O futebol-arte e a rivalidade na música de Chico Buarque de Holanda

Por Valdomiro Neto

Chico Buarque em jogo amistoso entre artistas realizado no Maracanã durante a década de 1980.

Vou me apropriar da frase de Martinho da Vila antes de cantar “Valsinha” em um show comemorativo para dizer que “Chico Buarque de Holanda é um dos meus compositores prediletos”. E nos seus mais de 40 anos de carreira, que se estendem até hoje para nossa felicidade, o futebol teve presença marcante. Em várias entrevistas, em momentos distintos, Chico disse que quando jovem queria ser jogador de futebol (que bom para nós, fãs, que acabou enveredando pelo caminho da música). A nossa “única unanimidade nacional”, nas palavras de Nelson Rodrigues, tem como ídolo o ex-ponta direita Pagão, que fez fama com as camisas de Santos e São Paulo. Em um documentário que faz parte de uma série que chegou a ser veiculada pela TV Bandeirantes, Chico diz que quando jogava imitava os trejeitos do ex-jogador, como as mãos meio moles e os “dribles aéreos”.

Dono do Politheama, time cujo hino – obviamente composto por ele – diz cultivar “a fama de não perder”, Chico registrou inúmeras vezes a paixão pelo futebol em versos. Há menções sutis e grandiloquentes, como em “Biscate”, quando na frenética troca de farpas de um casal o homem ralha com a mulher: “Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate”. Ou na recente “Sem você 2″ (uma continuação na belíssima canção de Vinicius), incluída na turnê de 2002, o poeta afirma que a ausência da amada o permite até “ver o futebol e ir ao museu, ou não!”. E ainda há “Com açúcar com afeto”, música feita declaradamente para Nara Leão, em que a mulher, desta vez, é quem resmunga à espera do marido: “No caminho da oficina há um bar em cada esquina pra você comemorar, sei lá o quê! Sei que alguém vai sentar junto, você vai puxar assunto discutindo futebol”.

Nessa linha, Tom Jobim também citou o futebol como a velha colcha de retalhos que envolve uma relação amorosa. Isso acontece na belíssima “Falando de amor”. Eis o trecho: “quando passas tão bonita nessa rua banhada de sol. Minha alma segue aflita eu me esqueço até do futebol”. Reparem que em todos os casos citados, tanto nos buarqueanos como no de Tom (o maestro soberano de Chico), temos o futebol como a distração masculina a interferir na relação com namorada ou esposa. Hoje isso se perdeu um pouco com a maior presença feminina em estádios e na rotina da bola. As canções também são um registro do seu tempo.

Chico cita o Maracanã, templo sagrado do nosso futebol, na engajada “Pelas tabelas”, diretamente ligada ao movimento das Diretas Já, no início dos anos 80: “Minha cabeça rolando no Maracanã”. À parte essas e outras múltiplas referências ao ludopédio (na infância Chico denominou assim um jogo que criou e que significa “jogo com os pés”), duas obras do seu cancioneiro tem o futebol como tema principal e é delas que quero falar mais detidamente aqui. E tocam em temas bem distintos e que estão sempre na ordem do dia nos debates em botequins, entre amigos ou na mídia: o futebol-arte e a rivalidade clubística.

A primeira delas chama-se simplesmente “O futebol”, sem rodeios. Nela, explicita a visão artística que tem do jogo e me faz até lembrar do livro do crítico literário e músico José Miguel Wisnick, “Veneno-remédio”, que lembra do cineasta Pier Paolo Pasolini falando que nós praticamos futebol poesia e o europeu o futebol prosa. Na letra, Chico faz paralelos com a pintura e a própria música: “para aplicar uma firula exata, que pintor? Para emplacar em que pinacoteca, nega? Pintura mais fundamental que um chute a gol. Com precisão de flecha e folha seca!”. Faz menções ao supracitado Pagão no fim ao musicar a tabela com outros gênios: “Para Didi, para Mané, para Pagão, para Pelé e Canhoteiro”. E é possível até entrever uma certa frustração por não ter sido jogador quando diz, logo no começo: “Para estufar esse filó como eu sonhei, só se eu fosse o rei!”. Abaixo, Chico canta "O futebol" durante a turnê do CD Carioca, em 2006:




A outra canção, bem mais antiga, pouco tempo depois do nascimento da sua primeira filha, Silvia Buarque, fruto do casamento com a atriz Marieta Severo, chama-se “Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou receita para virar casaca de neném”. É baseada em fato real. O compositor Ciro Monteiro, torcedor flamenguista, enviou de presente para a primogênita do amigo uma camisa do Flamengo. Chico, por sua vez, fã do Fluminense, deu a resposta musicada. Primeiro exalta o companheiro com palavras gentis, agradece a camisa e logo adverte que “pano rubro-negro é presente de grego, não de bom irmão”. Com a proverbial capacidade lúdica de brincar com as palavras e inventar frases, Chico vai então desconstruindo a camisa do Flamengo até que ela se transforme em tricolor. Genial! E assim encerra a questão:

“Amei o teu conselho
Amei o teu vermelho
Que é de tanto ardor
Mas quis o verde
Que te quero verde
É bom pra quem vai ter
De ser bom sofredor
Pintei de branco o teu preto
Ficando completo
O jogo da cor
Virei-lhe o listrado do peito
E nasceu desse jeito
Uma outra tricolor”

Abaixo, reprodução da canção, constante do disco Chico Buarque n. 4, lançado em 1970.




Ligações a esta post
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* O texto de Valdomiro Neto foi publicado inicialmente em LANCE!NET e foi cedido para publicação neste espaço por ocasião das celebrações pelos 70 anos de Chico Buarque. As únicas intervenções feitas no texto original foram alguma eventual correção gramatical e a atualização de algumas datas. 


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