Zico, Zeffirelli e a energia abandonada
Por Antonio Callado
Está bem arraigada no espírito da gente a ideia de que
permitimos que se separasse, em nossa cultura, o físico do espiritual. A imagem
que nos obceca – aparentada à do paraíso perdido ou a de alguma fazenda em que
tenhamos passado a infância – é a das antigas olimpíadas, em que a poesia e os
cânticos se misturavam às competições. Sófocles, como lutador, era muito bom no
ringue. E era dançarino. Liderou em 480 a.C. o coro que celebrou a vitória de
Atenas contra os persas. Era então um jovem atleta. Desfilou pelado.
No entanto, reconhecidas as diferenças, surge uma suspeita.
A de que se os intelectuais e artistas perderam, por preguiça, contato com o
mundo dos músculos e do esforço físico, os atletas continuam ligados ao mundo
da emoção e do esforço mental, mesmo em pleno reino do profissionalismo.
Vejam o futebol. As imagens da Copa estão ainda com a gente.
Tanto as equipes modestas – a de Honduras, por exemplo, ou a dos Camarões, – como as da França ou da Alemanha entravam em campo tensas, graves. Frequentemente
jogadores saíam do gramado furiosos, ou cabisbaixos ou chorando sem pejo. É que
todos, sem exceção, tinham se preparado exclusivamente para a glória, a
apoteose. Não por soberba ou convencimento. Por terem cumprido e sobrevivido a
meses de disciplina, de ascese. Aquela rapaziada natural e saudável vinha de
privações e provocações. Treino tão duro e tão constante só tinha sido possível
porque todos estavam certos de chegar à revelação. Um nadador leva meses e até
anos dentro d’água, de um lado para outro, com o único intuito de subtrair um
meio segundo no tempo levado para ir dum lado a outro da piscina. Mas pelo
menos sabe que a raiva de perder, ou a glória, dependem dele próprio. O jogador
de futebol, além de passar meses acertando uma jogada, tem de pensar no outro,
nos companheiros de equipe. Para nem falar no outro time.
Eu sou Flamengo, e, portanto, Zico é meu guru. No campeonato
deste ano (1982) o Flamengo só ganhou do Esporte de Recife, no Maracanã, pelo
pálido placar de 2 a 0. Foi vaiado pela galera, que queria uma goleada. Zico,
paciente e sábio, declarou: “Temos que levar em conta que diante de nós estão
11 jogadores, também dispostos a ganhar”. Era Zico como eco, irmão de
Sartre: “O inferno são os outros”.
E se ainda fosse necessário mostrar como em jogos e
competições se queima energia espiritual e força artística, bastaria citar a
carta que outro dia Franco Zeffirelli escreveu a Time, depois de ler a história
de capa que essa revista publicou sobre a Copa do Mundo. Zeffirelli – que
protestou contra a insistência da revista na brutalidade e na técnica defensiva
dos italianos e nas “lendas da magia brasileira” – disse que o “futebol há
muito se impôs como uma das mais notáveis formas de arte popular do século e o
desempenho de nossos magníficos jogadores italianos nas finais teve uma
qualidade artística comparável à mais alta do teatro e do cinema
contemporâneos”.
Por tudo isso – pela arte, pela graça e sobretudo pela
ascese quase monástica que exige – o futebol fascina e intriga quando surge em
sua mais esplêndida forma (Zeffirelli que me desculpe) exatamente num país
ainda tão incerto de si mesmo, tão confuso como o Brasil. Augusto dos Anjos,
num verso estranho, ouviu um dia “o choro da energia abandonada”. Deve ser a
energia que só sabemos usar quando disciplinados por regras austeras como as do
futebol, férreas, sagradas, que ninguém altera ou muda antes ou depois do jogo.
* Antonio Callado, jornalista e escritor, autor de Quarup, Bar
Don Juan, A Revolta da Cachaça e outras obras.
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