Passe de Letra*
Por Paulo Mendes Campos
Mário Filho conta no Romance do Futeboluma partida histórica na qual o poeta Augusto
Frederico Schmidt tomou parte, esforçadamente, mas em vão.
Em crônica antiga, Rubem Braga descreve a manhã de sol que
levou às areias da praia escritores de Copacabana e Ipanema, uns contra os
outros.
Também tomei parte no hilariante cotejo, no time de
Copacabana.
Aníbal Machado revelou-se um jogador impetuoso (foi extrema
do Clube Atlético Mineiro); Vinícius de Moraes, platônico de bola, sentiu logo
o menino e foi fazer companhia às moças; o atual Embaixador Lauro Escorel foi
um escolástico inútil; Di Cavalcanti, esfuziante goleiro, dizia sempre que as
bolas haviam passado por cima do inexistente travessão; o próprio Braga era um
zagueiro tontíssimo, porém valente.
O melhor jogador em campo, um médico de óculos, calvíssimo,
entrou de enxerto, sendo amigo de Aníbal; foi nele que o Braga acertou uma de
suas traulitadas, dizendo: “Para fazer gol aqui é preciso pisar sobre o meu
cadáver”.
O que foi feito.
Schmidt, que também jogou, de centroavante, proporcionou
este espetáculo inédito: no momento de dar a saída, quis fingir que passava
para a esquerda e passar para a direita; atrapalhou-se todo, seus pés não
atingiram a bola parada, desequilibrou-se e caiu sentado na areia.
Assim, o jogo foi interrompido por dez minutos depois do
apito inicial; o riso farto esgotou os contendores.
Mário de Andrade era um entusiasta do futebol. Queixava-se
dos trezentos e cinquenta compromissos que o impediam de ser assíduo aos
estádios. Em seus livros, há algumas referências ao futebol, sempre com
excelente conhecimento técnico. Mário tinha especial predileção pelo estilo do
famoso centromédio Brandão. Dizia, com sua inflexão enlevada: “É um
ma-ra-vi-lho-so bailarino!”.
Já conversei com Cyro dos Anjos e Rosário Fusco sobre
futebol. Curioso, os dois me apresentaram motivos idênticos para explicar a razão
pela qual não gostam do esporte: ressentimento.
O autor do Amanauense
Belmiro, em Montes Claros, era goleiro, desses que vão para o arco depois
que os outros meninos escolhem as demais posições da linha e da defesa; o autor
de Carta à noiva, nas peladas de
Cataguases, era também péssimo goleiro, apesar de sua ótima envergadura.
Entre os escritores, um dos maiores fãs foi José Lins do
Rego: uma vez, no campo do Vasco, durante um sururu, a Polícia Especial atirou
o corpulento romancista por cima do aramado.
Zé Lins costumava dizer, depois disso, que passou a ser o
homem mais valente do Rio de Janeiro, pois, no inquérito, figurou como agressor
da Polícia Especial.
O mais apaixonado e fiel é Otávio de Faria.
Este vai a quase todos os treinos do Fluminense.
Há uns dois anos, matando saudades do velho estádio,
compareci ao campo do Vasco para ver um jogo entre o Fluminense e o São Paulo:
encontrei na arquibancada o Otávio, no lado do sol, casaco e gravata, roendo as
unhas como sempre.
José Honório Rodrigues e Valdemar Cavalcanti são
rubro-negros inseparáveis. O primeiro é um alucinado. Depois de um jogo no
Maracanã, no qual o Botafogo levantara o campeonato carioca contra o Flamengo,
ele partiu para mim como se fosse me dar um soco na cara; a meio caminho, mudou
de ideia e me deu um abraço, dizendo-me que era a primeira vez que
cumprimentava um botafoguense depois dum campeonato perdido pelo Flamengo.
Também encontrava muito no Maracanã o bom e saudoso amigo
Cavalcanti Proença, que ia sempre para o meio da torcida popular, deliciando-se
com as expressões do povo.
Lúcio Rangel é um dos maiores conhecedores da história
futebolística do clube da Rua General Severiano. Como quase não frequenta as
partidas interestaduais e internacionais, o Lúcio explica: “Sabe duma coisa? Eu
não gosto de futebol, gosto é do Botafogo”.
Em Belo Horizonte, o manso e místico poeta Emílio Moura,
durante mais de vinte anos, compareceu aos estádios na companhia do manso e
místico poeta Cristiano Martins. O Emílio, atleticano, perdia a calma e
espinafrava acaloradamente o América; o manso Cristiano, americano, ouvia tudo
em olímpica serenidade. Acabada a partida, Emílio invejava a superioridade do
Cristiano. Vinte anos depois, num raro acesso verbal, o manso e místico
Cristiano revelou ao Emílio que, por dentro, ficava a zumbir de ódio e paixão.
* Ivan Cavalcanti Proença realizou uma das primeiras pesquisas acadêmicas sobre o futebol. Em 1981, ele defendeu no Programa de Pós-Graduação em Poética da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a tese Futebol e palavra. O trabalho, no mesmo ano, foi editado pela José Olympio com este mesmo título. "Passe de Letra", de Paulo Mendes Campos está neste livro. Mas, o próprio escritor teve organizado por Flávio Pinheiro O gol é necessário, livro de crônicas com mais de vinte títulos do gênero, como "O Botafogo e eu", "Adoradores da bola", "O gol é necessário", "Mané Garrincha", "Botafogo dos Botafogos" e "Salvo pelo Flamengo".
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