Nenhuma vida, de Urbano Tavares Rodrigues
Por Pedro Belo Clara
O escritor Urbano Tavares Rodrigues |
Nesta
nova edição, retoma-se a debate sobre os trabalhos do autor referido em
epígrafe com o intuito de dar a conhecer aquele que foi o seu derradeiro
romance, concluído apenas poucas semanas antes da sua morte, em Agosto de 2013.
Editado
em Outubro passado, e com a particularidade de possuir um fac-símile
fragmentado do original escrito pela mão de Urbano Tavares Rodrigues, Nenhuma
vida é, nas palavras do próprio autor, um “romance breve” que, em quatorze capítulos,
consegue ser transversal às principais ideias e temas defendidos por Urbano ao
longo da sua existência terrena. Como obra, digamos, de “fim de vida”, e
conhecendo o autor como a grande maioria do público português o conheceu, nada
mais para além disso se poderia imaginar. Embora, sublinhe-se, em Urbano coabitavam
pacificamente as linhas, firmemente desenhadas, de um pensamento nítido e
interventivo com a gentil brandura de um trato - aparentemente - simples. Tal
feito, admitir-se-á, era uma das características mais distintas deste autor que
meritoriamente conquistou um lugar de proa nas letras lusas do século XX.
Antes
que o leitor possa apropriadamente aventurar-se nas linhas deste romance,
deparar-se-á com um brevíssimo prefácio - belo e de certo modo comovente -
assinado pelo próprio Urbano, onde se adivinham as certezas que o autor detinha
quanto ao facto de a presente obra, muito naturalmente, concretizar o desfecho de
toda a sua vastíssima e bem sucedida carreira. Prestes a passar a fronteira dos
noventa anos de idade, Urbano admitiu ter escrito este livro simplesmente por “amor à palavra e à invenção verbal” que pautou, de grosso modo, o seu legado
literário. Não obstante, soube de forma vincada impregná-lo com a essência de
(quase) sempre: as dúbias, complexas, árduas e praticamente eternas contendas
de cariz social e político. Embora tivesse consciência de que o seu tempo se
havia consumado, muito curiosamente declara que a íntima satisfação já só se
saciava no mero sonho prometido pelo impulso alvorecido dos movimentos socialmente
interventivos. A restante conclusão será transcrita para que o caríssimo leitor
possa por seus próprios olhos (e coração) absorver um pouco da derradeira magia
que Urbano, com gestos de alquímico literário, sobre todos polvilhou:
“Daqui me vou despedindo, pouco a pouco,
lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água
fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à
beleza das mulheres.
Um cravo vermelho e a bandeira do meu Partido
hão-de acompanhar-me e tudo será luz.”
O
romance em si, que como sabemos não esquece as habituais lutas de classes que
coloriram o universo temático de Urbano Tavares Rodrigues, atravessa décadas e
gerações. Como tal, nele se retratam, ainda que superficialmente, diversos
estados e fases que o próprio país atravessou. Sob uma certa óptica, tendo em
conta a dimensão da narrativa, poder-se-á dizer que Urbano moldou este trabalho
à imagem de um “épico breve”. É claro que, se desenvolvido, teria certamente
merecido a primeira parte desse epíteto. Mas a constante sumarização dos tempos
da obra retiram muito naturalmente margem de progresso ou de substancialização
de conteúdo. Ainda assim, por nenhuma razão se dirá que a obra é “fogo-fátuo”,
já que o resultado global, aprecie-se ou não certas escolhas e direcções
tomadas, é deveras agradável. Urbano trabalhou cada fímbria deste tecido
literário com a mestria de sempre, ainda que de um modo mais aligeirado (isto
é, simples e corrente) do que era seu apanágio. Em acréscimo, pode muito bem
ter fundado ou, pelo melhor, dado força e ímpeto a um género de escrita com a
sua quota parte de interesse, o mesmo que anteriormente nomeámos.
Mas
retornemos à história propriamente dita. Ainda que a personagem dita central
seja Tiago Manuel, “figura lendária” que Urbano eleva à categoria de “herói e
defensor dos maiorais interesses do povo”, o romance inicia-se com a história
de seus pais. Desde logo, os ingredientes essenciais se reúnem: Lela, sua mãe,
filha única de Alcides Proença (um abastado proprietário alentejano, “magnânimo
na crueldade”), e José Pedro, seu pai, à época um humilde trabalhador na
propriedade de Alcides. Acontece que, como em tantos outros casos, ambos se
apaixonam. Entretanto, com o estoirar da Revolução dos Cravos em Portugal, o
fermentar da ira proletária culmina no mais esperado (e violento) dos
desfechos: os empregados de Alcides pegam em armas e tentam expulsá-lo da
propriedade. O assalto final termina com a inevitável morte do tirano senhor,
sem que José Pedro, por óbvias razões, dispare um único tiro.
A
bem da verdade, importa referir que em diversos pontos o romance quase que se
consideraria histórico, pois a relevância dos acontecimentos e o relato dos
mesmos cola-se com perfeição pouco dissimulada à memória que muitos portugueses
ainda terão da longínqua década de setenta. Mas como o tempo da narrativa se
condensa e acelera, de pronto o leitor se depara com o tempo das políticas que
fomentaram a reforma agrária no país ou com a época da migração de diversas
famílias alentejanas (e não só) até Lisboa e, posteriormente, até outras
cidades europeias, onde Paris ganhava claramente um lugar de destaque.
Após
cumprirem a extenuante jornada que fora comum a muitos casais, Lela e José
Pedro são abençoados com o nascimento de um filho, a fulcral personagem de toda
a narrativa. Passada a sua infância, fora do país e sem sobressaltos de maior
(mas onde o carácter invariavelmente principia o seu moldar), já crescido e
feito homem Tiago Manuel sai de casa de seus pais e, por si próprio, empreende
um conjunto sem fim de deambulações, desde as Américas até ao Extremo-Oriente,
nunca sem deixar, em cada aeroporto ou cama descomposta, um bela mulher em
lágrimas.
Talvez se considere que, em meio a tanta vida vivida e despida,
“nenhuma vida” terá sido na realidade vivida. No entanto, será através do
acompanhamento do seu percurso que o estimado leitor se deparará com outros
fenómenos sociais de verídico registo, nomeadamente o famigerado movimento dos
“indignados” (2011), que um pouco por toda a Europa se fez sentir. Embora tenha
tomado partido nos tumultos de Paris (provavelmente evocando aqueles que em
2009 se sucederam), somente quando retorna a uma Lisboa prostrada nas “garras”
do Fundo Monetário Internacional é que Tiago Manuel decide justificar o seu
íntimo impulso interventivo. Assim, abraça a causa política e a luta social
que, censurável para alguns, se assume em contornos não propriamente pacíficos.
Num desses episódios, por exemplo, humilha fisicamente a personagem que se
inspira no anterior ministro das Finanças português, aquele que tanto azedume
instigou na consideração da maioria dos portugueses: Vítor Gaspar. Embora no
romance adquira o nome de Vítor Melchior, a referência é óbvia. Mais tarde, em
Berlim, ultrapassando uma dolorosa tragédia pessoal, Tiago Manuel, por esta
altura um autêntico “anjo devastador”, conhece um outro palco de destaque.
A
descrição é translúcida e, de certo modo, crua em sua essência: “de pistola em
punho a ceifar sem contemplações” uns ditos “fascistas” que se opunham a uma
suposta crise de escassez. Nessa cidade conhecerá Heloísa, personagem que de um
frémito extasiante o conquista para tempos depois sucumbir às mãos irónicas do
cruel destino. Também nesse instante o romance conhecerá o seu desfecho, num
tempo, diga-se, de concepção meramente profética, já que os episódios agora
relatados remetem-nos para um hipotético futuro próximo (destituição de Angela
Merkl e do seu governo e tomada de posse de uma facção esquerdista alemã de
intenções progressistas).
Urbano
caracteriza bem este trabalho quando o considerou “um texto algumas vezes duro
e agressivo, mas onde também têm cabimento a ternura e o amor, que são o
esplendor da vida”. Na verdade, em Nenhuma vida, como condimento adicional,
Urbano explora as “valências de Eros” como poucas vezes o fez. Em todo o caso,
sobressai da imagem final do romance a ideia que a terrena existência não passa
de uma confusa ilusão, plena de dor e de prazer, onde a efemeridade de tudo só
magoa aquele que a vive. Talvez por isso, em seu instante derradeiro Tiago
consegue obter uma certa dose de serenidade (não seria toda a fúria um íntimo
apelo ao amor?), ainda que nenhuma certeza tivesse quanto àquilo que para si se
seguiria. Mas, transcendentalismos à parte, emerge deste trabalho uma imagem e
direcção política que Urbano pareceu querer confidenciar nos pensamentos da sua
personagem principal: “uma sociedade socialista (…) aberta a todas as crenças
religiosas, com uma ampla margem de tolerância, e até de respeito, em mínima
escala, pela iniciativa privada. Assim seja! Assim será”.
Pouco depois, num
misto de crítica subtil, invoca a figura de Mário Soares, histórico político
português, antigo Primeiro-Ministro e Presidente da República, e dele faz o
implementador (não obstante os seus quase noventa anos de idade) de um regime
europeu de «pequenos estados de economia mista». Como se vê, Urbano tentaria
formular em sua história o ideal mais profundo que o terá habitado, na esperança
(quem o sabe?) que o mesmo pudesse servir de solução política efectiva.
Ademais, deixa-nos com uma personagem de traços bem vincados que à galeria de
“herói” é subtilmente elevado, numa tentativa de solidificar o símbolo de
resistência e não-conformismo que Tiago Manuel (uma versão invertida do
pseudónimo literário de Álvaro Cunhal, histórico dirigente do Partido Comunista
Português, cujo recurso somente o louva e homenageia) encarna e, assim se
espera, deverá perpetuar.
Considerando
todos os aspectos, literário e político, o trabalho consegue transmitir aquilo
que considera ser crucial e, por esse motivo, dir-se-á cumprida a sua maioral
intenção. Em todo o caso, o simples facto de se poder saborear tão levemente e
de modo consolidado a última obra de um escritor tão talentoso e bem sucedido
quanto aquele que Urbano Tavares Rodrigues foi, será motivo de sobra para
elevar este romance a uma categoria de leitura bem apetecível. Emergiria um
certo conforto em todo o autor que de antemão soubesse encerrada a sua passagem terrena com um
trabalho assim: breve, pungente e a seu modo lustroso. Esteja onde estiver, por
certo Urbano não poderia ter desejado um desfecho melhor.
“(...) soluçou, arrepelou-se, cravou as unhas
na face, e deixou por fim o cemitério com a fúria no rosto, pronto a fazer ir
pelos ares toda a canalha no poder, a Coroa, a Igreja e os seus sicários. Não o conseguiu completamente, mas fez
estragos incalculáveis. Tornou-se o maldito, o perseguido, que a corja
tentava caçar como uma fera à solta. E Tiago Manuel escapava-lhes sempre.”
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