A besta humana, de Émile Zola
Por Pedro Fernandes
Toda nova tradução é uma tradução. A tautologia tem uma
justificativa. É que, apresentar uma nova tradução é como ver a obra ser de
novo escrita e ser de novo apresentada. É mais que isso. Cumpre ainda um exercício de a aproximação entre gerações diversas: com a dos que leram pela primeira vez a obra, com a de outros lugares onde a obra
também foi traduzida, com as de um mesmo lugar que tiveram contato com outras traduções.
Pouco importa dizer que cada leitura – de um tempo, de um público, de uma
pessoa – é forma individual porque é suficiente crer que é isso um exercício de
irmanação pela palavra. Os leitores brasileiros ainda estão muito distantes de
terem acesso, no seu idioma, a muitas obras importantes. Isso não é novidade. Também
não se pode ter tudo. E o melhor é se contentar com o que nos aparece. Sim, não
temos do reclamar.
A primeira tradução de La
Bête humaine de Émile Zola, por aqui, se não tenho lido apressadamente,
data de 1958, por Marina Guaspari, embora nos registros, seu nome só venha aparecer nas
edições a partir de 1988. Além dessa, há muito fora de circulação e outras traduções
que já tínhamos no mercado, recebemos por esses dias mais uma – e não é uma
qualquer – conduzida por Dilson Ferreira da Cruz e publicada pela Disal
Editora. Notem: mesmo não sendo a obra do escritor de grande popularidade no país,
apenas essas observações servem para concluir a suposição com que abri este
texto. Como não tenho formação nenhuma que me permita estabelecer avaliações sobre
esse exercício pelo qual o que apenas nutro é admiração, minha leitura, apesar de tocar neste assunto da tradução, tomará outro rumo e levará
em consideração aspectos mais internos da obra e não perquirições de natureza
tradutória. O trabalho de Dilson é já uma competência maior pelo que representa.
Publicada pela primeira em 1890, A besta humana se constitui num exercício naturalista de observação
sobre a natureza humana, uma das matérias de interesse, desde a acomodação da
forma romanesca entre a nova sociedade surgida da chegada da burguesia ao
poder. E, estabelecendo relações com outro título do escritor francês que tive
oportunidade de ler antes desse, Nana,
publicado dez antes, digo, é um grande romance; tem força própria. A constatação aponta já que, mesmo tomado
pelo medo de cair nas firulas descritivas do romance de 1880, fui, à medida que
avancei a leitura, preenchido por outra sensação que não a do cansaço, a da
curiosidade. Não apenas pela trama, um tanto policialesca, diga-se, mas pela
maneira com que Zola constrói sua preocupação em dizer o real.
Mesmo desconhecedor de sua obra e do seu projeto literário,
por esses dois títulos poderia ensaiar aqui um tiro no escuro: Nana está numa fase do naturalismo em
que a preocupação do escritor é de, como um pintor de seu tempo, tentar traduzir
o máximo do que vê em palavra. E o resultado é o que aí se lê: um sufocamento da ação
pela descrição. Característica que terá incomodado mesmo a críticos como Lukács
que no célebre ensaio “Narrar ou descrever” ao fazer a leitura desse romance em
relação a Anna Kariênina, de Tolstói,
o considera como um soterramento da capacidade de representação da totalidade
do vivido pela narrativa. A literatura baseada na observação excessiva elimina
a dialética entre prática e vida interior.
Não é o caso, entretanto, de A besta humana se qualificar como um romance que sirva de mea culpa a um início de escrita. Não.
Nele se observa um Zola obcecado pela arte da representação cujo interesse não está
preso mais apenas ao de tentar reproduzir as formas do real pela forma do
romance; alia-se à precisão um interesse por explicar o real, como se fosse da
natureza da narração também um exercício ensaístico e, portanto, não afeito
a perder-se na matéria do entretenimento. O romance deve se inserir mais no debate
de compreensão dos indivíduos, tarefa sempre reservada à ciência. E pode-se
mesmo dizer que o anseio do escritor francês se cumpre quando, muito mais
tarde, Gilles Deleuze, constrói suas reflexões conceituais sobre temas como a
fissura e a compulsão a partir desse romance.
O que já é motivo suficiente para ressaltar o extenso valor que
a obra vai acumulando ao longo de tempo e o efeito que terá causado entre
muitos escritores do século XX, como ressalta Dilson Ferreira: “em escritores
como Celine, Camus ou Fitzgerald”.
Não chego a concordar totalmente com a leitura de Lukács
sobre Zola porque vejo que a descrição, ainda por vezes enfadonha, (ainda estou
pensando no caso de Nana) cumpre a
elaboração de um exercício substancial de imaginação da narração. Em A besta humana, por exemplo, as descrições
sugerem ou incutem no leitor a levantar sempre suspeita acerca do
comportamento, da personalidade ou mesmo das ações a serem processadas ao longo
do romance.
Gostaria de citar para ocasião apenas uma situação colocada
à abertura da narrativa: Roubaud prepara um jantar para sua mulher; passado
trinta minutos de atraso da chegada dela – saíra para rua com o motivo de fazer
compras – o narrador que acompanha passo a passo os movimentos da personagem, descreve, “Roubaud
andava de um lado para o outro, virando-se ao menor ruído, ouvidos voltados para
a escada. Em sua espera desocupada, ele passou diante do espelho, parou e se
olhou. Não envelhecera nada, os quarenta anos se aproximavam sem que o vermelho
vivo de seus cabelos frisados tivesse embranquecido. Sua barba, que ele usava
por inteiro, também continuava cheia, com um tom loiro de sol. De estatura
mediana, mas extraordinariamente vigoroso, ele estava contente com sua pessoa,
se satisfazia com sua cabeça um pouco chata, testa baixa, pescoço grosso, rosto
redondo e corado, iluminado com grandes olhos vivos. Suas sobrancelhas se uniam cobrindo seu rosto com a faixa típica dos
ciumentos. Como ele tinha desposado uma mulher quinze anos mais nova que
ele, esses exames junto ao espelho o tranquilizavam.”
Nem necessita dizer que o calor da espera, contada minuto a
minuto, seguido dessa relação entre o traço das sobrancelhas e o ciúme sugere o que poderá se desenvolver depois disso. Pouco adiante, o leitor toma contato
com uma fala desse mesmo narrador sobre Grand Morin, amigo de Lavínia, a mulher
de Roubaud, e gerente da companhia de ferro onde Roubaud trabalha. Junte as
peças: Roubaud impaciente pela chegada de Lavínia + Roubaud ciumento + Roubaud
dependente da amizade de Lavínia com um
tal amigo para se manter no emprego. Ao chegar da rua Lavínia traz de
presente ao marido uma navalha. E então?
E esse movimento de peças, umas se ajustando às outras, se expande, desde a situações como estas de uma narrativa, ao conjunto de narrativas do romance, construindo o que poderíamos chamar de uma forma romanesca muito bem acabada, sem excrescências, interessada tão somente é ser uma
leitura de alguns dramas individuais que, afinal, é disso que se compõem a
realidade.
Mas, se em relação a forma, A besta humana alcança o que alcança – ampliar o lugar cavado pelo
naturalismo – antecipa ainda outras questões caras à literatura e só alcançadas
um século mais tarde; ou o leitor não perceberá os sentidos que tem essa mesma
cena de abertura sobre a qual falei acima, em que se vê Roubaud, um homem, na
cozinha prestando-se ao serviço de organizar o jantar como um prenúncio de libertação
da mulher do espaço interno da casa e dos serviços milenarmente atribuídos a
ela? Ou, na via contrária, ainda o forte domínio que tem o homem sobre a
condição feminina levada ao barranco pela fúria de Roubaud sobre Lavínia e toda
tortura psicológica a que será submetida durante os acontecimentos que se
processarão durante a narrativa. Isto é, alguns prenúncios turvados pela situação histórica de seu tempo, mas uma escrita que visita aos baixos das relações sociais
e das conveniências na França do tempo de Zola a partir das relações internas.
E além dessas questões, que sentidos têm a presença da
máquina, um símbolo do modernismo, como elemento dominante na paisagem da
narrativa? Ora se apresenta como elemento divisório nas relações pessoais, ora
como elemento de integração, ora signo de progresso, ora de maldição; percebem o embate de forças? Tudo treme na
sua presença que alcança, por vezes, um lugar mítico na trama ou se torna forma
humanizada, funde-se à matéria de composição dos indivíduos – “Era como um
corpo imenso, um gigante deitado na terra, a cabeça em Paris, as vértebras ao
longo da linha, os membros crescendo com as ramificações, os pés e as mãos no
Havre e em outras cidades de chegada.”
Outra característica que se mostra como antecipação do século
adiante é a gênese da instituição burocrática seja quando se depara com a
descrição das funções e as atividades de funcionamento da estação de trem ou
mesmo a relação a que as personagens estão submetidas – são funcionários ou
peças diretamente ligadas nessa complexa instituição que se forma ao longo da
França.
Por tudo isso e se o que Émile Zola pretendia era, como
disse sobre A besta humana, produzir
“algo alucinante, terrível, que ficasse para sempre na memória e provocasse um
pesadelo em toda França”, alcançou e mesmo ultrapassou o tempo de sua
publicação. Passado tanto tempo depois, este romance ainda consegue ser elemento
que pulsa vivamente na consciência de quem o lê. Prova ser o que todo clássico
é: peça indispensável na estante dos leitores.
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