Uma metáfora futebolística sobre a existência incerta
Por Rafael Kafka
© Gal Oppido |
Todos sabem
de meu amor pelo futebol. Mas é um todo particular. Sou do bizarro tipo que não
vai para estádio por falta de dinheiro e medo de ser apedrejado por torcidas
organizadas. Ao mesmo tempo, sou do tipo chato para muitos que evita ao máximo
(mesmo recaindo ainda em vieses implícitos machistas) usar termos homofóbicos e
preconceituosos em geral para zoar com meu adversário em dias de vitória ou
derrota. Para completar, sou do tipo que não leva futebol tão a sério, mas ao
mesmo tempo faço do campo de futebol uma verdadeira aula sobre a vida humana.
Não sou um
grande amante de esportes em geral. Já tentei acompanhar vôlei e Fórmula 1
durante muitos anos, mas nenhum deles se equiparou ao futebol enquanto esporte
capaz de mexer com a paixão do ser humano. Seja dentro ou fora de campo, na
forma de diversos atos leais ou desleais, humanos ou desumanos. O ex-jogador e
mito corintiano Sócrates disse em um Gordo a Go-Go em 2004, se bem lembro, que
o que causava todo esse louvor ao futebol era a sua imprevisibilidade. Apesar de
outros terem isso também, o Futsal chega a ter mais, o futebol tem um misto de
calmaria e imprevisibilidade únicas.
O jogo
segue em ritmo morno e de repente uma bola parada pode mudar tudo. Um tenista
pode estar mal e de repente ficar bem, porém é ele consigo mesmo contra o
outro. O futebol são onze contra onze e seu brilhantismo de uma fase, ou de um
dia, pode ser ofuscado pela falha gritante da zaga ou o frango do goleiro. Um jogo
são vários jogos, ouvi essa frase uma vez atribuída a Renê Simões, assim como a
vida.
Dois jogos
recentes, ambos goleadas, me fazem pensar nisso. O primeiro foi o último
Fluminense X São Paulo. Aquele primeiro tempo do tricolor paulista, exceto pela
falha da zaga que deixou o meia argentino Conca chutar e Wálter fazer no rebote
de Rogério Ceni, foi perfeito. Belos toques de bola, chances perdidas, domínio
quase que total do jogo. Mas eis que um time muito bom volta com tudo para o
segundo tempo, consegue um empate em um gol contra, a virada em um lance
antológico do gordinha Wálter e tudo vai por água a baixo. Um cinco a dois que
deixou a todos os tricolores chocados e com a pergunta: o que diabos ocorreu
com nosso time no segundo tempo? O segundo jogo foi o primeiro Re X Pa da
decisão do campeonato paraense. Dois lances infelizes de um dos melhores
zagueiros bicolores, Charles, um gol contra e uma expulsão, deram ao Remo a
chance de definir o título logo ali. Receosos, os jogadores azulinos apenas
administraram a vantagem feita ainda antes da expulsão do zagueiro, porém no
segundo tempo voltaram dispostos a fazer o que deveria e um sonoro quatro a um
se construiu. Detalhe que os dois times jogaram bem, todavia essa é mágica do
futebol: os detalhes casuais que se juntam e formam um tecido narrativo muito
rico e belo de ser admirado por aqueles que sabem curtir o esporte sem
fanatismo e loucura.
O meu amor
pelo futebol se dá pelo fato de ele refletir como nenhum outro esporte o
absurdo de nossa existência. Aqui estamos em um morno zero a zero com a
existência e de repente algo ocorre e ou fazemos um a zero ou sofremos o baque
de um gol surpresa. Depois, precisamos olhar o passado e nosso erro e tentar,
custe o que custar, o empate e depois a virada, sabendo que podemos tomar de
dois a zero, três a zero, sermos humilhados. Todavia, esse é o prazer do jogo:
o risco. Como diz Milan Kundera, a vida é um rascunho sem texto principal a ser
feito depois. Ela é tanto rascunho como arte final, e é isso que a torna tão dolorosa.
Podemos chegar a um momento de nossa existência e ter a mais plena certeza de
que vivemos uma vida rica e bela, ou de que vivemos em uma miséria moral
maldita. Para os ateus, isso se torna ainda mais complicado, pois não há, para
eles, a vida após a morte, que compensaria tudo... O futebol tem disso,
principalmente quando o time perde por aquela falha da zaga no último minuto ou
pelo empate dentro de casa que poderia dar a vantagem na final do campeonato de
pontos corridos.
É a vida. E
nela precisamos saber perder. Isso significa se reerguer, planejar-se novamente
e procurar sempre o melhor resultado com a melhor estratégia, o melhor preparo
físico e psicológico e o máximo possível de fé.
*
Tudo isso é
um preâmbulo para uma metáfora que servirá de exemplo para o espelho
existencial futebolístico que citei acima.
Caso me
perguntassem qual foi o jogo mais marcante de minha vida, eu dificilmente
saberia dizer. Teve aquele São Paulo X Liverpool de 2005, com jogo memorável de
Rogério Ceni. Teve o Cruzeiro X Paysandu de 2002. Caso ainda não tenha notado,
caro leitor, torço para os dois times, mas diria que mais para o primeiro, para
desespero dos xiitas metidos a defensores da cultura local, por conta de
Rogério, exemplo profissional e humano para mim. Mas deixemos isso para outro
texto. Por isso, logo lembrei desses dois jogos.
Todavia,
não falarei deles enquanto meu jogo mais marcante. Falarei de um cenário mais
pós-moderno, digamos assim. Algo muito a ver com minha mente feminista e meu
gosto pelo insólito. Não que ver futebol europeu seja algo insólito hoje em
dia. Porém futebol europeu com uma mulher narrando, infelizmente, ainda é.
O jogo era
Chelsea X Barcelona, semifinal da Liga dos Campeões da Europa da temporada
2008/2009. Naquela época, eu estava encantado pelo futebol de Lionel Messi e
torcia para o Barcelona quase que somente por causa dele, a despeito do belo
time montado por Pepe Guardiola. O primeiro jogo fora 0 x 0 no estádio do time
catalão e ali o Barcelona precisava pelo menos empatar com gols para levar a
vaga para a final contra o Manchester United de Cristiano Ronaldo. Para piorar
as coisas, o Barça levou gol bem cedo, uns cinco minutos de jogo, e depois teve
jogador expulso. Ou seja, a situação estava precária.
Mas foi aí
que vi a coisa mais louca do mundo: o Barcelona não parava de atacar, mesmo com
um a menos, e teve de contar com a grande partida de seu goleiro Valdés para
não levar o segundo gol, o qual colocaria tudo a perder. Usando aquele
tradicional estilo de dois toques por jogador, o Barcelona pressionou o
Chelsea, que com um a mais apenas saía em contra golpes. Para meu maior
deleite, a narração excelente de Éder Luís contava com o apoio da comentarista
Milly Lacombe. Nunca vi seu rosto, mas gostava de sua voz e de sua forma de
analisar o jogo. Usando o paradigma feminino da sensibilidade, ela possuía uma
visão mais profunda do jogo a qual muito me agradou e é uma pena não saber por
onde ela trabalha hoje. Ela então citou o comentário mais lindo de todos já
ouvidos por mim em transmissões esportivas sobre aquilo que víamos ali na tela.
"O
Barcelona é um time de jogo simples: eles só sabem atacar. O próprio técnico
diz isso. Nesse toque de bola do time, eles chegam ao ataque sempre em prol do
gol. O simples é a essência do belo e é isso que explica a beleza desse futebol
do Barcelona: a simplicidade que faz com que eles, mesmo com um a menos,
ataquem e se defendam em bloco, sempre procurando o gol."
Ela falava
mais alguma coisa, porém em síntese era esse o seu comentário. Havia algo mais
sobre essa simplicidade ser a essência do belo tanto na vida quanto no futebol
e foi isso que me tocou: o fazer o simples, o atacar como se não houvesse
amanhã, para no final sempre correr o risco de premiado com um belo prêmio,
como o gol de Iniesta que levou o Barcelona à final, feito já nos acréscimos do
jogo.
Desde
então, em meus momentos mais sólidos e felizes, procurei seguir o conselho
indireto de Milly Lacombe: viver o simples. De certa forma, eu já vivia isso
quando pegava livros e mais livros para ler e escrevia textos e mais textos,
ambas as atividades sem pausa. Também atacava quando eu passava horas
caminhando sob o sol quente para desenterrar alguma ideia de poema ou mesmo
curar alguma mágoa do coração.
Com o
passar dos anos, deixei de atacar algumas vezes e me senti profundamente
infeliz nesses momentos. Hoje, volto a querer atacar sem dó nem piedade, com
desejo de aproveitar da vida o máximo que posso. Contudo, assim como na vida é
preciso criarmos uma boa estratégia caso queiramos uma vida que nos dê mais
sucessos do que infelicidade.
Por conta
disso, aos poucos vou aprendendo a não causar mais erros atrozes como os
cometidos outrora por mim. Já levei diversas goleadas da vida bem humilhantes,
como aquela garota que corta o galanteio por achá-lo abusado demais quando eu
pensava que ele era original e provocador; ou aquele emprego que tive de largar
por não me adequar às exigências do contexto. Algumas dessas derrotas se
repetiram diversas vezes, e cheguei a crer que nunca aprenderia com meus erros.
Ledo engano. Quando erramos muito, quase que por instinto mudamos a atitude,
tornando-a mais cautelosa, mais agressiva ou diversas coisas que são os matizes
existentes entre esse par de palavras. O certo é que é logicamente impossível
sermos os mesmos sempre.
Hoje, após
um reencontro, algumas leituras, uma conversa e uma xícara de café, percebo que
passei os últimos anos atacando muito, contudo com a estratégia errada. Por
isso, colecionei diversos fracassos e me senti mal por afastar-me demais do
estilo de jogo que quero praticar. Mas, como eu disse acima, essa é a vida.
Criar uma
estratégia não deve ser confundido com querer jogar bonito para agradar a
torcida. Não. Deve-se pensar no melhor para o time naquele momento e mudar se isso
não se revelar útil e eficaz. E, acima de tudo, deve-se dar tempo para que a
estratégia seja mudada e aplicada. De nada adianta após dois ou três insucessos
uma mudança de estratégias geral que culminará em um novo período de testes,
que também pode sequer chegar ao fim. A vida exige paciência demais, bem como o
futebol.
Por conta
disso, hoje meio que decidi a fazer aquilo que pensava estar fazendo há algum
tempo: atacar sem parar, usando o simples jogo. Sem muitas firulas e sem o
desejo de agradar ninguém. Cada torcedor assim como cada pessoa tem sua noção
de bom gosto, e querer agradar a cada um é impossível. O melhor é ignorar e
seguir em frente, curando as próprias feridas e procurando sempre melhorar,
mesmo que um braço seja amputado ou um jogador seja expulso com o time em
desvantagem.
Nada me
resta fazer, exceto atacar. Eis a vida em toda a sua cruel beleza e o futebol
com todo seu mágico resplendor.
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