Polêmico nos palcos
Por Dirceu Alves Jr
Chico Buarque ao lado do elenco de Ópera do malandro em confraternização. |
A disparada de Chico Buarque ao sucesso e às polemicas
começou sem ele mesmo perceber. Diante do estouro de A Banda no II Festival de Música Popular Brasileira, na TV Record,
o compositor de 22 anos se viu alçado à condição de unanimidade nacional. Mais
de 50 mil compactos vendidos em poucos dias, um salário polpudo para comandar o
programa de televisão Pra ver a banda
passar, ao lado de Nara Leão, e uma agenda de shows por cidades que o
bem-nascido rapaz jamais havia situado no mapa. Recebido pelas autoridades, o
novo ídolo desfilava a céu aberto em carros do corpo de bombeiros e era alvo de
meninas desesperadas por um autógrafo ou, quem sabe, um contato mais próximo.
“Não lembro de ficar muito nervoso. Para mim aquilo era uma brincadeira”,
contou ele, que, em 1966, enchia o bolso de dinheiro.
Tamanho assédio incomodava o tímido Chico, que não via a
conexão de seu trabalho com toda essa popularidade, semelhante à dos ídolos da
Jovem Guarda. Casado com a atriz Marieta Severo, ele se mudou de São Paulo para
o Rio de Janeiro e passou a conviver com atores e diretores de cinema e teatro,
aproveitando para dar uma respirada da rotina de pop star compondo músicas para cinema, como Um chorinho, incluída no filme Garota
de Ipanema (1967), de Leon Hirszman. Testar linguagens não era novidade na
sua recente carreira. Em 1965, a convite do psicanalista Roberto Freire, criou
melodias para os versos do poeta João Cabral de Melo Neto na adaptação teatral
de Morte e vida Severina. Sob a
direção de Silnei Siqueira, o espetáculo venceu o IV Festival Internacional de
Teatro Universitário de Nancy, na França, rendeu disco ao vivo e composições
como Funeral de um lavrador. Tirando
proveito da juventude e da energia criativa, Chico deu um novo passo: escrever
a comédia musical Roda viva, em 1967,
a primeira de suas quatro peças e a única que partia de um argumento original.
Suas incursões seguintes: Calabar – o elogio da traição, criada em 1972 a
quatro mãos com o cineasta Ruy Guerra; Gota
d’água, escrita dois anos depois com o dramaturgo Paulo Pontes com base no
mito de Medeia; e Ópera do malandro
(1978), transposição de A ópera dos três
vinténs, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, para a Lapa carioca da década de
40. Essas três obras nasceram sob a inspiração de fragmentos históricos ou
ficções alheias. Em comum, todas representaram uma tentativa de retratar um
Brasil social ou politicamente oprimido perante o regime militar. As três
primeiras com mais força do que a última.
Fãs em transe
Imagem rara de encenação de Roda Viva |
Chico Buarque começou a escrever Roda viva em novembro de 1967. Parodiando o que via nos bastidores
da TV Record, o novato redigiu a história do cantor e compositor Benedito Silva
em apenas 25 dias. Aspirante ao sucesso do showbiz, o protagonista de Roda vida busca uma chance para seus
sambas na TV e, orientado por um empresário oportunista, é transformado em
ídolo instantâneo. Rebatizado de Ben Silver, o personagem conhece o estrelato e
sua vida vira um inferno. Qualquer semelhança seria mera coincidência? Chico
projetou uma preocupação com o futuro se a bola de neve continuasse crescendo.
“Escrevi para desanuviar”, justificou. A montagem dirigida por José Celso
Martinez Corrêa também ganhou a cena na urgência. Depois de três semanas de
ensaios, devidamente acompanhadas pelo autor, a peça estreou no Rio, em 15 de
janeiro de 1968. “A gente sabia que aquilo precisava chegar ao palco logo
porque os dias seguintes pareciam ameaçadores”, afirma Zé Celso, que vinha da
polêmica O rei da vela e criou uma
encenação que, a todo custo, provocava o espectador, radicalizando a estética
tropicalista. Heleno Prestes, Antonio Pedro, Marieta Severo e Paulo César
Pereio lideraram o elenco de 18 atores, que revelou André Valli, Zezé Motta e
Pedro Paulo Rangel. O coro de quatro integrantes imaginados por Chico passou a
ter 12 pessoas na visão de Zé Celso e, em uma das cenas, todos representavam
fãs em transe despedaçando um fígado de boi cru. Em outra, uma idealização de
Nossa Senhora rebolava de biquíni diante de uma câmera de TV.
Muito menos que isso já chocaria a classe média admiradora
do criador de A banda que lotava o
teatro. Bom rapaz, certamente Chico teria sido ludibriado e deturpado. A
unanimidade começou a ruir. Então crítico do Jornal do Brasil, o jornalista Yan Michalski escreveu: “Roda viva é um típico trabalho de um
jovem estreante que procura com hesitação, insegurança e ingenuidade descobrir
e dominar técnicas desconhecidas. Uma montagem convencional faria mais justiça
a Chico Buarque”. Era o que muitos pensavam e, segundo Zé Celso, amigos do
compositor, como o cronista Rubem Braga, envenenaram a relação dos dois,
dizendo que o fundador do Teatro Oficina estaria se aproveitando do músico. As
críticas ou supostas intrigas pouco significaram perto do que se veria na temporada
paulista, iniciada em julho do mesmo ano. No dia 18 daquele mês, logo depois de
encerrada a sessão no Teatro Ruth Escobar, 20 homens encapuzados e armados de
cassetetes destruíram cenários e figurinos, além de espancar integrantes da
produção e os atores, entre eles Marília Pêra, que substituiu Marieta Severo em
São Paulo. Quatro meses depois, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) voltaria
à ação em Porto Alegre. Homens invadiram o Teatro Leopoldina e alguns atores,
além de espancados e presos, foram vítimas de sequestro, sepultando a carreira
de Roda viva e azedando de vez as
relações de Chico com os militares. Mais de quatro décadas depois, Roda viva é a única obra renegada do
autor, que não autoriza a reedição em livro e tampouco novas montagens. José
Celso Martinez Corrêa lamenta esse repúdio, pois acha Roda viva uma obra-prima – “o melhor de Chico, o mais
contemporâneo” –, um texto visionário na época atual de culto às celebridades e
de farto investimento em musicais. “Chico ficou traumatizado com a repressão
política e também com a falta de compreensão de críticos como Barbara
Heliodora, Yan Michalski e Macksen Luiz”, diz o diretor.
Bete Faria em Calabar, 1973. |
O diretor Heron Coelho que tinha interesse em encenar a peça
respeitou o luto do escritor e passou adiante o projeto em 2012 já há muito
adiantado. Heron já assinou duas versões de obras de Chico: as montagens de Gota d’água – Breviário, em 2006, e Calabar
– Breviário, dois anos depois. O diretor reconhece que Calabar – o elogio da traição é o mais difícil dos textos de Chico
e encená-lo foi uma missão árdua que culminou no fracasso da proposta. “Chico e
Ruy estavam muito decididos a levar o discurso contra a ditadura e isso gerou
problemas de dramaturgia, com personagem e situações mal resolvidas”, completa
Coelho. Escrita há mais de 30 anos, entre agosto e setembro de 1972, a obra
remete a um período da história do Brasil do século 17: as invasões holandesas.
Domingos Fernandes Calabar era um mestiço que, em 1632, quando a luta
registrava uma espécie de empate, tomou partido dos holandeses. O “Elogio da
Traição” de fala o subtítulo da peça chamou a atenção do governo de Emílio
Garrastazu Médici, nessa altura de olho fixo em qualquer vírgula sobre Chico.
Em abril de 1973, Chico e Ruy Guerra amansaram os censores e procuraram o
diretor Fernando Peixoto para assinar a encenação, cuja produção de 30 mil
dólares, um dos valores mais altos da época, foi levantada pela dupla de atores
Fernando Torres e Fernanda Montenegro.
Entre setembro de outubro, uma equipe de 43 artistas, entre
38 atores e cinco músicos, encenou o texto e 12 canções, como “Bárbara”,
“Tatuagem”, “Não existe pecado ao sul do Equador” e “Fado tropical”, em uma
casa de Ipanema, no Rio de Janeiro. A atriz Betty Faria, que interpretava a
prostituta Ana de Amsterdã, conta que os ensaios eram bastante rigorosos. “Eu
tinha experiência em um teatro estilo Broadway, e o Peixoto aplicava uma
linguagem brasileira. Era aula de dança pela manhã, canto à tarde e texto à
noite e, no dia do ensaio geral, no Teatro João Caetano, estava tudo pronto e
lindo”, diz. Naquele dia fazia 36 anos da proibição de Calabar. “A peça foi impedida de estrear na véspera, mais de 60
pessoas ficaram desempregadas”, afirma a atriz. Sete anos mais tarde, em tempos
de abertura, Fernando Peixoto montou Calabar
em São Paulo. Os atores Renato Borghi, Marta Overbeck e Othon Bastos encenaram
o espetáculo, que se revelou datado e foi um fracasso de público.
Bibi Ferreira em Gota d'água |
Se Calabar
sucumbiu ao tempo, Gota d’água mantém
a atualidade. Veio do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho a ideia de adaptar a
tragédia grega Medeia para um
especial da Rede Globo exibido em 1972, com Fernanda Montenegro. Abatido por um
câncer, Vianninha não conseguiu levar seu argumento para o palco, e Chico e o
também dramaturgo Paulo Pontes encamparam a missão, em 1975, inserindo na
tragédia de Eurípides fortes relações com a realidade nacional. Em um conjunto
habitacional carioca, a Medeia brasileira virou Joana, mulher madura,
batalhadora e completamente apaixonada pelo pai de seus dois filhos, o jovem
compositor Jasão. Ambicioso e disposto a ouvir seus sambas nas rádios, ele se
envolve com Alma, filha de Creonte, empresário e dono das casas da comunidade.
Abandonada e cheia de amargura, Joana, no ápice trágico, mata suas crianças em
vingança ao ex-amado.
Escrita na forma de 4 mil versos, sem que isso fique
artificial ou inadequado na voz de tipos populares, Gota d’água foi um salto na atribulada carreira teatral de Chico.
Uma inspirada trilha formada por “Bem querer”, “Flor da idade”, “Basta um dia” e
o tema-título embala a trama de ciúme, relações de poder e dominação social,
representada com força poética e dramática. “É de longe sua obra mais bem
resolvida”, diz o crítico teatral Sábato Magaldi. Dirigida por Gianni Ratto, a
montagem estreou em dezembro de 1975 no Rio e transformou-se em clássico.
Grande parte desse êxito deve-se a célebre interpretação de Bibi Ferreira como
a protagonista, secundada por Roberto Bonfim, Oswaldo Loureiro e Bete Mendes,
além de outros 15 atores, sete músicos e dez bailarinos. A performance da atriz
tornou-se referência e, por isso, Joana até recentemente parecia personagem
exclusiva de Bibi. A paulista Georgette Fedel peitou o desafio em 2006 em Gota d’água – Breviário em uma encenação
compacta centrada nos conflitos sociais e elementos da cultura popular. “Meu
único mérito ali foi abrir a boca. Joana e Medeia representam sombras
tenebrosas que rondam nossa cabeça”, afirma a atriz. Quase simultaneamente, a
atriz Izabela Bicalho recriou Joana nos palcos cariocas. O diretor João Fonseca
idealizou uma montagem mais fiel ao original, com três horas, respeitando a
configuração do coro e puxando o gancho político para a exploração dos
personagens e a crise de moradia. Fã de Chico Buarque, ele identifica
características ímpares em Gota d’Água.
“Trata-se de um musical sem a agilidade típica do gênero, traz poucas canções e
os personagens têm páginas e páginas de texto”, compara.
Embalado pela repercussão de Gota d’água, Chico embarcou naquele que seria o mais popular de
seus musicais, Ópera do malandro.
Trata-se da terceira versão de uma mesma história. Baseada na Ópera dos mendigos (1728), do inglês
John Gay, e na Ópera dos três vinténs
(1928), dos alemães Bertolt Brecht e Kurt Weill, a obra teve a versão final
editada pelo diretor Luiz Antônio Martinez Corrêa com a colaboração de Marieta
Severo, Maurício Sette, Rita Murtinho e Carlos Gregório. A atriz Maria Alice
Vergueiro, que durante os ensaios hospedou-se na casa de Chico e Marieta,
testemunhou essas edições. “O Luiz Antônio não só cortou muito do texto como
mexia na estrutura e nas palavras. Eu mesma participei de algumas discussões de
mesa”, conta a artista que interpretou a cafetina Vitória. O resultado, lançado
no Teatro Ginástico, no Rio, em julho de 1978, trouxe a alma e a personalidade
de Chico Buarque. A Lapa carioca dos anos 40 é cenário de crime e prostituição,
representados pela figura do contraventor Dura, que explora suas meninas
alugando inclusive roupas, acessórios e maquiagens. Quer que sua filha
Teresinha se una a um sujeito rico e de prestígio. Como não administra o
coração da menina com o mesmo rigor dos negócios, Duran amarga o casamento de
Teresinha com Max Overseas, um malandro sedutor e tão desclassificado quanto
ele.
cartaz para o filme Ópera do malandro |
Sucesso imediato, a montagem protagonizada por Ary Fontoura
(Duran), Otávio Augusto (Max) e Marieta Severo (Teresinha) trazia um Chico leve
e bem-humorado. “A questão política ainda o movia, mas não com tanto peso como
nos outros textos e, assim, criou um malandro tipicamente brasileiro e músicas
com a carga dramática exata para um texto de comunicabilidade enorme”, analisa
o crítico carioca Macksen Luiz. Das 17 músicas, lançadas em disco em 1979, a
maioria se tornou clássicas em gravações independentes. “Geni e o Zepelim”, “O
meu amor”, “Folhetim” e “Pedaço de mim” estão entre elas. Uma versão
cinematográfica ganhou as telas em 1986 sob a direção de Ruy Guerra, com Chico
compondo novos temas, como “A volta do malandro”, “Último blues” e “Palavra de
mulher”. Em 2003, a dupla de diretores Claudio Botelho e Charles Möeller
estreou a sua versão para o musical e ganhou aplausos entusiasmados de 100 mil
expectadores no Rio de Janeiro, São Paulo e Portugal. Barbara Heliodora se
encantou com a encenação protagonizada por Alexandre Maestrini e Lucinha Lins.
“Era uma excepcional produção, onde todos cantavam e dançavam muito bem, como
deve ser em um musical”, diz Barbara que não é fã do Chico Buarque dramaturgo.
Botelho confirma que, na adaptação, limitou qualquer discurso político sob a
alegação de que “hoje ninguém quer mais saber de ditadura” e confessa que
gostaria muito de saber como seria o teatro de Chico Buarque atualmente. Nas
três décadas que sucederam Ópera do
malandro, Chico compôs algumas trilhas antológicas, como a de O grande circo místico (1983) e Cambaio (2001), ambas com Edu Lobo, mas
aposentou de vez o dramaturgo. Quase não é visto em salas de espetáculos e
dificilmente dá a honra de conferir adaptações de sua obra. “Acho que ele não
gosta mesmo de teatro”, arrisca Botelho. O fato é que as canções e as pecas
ganharam voz própria e maior eco que os enredos.
Ligações a esta post:
No canal do Letras no Youtube, todas as músicas citadas nesta post numa playlist exclusiva.
* Texto publicado inicialmente numa edição especial da extinta Revista Bravo! dedicada a Chico Buarque.
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