Carta para Ariano
Por Matheus Nachtergaele
Em cena de O auto da Compadecida Selton Melo e Matheus Nachtergaele na pele dos eternos Chicó e João Grilo. Filme de Guel Arraes (2000) baseado na peça de Ariano Suassuna. Foto: Rede Globo. |
"Quem te escreve agora é o Cavalo do teu Grilo. Um dos cavalos do teu
Grilo. Aquele que te sente todos os dias, nas ruas, nos bares, nas casas. Toda
vez que alguém, homem, mulher, criança ou velho, me acena sorrindo e nos
olhos contentes me salva da morte ao me ver Grilo.
"Esse que te escreve já foi cavalgado por loucos caubóis: Por Jó,
cavaleiro sábio que insistia na pergunta primordial. Por Trepliev, infantil
édipo de talento transbordante e melancólicas desculpas. Fui domado por
cavaleiros de Sheakespeare, de Nelson, de Tchekov. Fui duas vezes cavalgado por
Dias Gomes. Adentrei perigosas veredas guiado por Carrière, por Büchner e
Yeats. Mas de todos eles, meu favorito foi teu Grilo.
"O Grilo colocou em mim rédeas de sisal, sem forçar com ferros minha boca
cansada. Sentou-se sem cela e estribo, à pelo e sem chicote, no lombo dolorido
de mim e nele descansou. Não corria em cavalgada. Buscava sem fim uma paragem
de bom pasto, uma várzea verde entre a secura dos nossos caminhos. Me fazia
sorrir tanto que eu, cavalo, não notava a aridez da caminhada. Eu era feliz e
magro e desdentado e inteligente. Eu deixava o cavaleiro guiar a marcha e mal
percebia a beleza da dor dele. O tamanho da dor dele. O amor que já sentia por
ele, e por você, Ariano.
"Depois do Grilo de você, e que é você, virei cavalo mimado, que não
aceita ser domado, que encontra saídas pelas cêrcas de arame farpado, e
encontra sempre uma sombra, um riachinho, um capim bom. Você Ariano, e teu João
Grilo, me levaram para onde há verde gramagem eterna. Fui com vocês para a
morada dos corações de toda gente daqui desse país bonito e duro.
"Depois do Grilo de você, que é você também, que sou eu, fui morar lá no
rancho dos arquétipos, onde tem néctar de mel, água fresca e uma sombra
brasileira, com rede de chita e tudo. De lá, vê-se a pedra do reino, uns
cariris secos e coloridos, uns reis e uns santos. De lá, vejo você na cadeira
de balanço de palhinha, contando, todo elegante, uma mesma linda estória pra
nós. Um beijo, meu melhor cavaleiro.
Teu,
Matheus Nachtergaele"
Cópia do Jornal do Comércio, de 23 de julho de 2014.
Comentários