Gol de padre*
Por Sérgio Porto
© Francesc Català-Roca |
Da janela eu vejo os garotos no pátio do colégio durante o recreio. Sempre me dá uma certa saudade, porque eu já fui menino. Aliás, embora pareça incrível, até mesmo as mais importantes pessoas do nosso país já foram crianças. O importante é não deixar nunca que o menino morra completamente dentro da gente, quando a gente fica adulta. Pobre daquele que abdicar completamente de gostos infantis. Ficará velho muito mais depressa. O menino que a pessoa conversa em si é um obstáculo no caminho da velhice.
Dizem até que é por isso que os chineses, de incontestável
sabedoria, conservam a hábito de soltar pipas mesmo depois de homens feitos.
Não sei se é verdade. Nunca fui chinês.
Mas, quando começa o recreio no colégio, da minha janela
vejo o pátio e, quando a campainha toca, para o intervalo das aulas, paro de
trabalhar e fico na janela, como se estivesse no recreio também.
Agora mesmo os meninos estão lá, saindo de todas as portas
para o meio do pátio, onde um padre, com uma bola de futebol novinha debaixo do
braço, escolhe os times para um jogo de futebol. Os garotos reclamam esta ou
aquela escolha, mas o padre deve ter fama de zangado, pois basta alguém
reclamar, que ele, com um simples olhar, cala o reclamante e continua a escola
dizendo “você, do lado de cá; você ai, para o lado de lá” vai ordenando o
austero sacerdote.
Quando os times já estão formados, ele vai até o meio do
pátio, onde seria o meio do campo, se ali houvesse um campo demarcado, coloca a
bola no chão e supervisiona um “par ou impar” entre os dois centroavantes. O
vencedor dará a saída.
Ministro de Deus deve ser às paixões clubísticas e vejo que
padre apitar o jogo com tal precisão e com tamanha autoridade que fico a
imaginar: um padre, em dia de decisão de campeonato, pode perfeitamente
resolver o problema sempre premente da arbitragem.
Um garoto pegou a bola em situação de impedimento clamoroso,
como dizem os locutores esportivos. O padre apita, mas o garoto finge que não
ouve, foge pelo centro e emenda um bico, que passa pelos defensores e vai para
o fundo das redes imaginárias. Todo o time do goleador grita e corre para
abraçar o companheiro. O padre, implacável, está apontando para o local onde o
jogador pegou a bola em impedimento. Este juiz é fogo, expulsou o que fizera o
gol, por não ter respeitado o seu apito, e expulsou outro do mesmo time, porque
reclamara contra a sua decisão. Depois olha em volta, vê dois garotos sentados
num banquinho, lá atrás, e chama-os para substituir os indisciplinados. Os dois
correm felizes para preencher as vagas. Sua Senhoria dá nova saída e prossegue a
pelada.
Futebol de garoto é muito mais de ataque do que de defesa.
Os técnicos do nosso futebol, que tanto têm contribuído para enfear o
espetáculo do esporte do século, armando mais as defesas do que os ataques, na
ânsia de não perder o emprego diante de uma goleada adversária, podiam aprender
muito com o futebol de garoto. O principal é marcar mais gols, e não como
querem os ditos técnicos, sofrer menos gols.
Baseados nesta verdade nascida com o próprio futebol, o
escore no jogo dos garotos, neste momento, é de 14 a 12. E ai vem mais gol. O
padre acaba de marcar um pênalti contra o time do lado de lá. Um garoto da
defesa segurou outro garoto do ataque adversário e tirou lhe a camisa para fora
das calças, sob estrepitosa gargalhada de todo o recreio, menos do padre. Este
deu o pênalti, mas com a cara amarrada que vinha conservando até ali.
Bola na marca, camisa pra dentro das calças outra vez, o
garoto que sofrera a falta correu e diminuiu a diferença. Agora está em 14 a
13, mas não há tempo para o empate. A campainha soa estridente no pátio do
colégio e o “juiz” da por encerrado o tempo regulamentar, com a vitória do time
do lado de cá.
Pouco a pouco os meninos vão retornando para suas salas,
pelas mesmas portas por onde saíram. O padre ficou sozinho no pátio. Caminhou
até a bola e colocou-a outra vez debaixo do braço, sempre com um ar sério e
compenetrado. Eu já estava a pensar que ele era desses que deixaram de ser
meninos para sempre, quando ele me surpreende.
Olha para os lados, certifica-se de que está sozinho no
recreio e então joga a bola para o ar, controla no peito e deixa a bichinha
rolar para o chão. Levanta a batina e sai veloz pela ponta, driblando um
zagueiro imaginário e, na corrida, emenda no canto, inaugurando o marcador.
Só faltou, ao baixar novamente a batina, voltar correndo
para o meio do campo, com os braços levantados a gritar gooooool...
* A crônica de Sérgio Porto (nome com o qual Stanislaw Ponte Preta assinou seus textos) está no livro Gol de padre e outras crônicas; além deste livro, publicou também, sobre o tema, Bola na rede: a batalha do bi, crônicas sobre a Copa do Mundo de 1962.
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O texto copiado aqui está em "Gol de Padre e Outras Crônicas"(Editora Ática, 6ª edição, 2000).