Nebraska, de Alexander Payne

Por Pedro Fernandes



Nebraska bebe na fonte movie roads. A persistência de Woody com a ideia de que ganhou um milhão de dólares é o motivo e o impulso para a viagem a Lincoln, em Nebraska, para o resgate do prêmio. Uma fixação que aos leitores de literatura só o farão lembrar do Dom Quixote, de Cervantes – ainda mais porque essa personagem é um velho, de passado incógnito (ao menos para os filhos) e tido pela família com alguém que já bate bem das ideias.

Se um dos filhos tem interesse de apressar a internação do pai num asilo, o outro, de condição desajeitada e em profunda crise no relacionamento, decide, qual Sancho, fazer as vezes de guia no resgate desse suposto um milhão. Talvez movido pelo impulso de sair da mesmice onde está encerrado, satisfazer os gostos do pai como se a realização de um último desejo dele, ou mesmo, como o próprio David a certa altura da viagem discorre, tentar aproximar-se mais do pai, este que, à medida em que se desenvolve o itinerário ficamos sabedores, não teve uma relação muito profícua com a família; foi o tipo de pai que nunca deixou faltar nada em casa, mas, por limitação de personalidade e geração, não teve a proximidade requerida das gerações mais novas.

Esse embate de gerações, a formação cultural de cada uma delas – a do pai, baseada no esforço e na persistência em construir algum patrimônio, a do filho no consumo (basta ver David como um vendedor de eletrônicos) – está em toda narrativa. E, de igual maneira, pelo embate são as próprias personagens que se revelam umas para as outras e delas para si mesmas. Isto é, a viagem é uma metáfora para as descobertas do eu e do outro numa condição em que ambos os polos estão destituídos de organização afetiva. E esta não será uma viagem apenas entre David e Woody; é entre eles e toda a família. É ainda um retorno às origens dos pais para uma percepção mais claras sobre quem são e por que são dessa e não de outra maneira.

De igual maneira, notem, a recompensa financeira é tal como a viagem uma metáfora sobre outra riqueza encoberta pela poeira ou a amargura do tempo: a do amor, da união e da aceitabilidade sobre as diferenças de cada um. Razão última sempre esquecida quando o assunto é o poder capital – esse miasma esmagador das relações autênticas conforme denuncia, por exemplo, o extenso jogo de interesses dos moradores da cidade natal de Woody por galgar uma parte no suposto prêmio de Nebraska.

Rodado em preto-e-branco e com enquadramentos fotográficos belíssimos; com texto coerente e robusto que mistura certas lufadas de drama e se amplia com o tom do anedótico – marcado sobretudo pela presença incontornável de June Squibb, a companheira de Woody, uma mulher muito sincera e dotada de um ceticismo sobre tudo que diz e já sem paciência com o companheiro. Essas duas características – sem deixar de frisar o desfecho à moda dos filmes dessa natureza produzidos pela cinematografia estadunidense – são motivos para fazer de Nebraska um filme cativante; tanto que, mesmo o desfecho não nos parecerá piegas e sim apenas necessário.

Cativante e delicado. Engraçado e melancólico. Nesse sentido, o tom da imagem escolhido por Payne ganha uma grandiosa dimensão; porque, afinal, saberemos que Nebraska é um filme sobre a brevidade da vida e o que pouco fazemos nesse intervalo de passagem nem terá sentido se não realizado com a perspicácia da eternidade – ainda que esta seja somente um traço entre uma geração que finda e outra que principia com jeito e maneiras diversos da geração anterior. Há nisso uma leitura sensível sobre questões muito caras à existência desde sempre – o que é a vida, quem somos ou qual o sentido de existirmos ou unirmos nessa trajetória a uns e outros não.


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