Até breve, Ariano
Por Pedro
Fernandes
1. “Cumpriu
sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do
nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala
tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que vivo, morre” –
a passagem é de Auto da compadecida,
de Ariano Suassuna.
2. Sim, a
morte é o único destino para o qual todos os seres se encaminham. Todas as explicações
até hoje construídas em torno do termo são mera especulações. Mas um sentido se
cumpre como verdade: perdas são perdas. E o que dissermos não substituirá o
vazio delas porque cada ser é único. Talvez momentos dessa natureza devessem se
cumprir sem quaisquer estardalhaços, apenas com o silêncio, condição que nos
aproxima do sentido da perda e sobre nossas limitações no mundo. Mas, perdas
insuportáveis como estas têm de vir mais que um nó na garganta; tem de vir a
lágrima vertida pela palavra.
3. Quando
José Saramago morreu numa data assim próxima em 2010, calei-me. Não tive fôlego
para dizer uma linha que fosse e neste espaço ficou registrado o sentido
daquela irreparável perda. Mas, sobre Ariano Suassuna não sei bem o quê, o luto
pede uma palavra. Talvez a imagem de alguém de riso solto e de uma sinceridade
tão espontânea dirija alguma força para essa uma palavra. Mas, leiam por traz de cada
dito um esforço enorme de dizer sobre esse silêncio que se abre novamente com
sua cara insidiosa sobre os que ficam desse lado de cá.
4. E no
Brasil, atravessamos momentos difíceis. Sem rezar um rosário de mortes,
perdemos, primeiro, o poeta Ivan Junqueira, há menos de uma semana João Ubaldo Ribeiro
e já agora Ariano Suassuna. E não fosse outras grandes perdas dadas ao redor do
mundo estaria preso ao enigma: o que está acontecendo? Essa distribuição a
torto e a direito de cartas violetas pela Sra. Morte, para uso de uma metáfora cuja
base está no romance de José Saramago, As
intermitências da morte, onde o dia destinado a todos passa a ser
comunicado pela Morte por cartas violetas remetidas com certa antecedência para
que os sujeitos possam melhor se preparar para o seu fim.
5. Sei que
ninguém nasceu para durar eternamente, mas precisam ir-se os bons assim tão
depressa, tão juntos?
6. De
Ariano, meu primeiro contato com sua obra se deu como a maioria dos leitores
brasileiros, pelo filme O Auto da
Compadecida, a obra mais conhecida, certamente e a menos lida, como terá
constatado risonhamente o próprio Ariano. Depois durante minha Graduação em
Letras li a peça mais O santo e a
porca e por fim A Pedra do Reino –
redução para o título Romance d’A Pedra
do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, romance que sustenta toda a
vida de um escritor pela engenhosidade com que foi escrito. Muito recente tive
contato com uma pequena parte de sua poesia que circula na web.
7. Durante a
leitura de A Pedra do Reino foi que
busquei melhor me aproximar da biografia e dos passos do escritor; foi quando
tive contato com sua itinerância pelo Brasil cumprindo o que, além de tudo, foi:
o papel de mestre. Perdi várias oportunidades de ir a uma de suas aulas, mas
pude estar entre os da primeira fila de uma delas, em 2011. Foi aí que cunhei
essa certeza do Ariano-mestre. Foi aí que costurei a suspeita de, mesmo sabendo
que ninguém é perfeito, que ninguém que foi seu aluno deve ter alguma queixa a seu respeito porque nele se reunia as maiores qualidades que admiro no exercício da
profissão: dedicação, espontaneidade e a capacidade de reduzir ao comezinho todas as firulas
ensaiadas por qualquer escrita.
8. “Tenho
duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a
cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante
tarefa de viver.” E não é isto a vida? Um enfrentamento diário. Um exercício
que se não tivermos força o suficiente não conseguimos – por breve que seja –
chega à outra margem. Fica de Ariano Suassuna essa imagem do incansável, do que
nunca se rendeu, do que tinha uma paixão louca e serena, um fascínio pela
capacidade de existir. A imagem de quem via na beleza da simplicidade toda a
natureza do clássico; de quem deu uma forma para a cultura nordestina, num
diálogo de aproximação entre as fronteiras do popular com o erudito e tecido
por uma engenhosidade delicada e sofisticada.
9. "A
gente escreve para afirmar nossa paixão pela vida e protestar contra a
morte". O exercício de paixão pela vida fica representado na breve, mas
firme obra que nos deixou, grande parte ainda por vir, e a que já veio não pode
ser esquecida passado o alvoroço da comoção que moveu todo um país ainda forte
desconhecedor de sua literatura.
10. “Mas,
para não sermos hipócritas, temos também que restringir a imagem à nossa vida
pessoal, pois, ou reconhecemos as nossas culpas ou nunca começaremos a lutar
contra o inferno que cada um de nós guarda dentro de si. Tenhamos, então a
hombridade de reconhecer que nossos caros patrícios possuem seus arrais de
Canudos: quando na casa de qualquer um de nós, brasileiros brancos e privilegiados,
um casal oprime e explora uma empregada doméstica negra e pobre, é o Brasil
oficial que está humilhando o Brasil real, e violando a dignidade do seu
direito. Ao falar assim, procuro não ser otimista nem pessimista. Sonho,
apenas, esperançoso, com um futuro que sei difícil, mas não considero impossível.”
A citação foi copiada de uma aula magna de Ariano por Paulo Caldas Neto na abertura
de seu ensaio Do picadeiro ao céu – o riso
no teatro de Ariano Suassuna. Estava na persistência e no sorriso, na divulgação
incansável de nós mesmos para nós mesmos um exercício político incansável de alguém
que antes de tudo acreditava no lado mais belo do homem. Nunca nos esqueçamos disso.
Até breve, Ariano.
Leia nossas homenagens para Ariano Suassuna
> Pedro Fernandes, o editor do Letras, redigiu notas de uma das aulas do mestre
> Em 2013, redigimos um texto sobre a obra poética Ariano + catálogo com sua poesia
> No Tumblr Dez momentos raros sobre Ariano
> No Tumblr quatro iluminuras com poemas de Ariano
> Obras indispensáveis para conhecer a literatura de Ariano Suassuna
> No canal do Letras no Youtube indexamos uma das aulas magnas de Ariano
Comentários