Os 150 anos de “Diário do subsolo” e um período decisivo na obra de Dostoiévski
por Alfredo Monte
Pouco depois de
completar 40 anos, Dostoiévski (nascido em 1821) viajou pela primeira vez pelo
continente europeu. A esse período correspondem certos títulos que terão decisivo
impacto sobre sua obra madura: um romance curto, Diário do subsolo (Zapiski iz
podpolya, 18641); um fragmento, O crocodilo (Krokodil,
1865); além do relato diretamente ligado à viagem, Notas de inverno sobre impressões de verão (Ziminie Zamietki o lietnikh vpyetchatleniiakh , 1863).
Ressalvadas as diferenças, é um “salto” análogo ao que representa na trajetória
de Machado de Assis a aparição das Memórias
póstumas de Brás Cubas e de Papéis
avulsos.
I
Diário do subsolo representou uma virada
definitiva2 na produção dostoievskiana e na prosa literária em geral
(pois sua influência tornou-se universal). Com muitas traduções (e soluções
diferentes para o título)3 aqui no Brasil, comento-o, neste meu texto,
utilizando a versão do poeta Oleg Almeida, dentro da política de “redenção”,
por assim dizer, da Martin Claret, após essa editora inundar o mercado com
escandalosos plágios assinados por tradutores-fantasmas (Pietro Nassetti, Jean
Melville etc).
Nervoso, atormentado
e desequilibrado (é a “natureza dos homens de agora”, como se afirma em Os Demônios, de 1872), o narrador de Diário do subsolo articula um discurso
infindável, um texto-performance (e ele mesmo se acha um tagarela) em que uma
tremenda autoconsciência (e consequente paralisia de ação) se defronta com o
que mais tarde Freud descobriria ser o inconsciente, o nosso “subsolo”. Mas não
se deve ignorar o lado concreto e urbano do termo, sinalizando uma moradia
apertada e condições materiais penosas. Nesse sentido, é curioso que o Oleg
Almeida, em sua Apresentação, afirme o seguinte: “...não há gênero mais
apropriado para tal exibição do que o diário escrito num canto escuro e
abafado, algures no úmido subsolo petersburguense, transformado pela imaginação
mórbida de seu inquilino num verdadeiro inferno. Inferno que existe tão só em
sua alma desnaturada”! Ora, o próprio tradutor evoca como substrato para a
composição do personagem a geração esmagada pelo arbítrio e autoritarismo da
era Nikolai I (1825-1855), que prendeu, desterrou e exilou inúmeros pensadores
e escritores, toda a voz da oposição. Então, por mais neurótico e suscetível
que seja o narrador, é temerário dizer que a sensação “infernal” seja apenas um
produto da sua imaginação mórbida.
A primeira e mais
famosa parte (e a mais “performática”), o presente do relato (com o narrador já
quarentão e misantropo), “O Subsolo”, é toda construída na forma de um discurso
a um só tempo egocêntrico e dilacerado, que simula dialogar com outra s pessoas,
as quais defenderiam a razão e a ciência. Falando do ponto de vista do subsolo
(ou subterrâneo, como também já foi traduzido), o narrador vai demolindo esse
“Palácio de Cristal” (outra referência que pode ser tomada no sentido simbólico
e no entanto bastante real)4: “Tentem lançar uma olhada na história
da humanidade: o que verão, hein? É majestosa? Talvez seja majestosa: quanto
valor tem, por exemplo, só o Colosso de Rodes!... É versicolor? Talvez seja
versicolor: quantos esforços são empenhados só em discriminar os trajes de gala
dos militares e civis de todos os povos e séculos, e, se forem inclusos os
trajes cotidianos, dá para quebrar a cabeça, nenhum historiador conseguirá. É
monótona? Talvez seja monótona: lutam e lutam, agora lutam e antes lutaram e
depois lutarão—concordem que isso é monótono demais. Numa palavra, tudo pode
ser dito a respeito da história mundial... Uma só coisa não pode ser dita, que
ela seja sensata.”
Após esse discurso
balbuciante e febril, entramos na narração propriamente dita, “A respeito da
neve molhada”, às vezes publicada separadamente de “O subsolo”. Como se fossem
textos estanques!
Nessa segunda
parte, temos a medida da genialidade de Dostoiévski como ficcionista, que
depois se espraiaria nos seus grandes romances (Crime e castigo, O jogador,
O idiota, O eterno marido, Os demônios,
O adolescente, Os irmãos Karamázov, numa sequência avassaladora). O narrador,
voltando à época dos seus 24 anos, mostra como foi arrastado a situações
degradantes e grotescas. Acompanhamos sua obsessão em esbarrar num oficial que
ele odeia de forma gratuita no meio da rua, situação que rende páginas
neurastênicas inesquecíveis.
Quando se pensa,
porém, que já se atingiu o ápice, há ainda a narração do jantar de despedida de
um ex-colega de escola que vale por uma aula de psicologia: nosso homem do
subsolo faz papel ridículo, mostra-se invejoso, ressentido, alterna complexo de
inferioridade e megalomania, e entretanto revela um impressionante capacidade
de se autodiagnosticar.
Um espetáculo
atordoante e praticamente inédito na literatura de ficção (mas que faria praça
a partir da penetração cada vez maior do gênio russo, principalmente após ser
“descoberto” pelos franceses). E ainda não acabou: temos os relacionamentos
exaltados com o criado, Apollon (“naqueles dias eu tinha tanta raiva de todos
que decidi, sabe-se lá por que motivo e com que intuito, castigar Apollon e
pagar seu salário com duas semanas de atraso. Havia bastante tempo, uns dois
anos, dispunha-me a fazê-lo, com o único fim de provar que não lhe cabia
tratar-me com essa altivez toda, e que, se eu quisesse, poderia deixar, a
qualquer momento, de pagar seu salário”), e com Lisa, uma prostituta: nos dois,
o Outro é como se fosse um instrumento autoinfligido de tortura e humilhação, e
também uma espécie de sentimento “encenado”, demonstrado teatralmente. O
narrador insinua que essa dramatização de sentimentos é uma maneira de inventar
para si uma vida, quando não se vive de fato (e nisso antecipa o universo de um
Fernando Pessoa, por exemplo): “Lisa adivinhara que o rasgo de minha paixão
era, notadamente, uma vingança, uma nova humilhação, e que ao meu ódio recente
e quase abstrato acabava de juntar-se meu ódio pessoal, proveniente da inveja
por ela... De resto, não vou afirmar que ela compreendia tudo com nitidez, no
entanto, teria plenamente compreendido que eu era um sujeito asqueroso e, o
essencial, que não era capaz de amá-la... Aliás, não a odiava tanto assim,
quando percorria o quarto e vinha espiá-la pela fresta do tabique. Sentia
apenas um peso insuportável por ela estar ali. Desejava que ela sumisse. Queria
sossego, queria ficar sozinho no meu subsolo. Por falta de hábito, essa vida
viva me oprimia tanto que até respirar era difícil”.
Como se pode ver,
se há um livro que faz jus ao seu título é esse. E não parece haver nenhuma
esperança de entrar ar, de arejamento, de um respirar mais livremente. É o que
alguns chamam de angústia. O pior é que outros chamam de existência.
II
Quem não leu
Dostoiévski talvez tenha da sua obra uma ideia sombria, imaginando um universo
atormentado, sinistro, desprovido de humor. Isso não é totalmente verdade.
Mesmo nos seus textos mais “pesados”, ele sempre se valeu do humor e da ironia.
Outro aspecto pouco
realçado é a sua prodigiosa capacidade intelectual, que muitas vezes recorre
justamente ao humor e a ironia. Por isso, considero emblemáticas tanto a
inacabada O crocodilo quanto sua
crônica da viagem pela Europa, Notas de inverno sobre impressões de verão,
que são uma complementação perfeita ao ferozmente “sombrio” e “pesado” Diário do subsolo, textos onde
prevalecem o lado satírico e o lado intelectual de um autor que representa para
a ficção o que Shakespeare é para o teatro.
O narrador de O crocodilo conta como Ivan Matviétch,
seu “culto amigo, colega e parente em grau afastado”5 foi engolido
por um crocodilo em exposição. Matviétch permanece vivo no interior do
“mamífero” (sic) e se serve de sua insólita situação para tiranizar o amigo,
que acaba deixando escapar seu ódio por ele, sentimento que não se estende, bem
entendido, à esposa do “engolido”, muito pelo contrário.
Kafka poderia ter
imaginado uma situação como essa, inclusive por causa do “acomodamento” no
cotidiano que se faz a partir dela: Matviétch chega a planejar toda uma
existência feliz dentro do crocodilo! Mas seria um Kafka tomado, talvez, pelo
espírito do Machado de Assis que criou textos como O segredo do bonzo ou A
sereníssima república, o qual assinaria sem reservas passagens tais como
aquela em que o personagem explica como pode acomodar-se muito bem dentro do
crocodilo (que é oco): “...semelhante disposição oca do crocodilo está
plenamente de acordo com as ciências naturais... Qual a propriedade fundamental
do crocodilo? A resposta é clara: engolir gente. Como conseguir, então, pela
disposição do crocodilo, que ele engula gente? A resposta é mais clara ainda:
fazendo-o oco. Já está muito resolvido pela física que a natureza não tolera o
vazio. De acordo com isto, também as entranhas do crocodilo devem ser
justamente vazias, para não tolerar o vazio; por conseguinte, devem
incessantemente engolir e encher-se de tudo o que esteja à mão. E eis o único
motivo plausível por que todos os crocodilos engolem a nossa espécie. Não foi o
que sucedeu, porém, na disposição do homem: quanto mais oca é uma cabeça
humana, tanto menos ela sente ânsia de se encher e esta é a única exceção à
regra geral”.
Notas de inverno sobre impressões de verão,
por sua vez, utiliza a viagem pelo continente como pretexto para falar da
Rússia, mais precisamente do complexo de inferioridade e da dependência
cultural de certos estratos da sociedade russa com relação ao resto da Europa.
Sempre criticado
por suas teorias messiânicas sobre o povo russo, é espantoso ver a verve e a
inteligência com que Dostoiévski defende seus pontos de vista. Mesmo para quem
não tiver muito interesse pela reflexão sobre a problemática identidade
nacional russa (embora nós tenhamos problemática similar e ainda mal resolvida)
há uma cabal e fascinante demonstração de consciência do autor do ato da
escrita, desmentindo mais um preconceito muito divulgado: de que ele era um
escritor “tomado”, tumultuoso, irregular. O tempo todo ele está consciente da
presença do leitor, de que o seu texto satisfaz/contraria expectativas e
posturas ideológicas:
“É retrógrado! — há de gritar alguém, depois
de ler isto. — Defender as vergastas! (Por Deus, alguém há de concluir do que
escrevi que eu defendo as vergastas).
— Mas veja do que o
senhor está falando — dirá um outro. — O senhor pretendia escrever sobre Paris
e agora trata de vergastas. O que Paris tem a ver com isto?
— Como
assim?—acrescentará um terceiro. — O senhor escreve sobre o que ouviu
recentemente, e a sua viagem deu-se no verão. Como podia pensar em tudo isto
ainda no trem?”
Não se pense, com
essas minhas observações, que se trate de um Dostoiévski light. O leitor encontrará observações mortíferas sobre a
degradação que a Revolução Industrial trouxe para o ser humano e para as
cidades. Ou observações como a seguinte, a respeito da Igreja Anglicana: “É a
religião dos ricos e já completamente sem máscara. Pelo menos é racional e sem
embuste. Estes professores de religião, convictos até o embotamento, têm uma
espécie de divertimento: ser missionários. Percorrem todo o globo terrestre,
penetram nas profundezas da África, a fim de converter um selvagem, e esquecem
os milhões de selvagens em Londres, porque estes não têm com que lhes pagar”.
No fundo, não está
muito longe do narrador que nos fala do subsolo, quando interpela seus supostos
interlocutores: “Esperem! Deixem-me tomar fôlego! Acaso os senhores estão
pensando que quero fazê-los rir?” Ou ainda: “Agora desejo lhes
contar, queiram ou não ouvir, por que não consegui me tornar nem ao menos um
inseto”. Isso já é tanto Beckett (o que escreveu “Tudo já se mescla. Coisas e
quimeras. Como sempre. Mescla-se e anula-se. Apesar das precauções. Se ao menos
ela pudesse ser somente sombra. Sombra sem mescla... No manicômio do crânio e
em nenhuma outra parte… Como tudo seria simples então. Se tudo pudesse ser
somente sombra. Nem ser nem ter sido nem poder ser… de tanto fiasco a loucura
se imiscui. de tantos escombros”6) quanto Pessoa.
Notas:
1 Portanto, completando neste 2014, 150 anos da
publicação original.
2 Embora ele tivesse já escrito textos notáveis
como O Duplo (Dvoinik, 1846), que
aliás antecipa vários procedimentos e tensões de Diário do Subsolo, e A aldeia de Stiepantchikov e seus habitantes
(Selo Stepanchikovo i ego obitateli, 1859).
3 A voz
subterrânea, Memórias do subsolo,
Notas do subsolo, Notas do subterrâneo, Memórias do subterrâneo, em traduções
assinadas por nomes como Boris Schnaiderman, Natália Nunes, Moacir Werneck de
Castro, Maria Aparecida Botelho Pereira Soares, Ruth Guimarães, entre outros.
4 É preciso não esquecer também que o sempre
polemista Dostoiévski escreveu essa primeira parte como uma resposta a uma
narrativa famosa na época, Que
fazer? (1863), de Nikolai G. Tchernichévski, uma espécie de romance
programático do socialismo utópico. A imagem do Palácio de Cristal,
aludida pelos dois textos, deriva-se do edifício de vidro construído em Londres
para uma Exposição Internacional, representando o Progresso alcançado pela
Civilização. Essa imagem do Palácio de Cristal foi a pedra de toque da análise
do texto de Dostoiévski por Marshall Berman no clássico Tudo o que é sólido desmancha no ar.
5 Em todas as citações de O crocodilo e Notas de
inverno sobre impressões de verão valho-me da versão de Boris Schnaiderman
publicada pela editora 34.
6 Trecho de Mal
visto mal dito, em tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro (ed. Martins
Fontes).
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