Helena e os entremundos da leitura
Por Lee Pontes
José Ferraz de Almeida Júnior. A leitura. 1892. |
O “mundo do texto” e o “mundo em que vive o leitor” não são
faces da mesma moeda, entretanto, podemos
entender ou pensar
neles como espelhos colocado um
ao lado do outro, no qual o leitor os observa e os interpreta. Dessa observação
ou dessa leitura dupla emerge o “mundo da leitura”, formado pela oposição entre
confrontar o “mundo do texto” e o “mundo do leitor”. O “mundo do texto” cria
livremente as relações por observação e criação linguística, em que os signos
passam a funcionar como elemento de ligação entre o mundo composto na obra e o
mundo do leitor. Ou seja, pela ação de
ler, o leitor
busca na sua
experiência e vivência remontar
aquilo disposto na superfície linguística.
Tal relação
entre linguagem e representação
nunca foi simples
e sem conflitos, pois a imagem linguística esbarra na
experiência histórica do leitor. Assim, as significações nunca são alcançadas
numa primeira leitura, em que o horizonte de expectativa do leitor ainda é pouco
amadurecido pelo hábito de
ler. A significação emerge
pelo intercruzar do uso
linguístico, da relação
entre leitor e
autor e da
obra como fenômeno comunicativo. Falamos de literatura
como fenômeno, no sentido proposto por Martin Heidegger. Na Tradição grega, “phainomai” e,
no latim,“phenomenon”, em
ambos os casos,
significa aquilo que
pode ser percebido ou sentido,
pode ser interpretado, tocado ou ouvido.
Para Heidegger, em
o Ser e o
Tempo (2002), o
fenômeno deve ser entendido como “o que se mostra”, o ser
dos entes, ou seja, entender cada acontecimento como um fato único e relevante.
Pois o fenômeno nãoé aquilo que pode ser percebido, tocado ou ouvido, mas
aquilo que se mostra, não um mostrar
qualquer, nem muito
menos um “aparecer”qualquer. O fenômeno é o um ser dos
entes, sendo aquele que menos pode ser algo, pois ele é o que surge na
singularidade. Assim, cada obra é um fenômeno, pois se trata de um fenômeno que
se revela por meio de uma forma própria
e por meio
dessa forma se mostra (Um poema
de Pessoa é um fenômeno, pois se revela na sua estrutura composicional e tema).
Tomemos o texto Helena,
obra composta por
Machado de Assis
e publicada em 1876, é um fenômeno singular e, assim, podemos pensar em
três mundos coexistindo: o mundo criado pelo narrador; as referências à
tragédia grega, corporificada na construção do texto, pois trata de um único exemplo
de revolução solar,
ao modelo clássico,
do autor; e o mundo
do leitor. Machado de Assis procura sempre a dispersão do leitor, por meio do
seu narrador orienta o olhar para pontos na obra: “... Estácio abriu uma das
janelas do quarto e relanceou os olhos pela chácara. A alguns passos de
distância, entre duas
laranjeiras, viu Helena
a ler atentamente um papel.
Era uma carta, longa de todas as suas
quatro laudas escritas. Seria alguma mensagem amorosa?” Em seguida,
desce e interroga a moça da origem da carta e, ciente de si, Helena pede para Estácio
que a leia. O estático, adjetivo avaliador condizente a condição do filho do Conselheiro
Vale, foge e nega-se a
ler, se tivesse
a coragem necessária teria
descoberto todos os segredos da moça.
Estácio faz
elucubrações sobre o
teor da correspondência, pensou
e chegou a conclusão que não se tratava de algo antigo, mas missiva
nova,cujo conteúdo devia ser de alguma amiga do colégio. Machado diz: “Mas não
podia ser de alguma antiga companheira do colégio, que lhe confiava segredos seus?
Estácio abraçou com
alvoroço esta hipótese.
Depois, ocorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga, a carta podia
tratar de algum idílio de colégio, em que Helena fosse protagonista, idílio
vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, que tinha ele
com isso? Fazendo esta última reflexão, Estácio sacudiu do espírito o assunto e
seguiu a examinar as novas obras da chácara, entre as quais figurava um vasto
tanque. Já ali
estavam os operários;
ia começar o trabalho do dia. Estácio viu a obra feita e
deu várias indicações novas.” (p.27) Machado prefere afastar o olhar do leitor,
porém revela a capacidade da personagem Estácio de chegar à verdade, mas de ser
incapaz de se ver na sua argumentação.
Toda leitura necessita
de mediação, não
de um leitor
orientado ou simplificação da
obra, como uma explicação aos sentidos construídos pela obra. Mas, ao
contrário, pelas leituras anteriores e pelas pistas erguidas ao longo da obra.
Machado de Assis, na composição de Helena, baseou-se em outros textos: Elektra de Ésquilo e Sófocles e a
paródia de Eurípides. Essas obras coexistem
num plano abaixo
na estrutura interna
da obra de Machado,
assim, funcionam como
coordenadas apontando para a
interpretação ou entendimento
do texto. Por que
tais marcas são colocadas? Umberto Eco, em A obra aberta, diz que toda obra é
aberta a interpretação do leitor, entretanto, o autor deixa marcas ou
coordenadas para a condução ao entendimento,
pistas tais que podem conduzir ao entendimento ou, como estilo machadiano, a
dúvida constante.
Ora, se as marcas usadas por Machado de Assis são textos
clássicos da literatura grega, temos em Helena
a coexistência de dois mundos: século XIX e o mundo grego (canto de fundo). Tal
canto (mundo grego) é um ruído contínuo e convidativo, pois se trata de uma
relação percebida pela leitura, mas exige que o leitor tenha lido o texto
referência para notar a sutil relação entre os textos. No capítulo XXIII da
obra ocorre um diálogo interessante entre Estácio e o Pe. Melchior. O
dignitário de Deus começa a desnublar a mente e os sentimentos do filho do
Conselheiro Vale, atua como um oráculo e revela aquilo que o moço escondia de
si mesmo e nãodo mundo. “Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei
humana, sem o saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se,
murmura,rebela-se, vaga à feição de um instinto mal-expresso e mal
compreendido. O mal persegue-te, tenta-te,
envolve-te em seus
liames dourados e ocultos; tu não o sentes, não o vês; terás
horror de ti mesmo, quando deres com ele
de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre teu coração e tua
consciência há como um véu espesso que os separa, que impede esse acordo
gerador do delito” (p.73).
Essas marcas acabam por apontar uma relação real entre o
mundo grego e o mundo da obra, a cidade do Rio de Janeiro, capital do Império.
Esse mundo espelhado funciona num fluxo interno, pois se pode esperar que um
padre tenha conhecimento filosófico e da tragédia grega. Machado de Assis é
mestre da ironia. Bloom, em Gênio
(2003), diz que a genialidade deste “é manter o leitor preso à narrativa,
dirigir-se a ele frequente e diretamente, ao
mesmo tempo em que evita
o mero “realismo”
(que jamais é realista)”. Em Helena esse modo de agir não fica claro,
porém somos guiados pelo olhar de Estácio e sobre seu ponto de vista é que passamos
a ler Helena. Assis deve ser lido voltando, pois a relação do mundo grego se dá
aos pulos e de modo marcado.
No capitulo XX, Helena diz: “Se ele insistir, vencê-lo-ei,
ou por um modo ou por outro. Uma moça que quer ser noiva, vale por um exército;
eu sou um exército”. Não se espera de uma dama da sociedade carioca uma postura
tão impetuosa. Se o leitor volta ao início do texto, percebe que a tragédia abre-se,
como explicou Aristóteles, a estrutura
trágica se forma por um percurso: depois
da hybris (Dr. Camargo fala
de uma lacuna
ou um excesso, refere-se a
presença de Helena, a moça começa a desafiar o seu destino), acontece a
páthos (inicialmente, Helena tem que
lutar para ser aceita por Estácio
e Tia Úrsula,
os sentimentos de
Estácio e outros eventos) e surge a agnórise ou
anagnórise (Estácio reconhece seu
amor por Helena por interseção de Melchior, mas é frustrado em seus
desejos.Helena é obrigada
a mudar sua
postura e aceitar
casar com Mendonça), que
desencadeia o clímax (Os segredo de
Helenas são revelados, surge
Salvador), depois resulta a cathársis (Salvador aceita sair da vida
de Helena, fato
não aceito por
esta) e a catástrofe ou catástase (Helena morre e o pai desaparece). Ao
adentrar o mundo do texto, o leitor deixa-se enganar ou iludir pelas marcas
(datas e nomes) e referências, dados que são ilusórios nas mãos de Machado de
Assis, pois esses não estariam estabelecendo uma relação com o mundo do autor.
Embora, essas referências atestem a ligação, nãosão os únicos usos atribuídos
ou possíveis para as ocorrências. Dizemos, com isso, que tais
marcas e os elos discursivos são enganadores para dispersar o leitor e
fazê-lo entrar nos vários níveis de leituras existentes no texto. O mundo da
leitura é a ligação que o leitor faz consigo, com a obra e a sociedade
implicada pelo autor.
Machado de Assis não buscava retratar uma sociedade, mas
fazer o leitor construir para si a
sociedade que se
observa constantemente, que apagamos
da memória pela
falsa ideia de
pensar: vivo em Fortaleza, conheço-a? O mundo da leitura
remonta à passagem de Mateus (13,13): “vendo, não enxergam; e escutando, não ouvem, muito
menos compreendem”. Ler Machado de
Assis não é
somente lançar olhar
e ouvidos às cenas, mas refletir sempre. As marcas são trilhas, devemos
ser como o Monge Guilherme, que trilha
a floresta em
busca do cavalo, armado apenas de seu saber e de saber
nenhum, desvenda o paradeiro do animal, dá-lhe nome, desenha-o para si e para
os outros. A leitura leva a perda dos sentidos para, enfim, se remontar um
sentido.
* Lee Pontes é jornalista e linguista. Estuda o mal na literatura no Grupo de Estudos Vertentes do Mal na Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é bolsista CNPQ em Linguística de Texto (UFC). A graduação em jornalismo foi pela Universidade Estácio de Sá e o curso de Letras é na Universidade Federal do Ceará.
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