Primeiro, o escritor
Por André Toso
Chico Buarque, o menino, no Colégio Santa Cruz. Em 1964, a escola foi palco do primeiro show e das primeiras publicações 'inventadas' por ele. |
No ano de 1958, o estudante Francisco Buarque de Hollanda
passeia calmamente pelos corredores do Colégio Santa Cruz, instituição
frequentada pela elite paulista. Carrega em uma das mãos um raro exemplar da
primeira edição da obra Macunaíma, de
Mário de Andrade. Aos 14 anos, o menino escolhera a dedo o exemplar que
emprestaria das estantes forradas de livros que seu pai, o historiador Sérgio
Buarque de Hollanda, colecionava em casa. A presença constante de intelectuais
em seu cotidiano e o interesse e a curiosidade precoce por textos literários
foram importantes para os passos iniciais do escritor.
No artigo “O historiador escrever sobre seu filho Chico
Buarque”, publicado no dia 19 de outubro de 1991, na Folha de São Paulo, Sérgio afirma que desde muito jovem o filho
gostava de devorar obras de seus escritores preferidos. Guimarães Rosa, Fiódor Dostoiévski, Liev Tolstói e Franz Kafka foram suas principais referências na
juventude. O voraz leitor Chico Buarque, trilhando um caminho natural, logo
começou a arriscar suas próprias canções.
Nessa trajetória parece que o colégio também exerceu um
papel estimulador, graças aos eventos culturais que desenvolvia. Durante a
época de estudante, o então garoto organizou uma escola de samba para
representar a instituição e foi nos palcos do Santa Cruz que fez seu primeiro show
ao vivo, em 1964, apresentando ao público a música “Canção dos olhos”, composta
em 1959 aos 15 anos.
As primeiras crônicas de Chico Buarque foram publicadas no
jornal estudantil Verbâmidas, que o
aprendiz de escritor criou e batizou aos 17 anos. Usou, aliás, um título que
não significa absolutamente nada. Sinal de que Guimarães Rosa já o
influenciava. Escrevia para o periódico juntamente com outros colegas, entre
eles o jornalista Ricardo Kotscho, que também fazia ali suas experimentações
literárias.
No texto “Aquarela”, publicado no Verbâmidas em 1962, Chico Buarque narra um diálogo entre o pai
aparentemente conservador e seu filho adolescente. O senhor – para quem “tudo
se resume em dois trissílabos: trabalho e dinheiro” – começa a lição de moral
em tom grave e inquisitório, mas após alguns goles de uísque se derrete ao
ouvir as aventuras amorosas do filho. Relembra seu próprio passado com
saudosismo e, durante a conversa, porta-se de modo ainda mais impulsivo e
emotivo do que o garoto. “E o velho se largava em gordas gargalhadas, parecendo
prestes a estourar a qualquer momento. Esfregava as mãos, arregalava os olhos,
deliciava-se com a juventude distante...”, narra o estreante autor,
demonstrando sensibilidade, talento com as palavras e criatividade na
construção de uma história simples e bem estruturada.
Em uma época em que o país começava a sentir o endurecimento
que resultaria na Ditadura Militar, os textos do jovem Chico Buarque demonstram
uma visão libertária e apaixonada na vida. Em trecho da crônica “Brigas... e
depois?” sentencia: “Quando se dá conta, a felicidade já é irremediavelmente
retrato na parede, cartinha na gaveta,
passando”. A história, ingênua e bonita, fala de dois jovens que terminam
uma relação por motivos banais e depois se encontram já idosos. Maduros,
caminham juntos em silêncio sentido a nostalgia da vida a dois que fora perdida
por bobagem.
Em 1966, aquele antigo garoto do Colégio Santa Cruz
estabelece definitivamente seu caminho de sucesso em outro território que não
as letras. A vitória da canção “A banda” no II Festival de Música Popular
Brasileira, da Tv Record, e a forma absoluta que se seguiu deixavam claro que a
atividade principal de Chico Buarque seria a musical. Porém, em entrevista para
a revista Nossa América, em 1989, o
próprio artista afirma que o destino mais óbvio não contemplava os palcos.
“Quando comecei a fazer música, meu caminho natural talvez fosse a literatura.
Minha geração foi sequestrada pela música, que teve um impacto enorme entre
nós.”
Os shows, as gravações e as turnês dificultavam a vida do
escritor Chico Buarque. Entretanto, ele foi persistente. No mesmo ano de 1966,
lançou seu primeiro songbook,
intitulado A Banda, que trazia, além
das partituras e letras de canções, a publicação de seu primeiro conto:
“Ulisses”. O texto saiu também no Suplemento
Literário do jornal O Estado de São
Paulo e é uma adaptação contemporânea de Odisseia. No primeiro parágrafo, faz uma caracterização do que
seria a volta do viajante moderno: “Ulisses chega de galochas, barba por fazer,
embrulho fofo, paletó triste...”. Na história, Penélope, a mulher que deveria
aguardar ansiosamente a chegada de Ulisses, tricota sem parar e ignora a
presença do marido. O texto não roubou a cena, passou praticamente despercebido
e, anos depois, o próprio Chico considerou o conto fraco.
Apesar de a música preencher grande parte de seu cotidiano,
Chico Buarque ainda encontrava tempo para criar peças de teatro, além de
escrever esporadicamente artigos em jornais, que vez ou outra eram submetidos
ao crivo do exigente pai. Um dos que mais repercutiram na época é o texto que
assinou para o jornal Última Hora, em
1968, sob o título “Nem toda a loucura é genial, nem toda lucidez é velha”.
Abordava a rivalidade entre a pureza do violão e voz da bossa nova e a
introdução da guitarra na música brasileira, que começava a ser explorada pelos
tropicalistas. O artigo foi publicado pouco depois da polêmica passeata cívica
contra o instrumento elétrico e em defesa das origens da música popular
brasileira. O movimento teve participação de nomes de peso da MPB, como Elis
Regina, Edu Lobo e Gilberto Gil. Contrário à manifestação, Chico afirma no
texto que é preciso respeitar as novidades e que a música brasileira já guarda
as inovações em suas origens: para ele anda era mais moderno do que a batida
inventada por João Gilberto.
O correspondente
Em 1969, enquanto o AI-5 aumentava as tensões e as
perseguições no Brasil, Chico Buarque – sentido-se pressionado pela ditadura –
retirou-se do país e escolheu Roma como residência. Da Europa, enviou
esporadicamente artigos para o semanário político-satírico O Pasquim, um dos marcos do jornalismo da época. Era sua primeira
experiência como colaborador de um jornal. Na crônica “Eu”, o jornalista faz
piada de suas novas funções: “Acordo com nova disposição, penteado novo.
Jornalista Francisco, prazer, exercendo meu ofício com toda a assunção. Já
começo até a receber cartas, vejam só. Um jornalista recebe muitas cartas”,
ironiza.
Chico Buarque em Roma, Piazza Navona. Aí esteve entre 1969 a 1970, durante o autoexílio no período da Ditadura Militar. |
Críticas veladas à ditadura e histórias sobre Roma formavam
o conteúdo geral dos textos escritos para O
Pasquim. O tema mais recorrente, porém, era o futebol. Uma paixão célebre,
revelada nas letras de suas canções e na criação de seu time amador Politheama.
Fica claro também nos artigos que esse era o seu assunto predileto, com o que
ele demonstrava mais intimidade e habilidade para tratar. Tanto assim que
décadas depois, em 1998, aceitou o convite dois jornais O Globo e O Estado de São
Paulo para escrever crônicas semanais durante a Copa do Mundo da França.
Mas fez questão de alertar, em entrevista ao jornal O Globo, no dia 10 de maio de 1998, que
não entendia nada de futebol e que escreveria seus textos como uma pessoa que
não observa muito o transcorrer do jogo. “Eu gosto tanto de futebol que, muitas
vezes, eu me desligo inteiramente do que está acontecendo. Uma jogada bonita,
por exemplo, que é interrompida, eu ficou imaginando o que é que poderia
acontecer”, disse na época.
A promessa se cumpriu. As crônicas não são objetivas e não analisam
friamente os jogos, os resultados e as polemicas da arbitragem. As linhas
enviadas pelo cronista traziam conteúdo pouco comum para os articulistas
esportivos, revelando visões sociológicas, políticas e poéticas. Em um dos
trechos, aproxima-se de suas letras e faz uma análise social por meio dos
jogadores: “...porém, ainda que esses times jogassem com uniformes embaralhados,
penso que não seria difícil distinguir o país rico do país pobre. Os pobres são
os folgados, os esbanjadores, os exibicionistas, matam a bola no peito, a bola
gruda ali que nem uma goma”. Mostrava simpatia às seleções africanas e deixava
claro que era preferível um time que perdesse bonito a um time que ganhasse
apenas com eficiência.
No artigo “Gritos e sussurros”, publicado no dia 27 de junho
de 1998, nos dois jornais, decide se distanciar do futebol e abordar os
encantos de Paris: “Bebi um conhaque, e agora sou tomado de carinho por esta
cidade. A noite é propícia para uma caminhada, tendo cessado a chuva. Brilham as
pedras do calçamento antigo, pedras arredondas tipo pé-de-moleque, o que me
traz súbito desejo de sapatear”.
Entre poemas e o violão
No ano de 1963, Chico Buarque e seu amigo de faculdade
Vallandro Keating resolveram que não iriam mais estudar arquitetura. Enquanto
as aulas aconteciam, os dois – conhecidos respectivamente como o Carioca e o
Malandro – cantavam e tocavam violão nos porões da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo. Chico escreve poemas, enquanto o amigo
arranhava bossas no instrumento de cordas. Dezoito anos depois, em 1981,
aqueles encontros deram origem ao livro A
bordo do Rui Barbosa.
Vallandro Keating fez o papel de ilustrador e criou desenhos
para acompanhar o poema assinado por Chico Buarque. Os versos contam a história
de um marinheiro analfabeto que decide escrever uma carta para a amada, que também
não sabe ler. Ele procura alguém que possa escrever em seu lugar; ela, com a
carta em mãos, busca uma vizinha que consiga entender a declaração. O livro foi
lançado depois da publicação, em 1974, de Fazenda
modelo, a primeira novela do autor.
Quase 20 anos após a criação do Verbâmidas e de seus primeiros textos, Chico Buarque ganhou
respeito da crítica como escritor em 1979, ao publicar o livro infantil Chapeuzinho amarelo, ilustrado por Ziraldo.
Dessa forma, fincou definitivamente as bases para se tornar um autor
respeitado. Os romances não demoraram a surgir. Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e o premiado
Leite derramado (2009) consolidam de
vez um ofício inevitável, que mais cedo ou mais tarde cruzaria o caminho do múltiplo
artista Francisco Buarque de Hollanda.
Ligações a esta post:
Leia abaixo, o primeiro conto de Chico, "Ulisses".
* Texto e imagens publicadas inicialmente numa edição especial da extinta Revista Bravo! dedicada a Chico Buarque.
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