Futebol ao sol e à sombra

Por Eduardo Galeano



Os negros

Em 1916, no primeiro campeonato sul-americano, o Uruguai goleou o Chile por 4 a 0. No dia seguinte, a delegação chilena exigiu a anulação da partida, "porque o Uruguai escalou dois africanos". Eram os jogadores Isabelino Gradín e Juan Delgado. Gradín havia feito dois dos quatro gols.

Bisneto de escravos, Gradín tinha nascido em Montevidéu. As pessoas se levantavam quando ele se lançava numa velocidade espantosa, dominando a pelota como quem caminha, e sem se deter evitava os adversários e arrematava na corrida. Tinha cara de santo e quando fazia cara de mau, ninguém acreditava.

Juan Delgado, também bisneto de escravos, havia nascido em Florida, no interior do Uruguai. Delgado brilhava dançando nos carnavais e fazendo a bola dançar nos gramados. Enquanto jogava, conversava, e gozava os adversários.

– Larga esse cacho – dizia, levantando a bola.

E lançando-a dizia:

– Sai fora, que lá vai areia.

O Uruguai era, naquela época, o único país do mundo que tinha jogadores negros na seleção nacional.

Zamora

Começou na primeira divisão aos dezesseis anos, quando ainda vestia calças curtas. Para entrar no campo do Espanhol, em Barcelona, vestiu um jersey inglês de colarinho alto, luvas e um gorro duro como um capacete para protegê-lo do sol e das patadas. Era o ano de 1917 e as cargas eram de cavalaria. Ricardo Zamora tinha escolhido um ofício de alto risco. O único que corria mais perigo que o goleiro era o árbitro, naquela época chamado o Nazareno, que estava exposto às vinganças do público em campos que não tinham fosso nem alambrado. Em cada gol a partida era interrompida longamente, porque as pessoas entravam em campo para abraçar ou bater.

Com a mesma roupa daquela primeira vez, ficou famosa, ao longo do tempo, a estampa de Zamora. Ele era o pânico dos atacantes. Se olhavam para ele, estavam perdidos: com Zamora no gol, o arco encolhia e as traves se afastavam até perder-se de vista.

Era chamado de Divino. Durante vinte anos, foi o melhor goleiro do mundo. Gostava de conhaque e fumava três maços de cigarros por dia, além de um ou outro charuto.


Samitier

Aos dezesseis anos, como Zamora, Josep Samitier debutou na primeira divisão. Em 1918, assinou contrato com o Barcelona em troca de um relógio luminoso, que era coisa nunca vista, e um terno com colete.

Pouco tempo depois, já era o ás da equipe e sua biografia era vendida nas bancas de jornal da cidade. Aos dezesseis anos, como Zamora, Josep Samitier debutou na primeira divisão. Em 1918, assinou contrato com o Barcelona em troca de um relógio luminoso, que era coisa nunca vista, e um terno com colete.

Pouco tempo depois, já era o ás da equipe e sua biografia era vendida nas bancas de jornal da cidade.


Friedenreich

Em 1919, o Brasil venceu o Uruguaipor 1 a 0 e se sagrou campeão sulamericano. O povo se lançou às ruas do Rio de Janeiro. Presidia os festejos, levantada como um estandarte, uma barrenta chuteira, com um sinalzinho que proclamava: O glorioso pé de Friedenreich. No dia seguinte, aquela chuteira que tinha feito o gol da vitória foi parar na vitrina de uma joalheria, no centro da cidade.

Artur Friedenreich, filho de um alemão e de uma lavadeira negra, jogou na primeira divisão durante vinte e seis anos, e nunca recebeu um centavo. Ninguém fez mais gols que ele na história do futebol. Fez mais gols que o outro grande artilheiro, Pelé, também brasileiro, que foi o maior goleador do futebol profissional, Friedenreich somou 1.329 gols. Pele, 1.279.

Este mulato de olhos verdes fundou o modo brasileiro de jogar. Rompeu com os manuais ingleses: ele, ou o diabo que se metia pela planta de seu pé.

Friedenreich levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios. Assim nasceu um estilo, aberto a fantasia, que prefere o prazer ao resultado. De Friedenreich em diante, o futebol brasileiro que é brasileiro de verdade não tem ângulos retos, do mesmo jeito que as montanhas do Rio de Janeiro e os edifícios de Oscar Niemeyer.


Andrade

A Europa nunca tinha visto um negro jogando futebol.

Na Olimpíada de 24, o uruguaio José Leandro Andrade deslumbrou com suas jogadas de luxo. No meio de campo, este homenzarrão de corpo de borracha carregava a bola sem tocar o adversário, e quando se lançava ao ataque, contorcendo o corpo esparramava um mundo de gente. Numa das partidas, atravessou meio campo com a bola dominada na cabeça. O público o aclamava, a imprensa francesa chamava-o de A Maravilha Negra.

Quando o torneio terminou, Andrade ficou um tempo ancorado em Paris. Ali foi boêmio errante e rei de cabaré. As botas de verniz substituíram as alpargatas que tinha trazido de Montevidéu e um chapéu com aba ocupou o lugar do gorro velho. As crônicas da época saudavam a estampa daquele monarca das noites de Pigalle:

O passo elástico e dançarino, o esgar gozador, os olhos entrecerrados que sempre olhavam de longe, e uma pinta de matar: lenço de seda, paletó listado, luvas amarelo-claro e bengala com empunhadura de prata.

Andrade morreu em Montevidéu, muitos anos depois. Os amigos tinham programado muitas festas em seu benefício, mas nenhuma chegou a ser realizada. Morreu tuberculoso, na mais completa miséria.

Foi negro, sul-americano e pobre, o primeiro ídolo internacional do futebol.

Scarone

Quarenta anos antes dos brasileiros Pelé e Coutinho, os uruguaios Scarone e Cea transpunham as zagas adversárias com seus passes de primeira e em ziguezague, que iam e vinham de um para o outro no caminho até a meta, tua e minha, curtinha e no pé, pergunta e resposta, resposta e pergunta: a bola era devolvida sem parar, como se tivesse batido numa. Já se chamava a parede, naqueles anos, essa maneira rioplatense de atacar.

Héctor Scarone servia passes como oferendas e fazia gols com uma pontaria que aperfeiçoava, nos treinos, derrubando garrafas a trinta metros. Embora baixinho, no jogo pelo alto superava todos. Scarone sabia flutuar no ar, violando a lei da gravidade: quando saltava em busca da bola, lá em cima se desprendia de seus adversários dando uma volta de pião que o deixava de frente para o arco, e então cabeceava para o gol.


Era chamado o Mago, porque tirava gols da cartola e também o chamavam Gardel do futebol, porque jogando cantava como ninguém.


* De GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Trad. Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: L&PM, 2014.

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