostrando-se desse jeito um grande discípulo de Alberto Caeiro, outro
heterônimo célebre de Fernando Pessoa. Soares leva tão a sério isso de explorar
as sensações, que chega a achar inúteis viagens, revoluções e qualquer outra
fuga da rotina existencial de um povo ou de uma pessoa. Para ele, a frase de
Caeiro que diz que da sua aldeia ele vê o mundo é a verdade mais profunda do
mundo, pois negando a utilidade do ato de pensar volta-se para o próprio sentir
como essência mais profunda da alma humana.
O Livro do desassossego é a exploração extremada das sensações de Bernardo Soares que como
Caeiro procura anular o ato de pensar por meio da verbalização de nada.
Percebemos um ar bastante zen diante da realidade, uma forma de narrar sem
emoção e uma profunda filosofia sobre nada. Contudo, em diversos momentos,
Bernardo assume uma dor de existir, um peso de viver. É aí que captamos a
angústia tornando-o único, como diria Heidegger. Por mais que tente fugir do
pensamento de transformar as pessoas doentes, é justamente em uma sensação que
Soares irá encontrar a prova viva de que ele é mais um ser humano: a náusea que
mostra a angústia em si.
Mas o sentir
angústia nada muda na vida de Bernardo. Ele segue em sua rotina de homem
solteiro, sem amor, com um emprego simples de ajudante de guarda-livros,
escrevendo para calar o pensamento e explorando as suas sensações em um regime
de vida celibatário. A angústia aqui é apenas um despertar que será anulado em
si mesmo. Enquanto outras pessoas afundam-se em seu cotidiano cheio de emoções
fugazes, Soares procurará explorar suas solitárias sensações para sair vivo. O
seu estoicismo é algo muito curioso, pois ele possui a clara consciência do
absurdo de ser e se nega a lutar para dar um sentido a isso, por pura preguiça
ao que parece. Há trechos em que o autor heterônimo diz que o maior prazer de
sua vida é dormir, comparando o sono com o nirvana budista.
Se as sensações
são tudo, Bernardo não se sente tentado a sair de sua vida calma e pacata.
Procura a metafísica das sensações para brincar com algo enquanto espera o
desenrolar da história. Isso não ocorre com personagens como Antoine Roquentin
do romance sartreano acima citado. Após sentir a náusea em um bar e em um banco
de praça, Antoine toma as rédeas de sua vida, transforma a angústia em
combustível para reconhecer-se enquanto ser dono de si mesmo.
Roquentin assume
uma situação sua e por isso explora possibilidades que são suas. Percebe que
todos são angústia, mas a angústia sentida pelo outro não é angústia sentida
por ele. Desse modo, suas dores, prazeres e sua morte serão algo exclusivamente
seu e por conta disso não há como se renunciar a sua existência em prol de um
plano comum que a tudo e a todos iguale. Enquanto Soares se prende na sensação
como essência comum e duradoura a todos os seres humanos, Roquentin volta seu
olhar para a situação particular de cada ser humano para concretizar de forma
literária a velha máxima de Jean-Paul Sartre: “o homem é condenado a ser
livre”.
Edição brasileira mais recente de A náusea |
Desde muito cedo,
entendo a metafísica como a procura pela essência das coisas. A metafísica
procura entender a fundo o que causa e o que torna no que são coisas das mais
variadas como o amor, a arte, a humanidade. É como se ela procurasse o ponto
comum de cada coisa para chegar a um princípio que regulasse a existência de
tais coisas a partir de um princípio explicativo. Devo ter lido poucos livros
sobre metafísica, então meus conceitos se baseiam muito naquilo que li de e sobre
simbolismo.
Já a perspectiva
existencial é aquela baseada em uma forma de ver o mundo mais fenomenológica. A
fenomenologia possui um conceito chamado de intencionalidade que se resume na
premissa de cada objeto é percebido dentro de uma certa perspectiva de mundo.
Tal perspectiva é engendrada pela nossa intencionalidade, que é uma soma de
fatores sociais, morais, ideológicos, etc. que usamos de forma intuitiva para
avaliar as coisas que estão ao nosso redor. Nesse sentido, um objeto
contemplado por mim será visto de forma diferente por outro ser, bem como um
livro lido por um indivíduo não será entendido da mesma forma por outro leitor.
Para a
fenomenologia, o olhar humano é o que dá sentido às coisas. Mesmo elas seguindo
em existência sem serem olhadas, é por meio de meu olhar que uma coisa se torna
algo com sentido pelo seu uso. As coisas começam a se complicar ainda mais
quando tais objetos não coisas, mas sim pessoas vivas, com sentimentos, ideias
e olhares que se voltam para nós.
Não à toa, Bernardo
Soares prefere fugir ao convívio social e chama as pessoas de ilusões. O olhar
é ao mesmo tempo concreto e ilusório, pois não consegue captar de forma precisa
a realidade, sempre abrindo margens para dúvidas, debates, conflitos. Soares,
em sua metafísica da concretude, volta-se para aquilo que é comum a todo ser
humano: as sensações. E sabendo que as palavras e as visões de mundo estão em
constante conflito, prefere isolar-se no seu próprio sentir para falar da
realidade concreta a rodeá-lo. Soares, desse modo, foge da necessidade de
qualquer mudança social ou mesmo individual. Para ele, a renúncia é a vitória e
a glória uma miséria, pois o que lhe interessa é a calmaria do momento.
Já Roquentin
possui a atitude de assumir a sua angústia enquanto convite para desvelar as
possibilidades de sua existência. Após sentir a náusea,ele começa a querer
viver uma vida concreta, como ocorre com GH de Clarice ao matar a barata e
comer o seu interior. Ao sensacionismo estóico de Soares, Sartre opõe uma vida
aventureira que se concretiza na percepção da irreversibilidade do tempo.
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