A cruzada moral em Os miseráveis

Por Lee Pontes

Eugène Delacroix. La Liberté guidant le peuple


Se a literatura é sempre um oceano de possibilidades, Os Miseráveis é um mar em si. Expõe não alguns anos, mas um século. Cem anos saltam de suas páginas que, na nossa leitura, inicia-se pela capa. A editora Martin Claret escolheu da produção artística da revolução francesa o quadro La Liberté guidant le peuple, mais conhecido, de Eugène Delacroix, que eterniza um momento, a revolução de julho de 1830 que levou a queda de Carlos X. Uma mulher surge em primeiro plano com a roupa rasgada e o peito nu. Madame Liberté se ergue sobre aqueles que morreram para defender a revolução. Com uma baioneta em punho e a bandeira da França para o alto, chama os homens à luta contra os inimigos da revolução.

O peito nu representa a pureza de seus ideais, que aspiram a um Estado em que homens, mulheres e crianças sejam tratados como iguais. Assim, despe-se de sua condição feminina e luta por um novo futuro. Os sans culottes são os indignados com os problemas sociais que deixou a França na miséria. Em 1715, eram 25 milhões de habitantes, sendo que 23 milhões passavam por estado de penúria por conta da crise na produção agrícola e de uma indústria deficitária. Ao fundo, surge a Catedral de Notre-Dame, o símbolo da opulência da Monarquia Absolutista, desponta absoluta no céu da França e impera entre a terra e o céu, daí ela surgir ao fundo, entre nuvens. Madame Liberté é maior pelo fato de representar o desejo do povo francês por liberdade. Como define Cecília Meireles a liberdade “... essa palavra, que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”.

Os miseráveis de Victor-Marie Hugo volta-se às leis que regem os homens em sociedade. Publicada em 1863, o texto arrastou milhares de pessoas às livrarias e talvez seja ainda uma obra atualíssima. Pois trata da evolução de vários homens e seus destinos numa sociedade em que a lei é dúbia e incerta. Diz Hugo: “Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século - a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância - não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre esta terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis”.

Para Hugo, a miséria social não é fruto das desigualdades de aptidões, mas fruto da má interpretação das leis e costumes sociais pelos poderosos. A justiça social, para o autor, é o compartilhar das possibilidades de alcançar aquilo que ele chamou de destino por natureza divino, uma vida justa. Não seria a distribuição das riquezas que levaria a sociedade a eliminar a degradação humana, ao contrário, justiça social seria permitir que crianças tivessem acesso à educação, mulheres não fossem obrigadas a prostituição para conseguir alimento e ao homem fosse possibilitado o acesso ao trabalho sem exploração. Hugo entende que a caridade não deveria ser o trabalho dos homens, mas, ao contrário, é necessário instalar a justiça social.

O foco de Os miseráveis é um questionar como construir uma realidade social mais favorável com a diferença de aptidões, sem condenar a população à miséria. Interessa-nos saber como os personagens de Victor Hugo constroem suas leis e passam a vivê-las. Para entender como as desigualdades se dão na sociedade de seu tempo, Hugo percebeu que ocorre um processo de desenvolvimento de princípios morais nos indivíduos, ou seja, os homens constroem valores que passam a orientar o seu transitar pela sociedade. Kant afirma que o homem pode chegar a leis universais para orientar sua moral, sem levar em conta os atos práticos, bons ou ruins. Segundo o filósofo, o que importa é pensar sobre as leis, refletir sobre elas, indiferentes aos atos em si. Em todos os níveis do entendimento humano e na natureza das coisas, existem leis que regem, desde o movimento dos corpos até a criação de novos corpos.

Em Os miseráveis não ocorre o contrário; Hugo mostra que os homens criam leis, entretanto, não se sentem refletidos nelas, suas leis regem o mundo social, como se o mundo social não os provocasse. Montesquieu e Rousseau mostraram que o homem percebeu que viviam uma dualidade (necessidade e liberdade) e criaram leis para atender a essas dimensões, entretanto, ao sentirem-se poderosos, passam a explorar o outro e as leis sociais visam a atender necessidades individuais e nunca beneficiar a sociedade. Nessas linhas, o homem procurar forjar as leis, sem sentir que é seu dever obedecê-las, as eles existem para os outros e para beneficiar determinado indivíduo sobre os demais.

Hugo construiu o Monsenhor Bienvenu ou Bispo de Digne como uma figura encantadora, entretanto, ainda muito imperfeita. Isso fica expresso no debate que a personagem terá com o convencional G. Hugo procura expor a postura pouco à vontade do Bispo frente aquele homem, que perto da morte revela lucidez e moral fora do comum. O Monsenhor Bienvenu passou um bom tempo fugido daquela visita e, quando soube da morte eminente daquele, partiu a seu encontro e fazê-lo arrepender-se dos pecados. Ao se deparar com o cadafalso, Bienvenu vê-se diante da realidade da morte, ante o convencional G, ele viu um homem que se deu para morte, depois de ter dado sua vida pela pátria. Hugo, num trecho, revela a vaidade que o Bispo sentia a ser chamado de Sua Grandeza e revela a luta que o mesmo trava interiormente, para não repreender o moribundo por tratá-lo com falta de modos.

Hugo não criou um simples representante da religião, a qual ele mesmo havia abraçado. Em Notre-Dame de Paris, Hugo mostra o homem no seu dilema natural, naquilo que Kant chama de razão teórica, em que o Arcodiácomo surge no seu dilema de homem e religioso, sofre por não entender a natureza de seu corpo e do seu desejo. Em Os miseráveis, mostra um religioso, senhor de seu saber sobre a natureza, mas não perfeito, ele surge como um sofredor, por querer conhecer as leis que regem a sociedade e sua relação com ela. Para tanto, Hugo nos guia pelas transformações que esse homem passou para chegar ao ato final do seu agir ético.

Monsenhor Bienvenu modificou-se depois de vários dilemas – a revolução francesa, a morte da esposa, o encontro com Napoleão, sua chegada a Digne e a visita ao hospital, ao acompanhar o condenado à guilhotina, o diálogo com o Convencional G e, por fim, com Jean Valjean. Com o primeiro, ele, que era sucessor do pai, na cadeira da Assembleia, como costume da Nobreza, percebeu que não era mais necessária, já que fora dissolvida. O fato o conduz à Itália, tanto pela fragilidade de sua esposa, como pela perda de bens. A França encontrava-se em conflito e sua linhagem nobre o tornava persona non grata. Eis o primeiro choque, o que o tornava mal visto, sabia que era conhecido pelo seu bom humor e vida de dândi, era um galanteador. Sua partida era uma fuga e não um passeio.

A morte da esposa fere suas ilusões de apaixonado e o fato de ela não ter podido dar-lhe filhos também colabora para o seu sofrimento. Por estar na Itália, longe da França de seu tempo e sem a esposa, aumentaram os ideais de solidão e renúncia, fatos que devem tê-lo levado à vida religiosa. Ao encontrar-se com Napoleão, se surpreende e ousa falar este. De um pobre padre, veio a ser, por meio do imperador, o Bispo de Digne.

Um dos momentos mais chocantes é o seu diálogo com o condenado à morte. O capelão da cadeia estava doente, o cura recusou-se a atender ao chamado. O Bispo disse que esse não era o trabalho daquele, mas dele, e assim partiu ao encontro do condenado. Durante o dia em que ficou ao seu lado, esqueceu-se de si, foi, para o infeliz, pai, irmão, amigo, virou Bispo apenas para dar-lhe a benção. No outro dia, ficou ao seu lado e o acompanhou até a guilhotina, esse ato o modificou por completo, talvez o tenha feito mais ainda pensar sobre as leis e penas humanas. Não imaginava que fosse tão monstruoso! É um erro absorver-se tanto pela lei divina a ponto de não se dar conta da lei humana. A morte pertence só a Deus! Com que direito os homens põem a mão nessa coisa desconhecida? 

Segundo Kant, a moralidade se coloca como questão pelo fato de possuirmos o livre-arbítrio e, usando nossa vontade, podemos utilizar nossa liberdade para fazer normas e leis para conquistar a finalidade da ação humana. A máxima kantiana seria: o homem deve viver de tal modo que sua ação não prejudique nem a si e nem a ninguém. Bienvenu já havia incorporado esse princípio, pelo fato de seguir a doutrina cristã. Na noite do encontro com Jean Valjean, o bispo lia o Evangelho de Mateus em que ressalta os deveres dos homens para com Deus, em 5, 29 – 30, deveres para consigo mesmo, em 7,12, deveres para com o próximo, e em 6, 20-23, deveres para com as criaturas.

O fato é relevante, por ser um roteiro para o viver do homem. Segundo Kant, a vontade é a potência que permite ao homem viver a liberdade, ou seja, a executar escolhas. Essas escolhas são eleições feitas pelo homem para suas ações de construção de normas e leis para conviver. O ato de viver em sociedade levaria o homem a desenvolver uma vontade que legisla segundo certos fins, os quais têm em vista. Assim, o ato humano ou a vontade humana não deve ser entendida como um meio, mas, ao contrário, um fim em si. Em suma, o “imperativo categórico” funda-se na liberdade e se firma nas leis que levam à dignificação do homem. Para o Bispo, sua ação não é mero reflexo do seu dever frente às leis, ele sente-se responsável por elas, ele a tomou como uma lei sua e sente-se implicado se não a cumprir.

Essa consciência ético-universal significa que o indivíduo percebe a transitividade das normas e leis, elas não são máximas absolutas que não podem ser destruídas. Assim, não se busca destruir leis, pelo contrário, busca-se refletir criticamente sobre elas, dando a elas uma leitura adaptável ao ambiente e à situação. Se o livro Os miseráveis inicia-se com um homem que busca estabelecer uma compreensão universal para os problemas social, Javert é o oposto de Bienvenu, primeiro, por tomar a lei no seu sentido lato, restrito, pão, pão e pedra, pedra. Javert racionaliza tudo, observa as leis no seu caráter natural, sem se dar ao trabalho de buscar entender as leis sociais. Por outro lado, Bienvenu procura entender aquilo por trás do ato, as leis que movem a ação dos homens. Ou seja, para Bienvenu, antes de estabelecer uma condenação, remonta a falta a partir do efeito em busca da causa do crime. Ele procura remontar o fato e, assim, entender o ato à luz da moral das leis sociais.



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