O homem duplicado, de Denis Villeneuve
Por Pedro Fernandes
Aí está mais uma adaptação de um texto de José Saramago para
o cinema; trabalho que estivemos acompanhando desde o anúncio de que alguém havia
decidido fazer essa leitura visual. As razões para isso são um tanto óbvias – para
além do interesse pessoal como leitor da obra do escritor português, há sempre
a curiosidade em saber de que técnicas terá se beneficiado ou de que maneira o diretor terá construído essa
obra outra tendo por base uma literatura como a de Saramago. Das cinco
adaptações até agora construídas, confesso, apenas a de Ensaio sobre a cegueira alcança o limite de ser uma obra a altura
do romance.
Isso significa dizer que não estive à vontade com a leitura
de Denis Villeneuve – principalmente de sua não capacidade de explorar mais dos
atores em geral; e olha que tem diante de si um grupo significativo de nomes.
Jake Gyllenhaal, por exemplo, mesmo estando bem em cena, poderia estar melhor.
Mas, não apenas isso, é pífia a trama amorosa desenvolvida pelo diretor e é
pífia também a metáfora visual da aranha e de sua teia – a abrir, amalgamar e
fechar a narrativa – associada a uma ideia machista sobre a mulher enquanto a destruidora de lares.
Aqui, Villeneuve faz uma leitura apressada acerca do papel brilhantemente construído
por José Saramago para as mulheres (também neste O homem duplicado), sempre colocadas nos seus romances como não-opositoras do macho e nem do mal da humanidade. Apesar
de compreender que todas as adaptações são obras que têm vida própria haja
vista sua própria conformação narrativa, esta liberdade autoral do diretor fere
um princípio em torno do qual se constitui a própria obra saramaguiana. Pode ser que o epíteto livre o exume de alguma culpa dessa natureza.
Fora esse deslize necessário – porque, convenhamos, nem tudo é perfeito e,
nesse caso, todo leitor elege para si um ponto a partir do qual desenvolverá
sua própria linha narrativa, isto é, num caso como este, o diretor precisa
eleger uma possibilidade de construção de sua obra – o que adquire forma
convincente é a especulação do filme em torno do tema da identidade individual.
Conforme observamos aqui numa ocasião de apresentação do romance de José Saramago,
não estamos, apesar da coincidência em todos os aspectos entre Tertuliano e
Daniel (no filme, Adam e Daniel) diante de uma narrativa de ficção científica,
cuja questão tratada, por exemplo, seja a clonagem ou a criação de robôs à imagem
e semelhança do homem. Villeneuve compreende bem isso e consegue reproduzir, seja
pela imagem, seja pela atuação, seja pela disposição dos personagens em cena, toda
atmosfera de anomia construída pelo narrador saramaguiano – a perda constante
em toda obra do escritor português que caia nas malhas da sétima arte.
A perda do narrador saramaguiano na narrativa cinematográfica
deve ser, certamente, o responsável pelo maior desafio de alguém que se
aventura a filmar qualquer um dos romances do escritor; apesar de que, essa perda pode servir como espaço
para a construção criativa do diretor. Agora, é necessário que ele não caia no devaneio
gratuito. Nesse aspecto, todas as adaptações têm sido felizes, mesmo a de Villeneuve
que escolhe aprofundar os efeitos da crise identitária através do vazio
existencial das relações, a rotativa das rotinas (caso de Adam e sua namorada),
do distanciamento entre os sujeitos (caso de Daniel e a esposa), do sufocamento
do eu pelo outro (seja a constante do trabalho, seja o outro-sujeito).
Mais que uma doença do eu, Villeneuve compreende que todo o
social é corroído por uma anomia: o vazio existencial das relações, a rotativa
das rotinas, o distanciamento entre os sujeitos, o sufocamento do sujeito, tudo
o que internalizado no drama interno das personagens é também externalizado na
figura da cidade, um espaço suspenso como se para além da realidade, no sentido
de universalização da situação apresentada na narrativa, e, ao mesmo tempo, tão
próximo dos modelos de cidade que temos em mente ou nele vivemos.
Essa relação entre espaço e sujeito é uma dialética muito
particular construída pelo filme: o homem é objetificado pelo espaço e este é
subjetivado por aquele. Tanto que os espaços internos estão sempre à penumbra
como se engolissem as pessoas e os espaços externos são sempre muito amplos
como se reduzissem as pessoas. Noutras vezes, a intensificação da metáfora visual
da teia da aranha, sugere a cidade como um corpo cujas veias são apresentadas
sempre em estágio de entupimento.
Em O homem duplicado
do diretor canadense o espaço é um todo orgânico; a cidade é também um corpo doente,
desidentificado, porque é um além e em simultâneo é o comum. Essa relação entre
o interno e o externo é muito bem feita porque desenvolve um diálogo rico
com a obra matriz, isto é, não apenas com o romance do qual parte a narrativa cinematográfica
como da conformação criada por Saramago a sugerir essa degradação social do
homem contemporâneo.
Por essas minúcias e, por certo zelo que o diretor tem com a
obra saramaguiana, é válido olhar este filme; o mais válido, entretanto, é a
leitura do romance. Sim, lá está o doce bailado do narrador, sua fineza e argúcia
com que constrói e depura as ações e os sujeitos. Ao menos, contorna-se, com
isso, toda sisudez das personagens que no filme, chega a ser um incômodo ao telespectador.
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